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A condução coercitiva face à processualidade penal constitucional

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Apresenta-se uma visão constitucionalizada sobre o instituto da condução coercitiva. Parte-se de uma abordagem histórica e da análise do modo como a referida medida constritiva da liberdade foi prevista no CPP.

Resumo: Pretende-se, pelo presente artigo, oferecer uma visão constitucionalizada sobre o instituto da condução coercitiva. Parte-se, para tanto, de uma abordagem histórica e da análise do modo como a referida medida constritiva da liberdade foi prevista no Código de Processo Penal, quem pode ordená-la e contra quem ela pode ser efetivada.  

Palavras-chave: Condução coercitiva. Legitimidade. Processo.


INTRODUÇÃO

A condução coercitiva ocorre quando determinada pessoa, contra sua vontade, é levada até a presença da autoridade, para cumprir atos que sejam necessários à elucidação de algum fato, ou seja, a pessoa tem sua liberdade cerceada por um curto período de tempo, se não se apresentar, de modo injustificado, depois de devidamente intimada.

Para a sua determinação, a condução deverá se sujeitar aos princípios constitucionais que a balizam, dentre os quais, o direito de permanecer calado, de não produzir prova contra si mesmo (não autoincriminação) e o princípio da legalidade, todos inseridos implicitamente no título dos direitos e garantias fundamentais da Constituição da República de 1988. As normas constantes do Código de Processo Penal, principalmente a da necessidade e da adequação, são igualmente importantes na imposição da medida coercitiva.

É importante lembrar que de acordo com o artigo 5º, inciso LXI da Constituição da República, ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial. Diante deste enunciado, é asseverado que, a priori, somente o juiz pode determinar a condução coercitiva, não sendo possível à autoridade policial ou a qualquer outra a determinação da referida restrição da liberdade.

Ocorre, no entanto, que não raramente se vê posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários no sentido contrário, ainda admitindo, na atual conjuntura da processualidade democrática, a condução coercitiva dos sujeitos atuantes no processo penal (acusado, ofendido, testemunhas) por ordem exclusiva da autoridade policial, posicionamento de questionável constitucionalidade.

Diante disso, há de se refletir sobre quais seriam os requisitos a serem atendidos para a decretação da medida, especialmente aqueles referentes à(s) autoridade(s) legitimadas para a sua decretação, para que, assim, a medida se conforme ao modelo constitucional de processo e aos princípios regentes do sistema acusatório. 


NOÇÕES GERAIS DA CONDUÇÃO COERCITIVA: NATUREZA JURÍDICA E ASPECTOS HISTÓRICOS.

Segundo a doutrina majoritária, a condução coercitiva tem natureza jurídica de medida cautelar de natureza pessoal. Estas medidas têm o objetivo de assegurar a efetividade do processo limitando a liberdade de locomoção do investigado, indiciado ou acusado, durante o inquérito ou processo.

É nesse sentido que Guilherme de Souza Nucci (2016) afirma que a condução coercitiva tem natureza jurídica de prisão processual cautelar, sendo inclusive admitido o uso de algemas, em casos de resistência, bem como o recolhimento em cela, até que seja realizada a oitiva pela autoridade competente[1].

Representando a corrente minoritária, Fernando Capez (2014) sustenta posicionamento contrário afirmando que o ofendido e as testemunhas podem ser conduzidos coercitivamente sempre que deixarem, sem justificativa, de atender a intimações da autoridade policial (CPP, art.201, §1º e 218). Condiz com esse posicionamento, por sinal, a decisão abaixo transcrita:

INTERROGATÓRIO. CONDUÇÃO COERCITIVA (TACRIM/SP): “No poder legal dos delegados de polícia, iniludivelmente se encontra o de interrogar pessoa indiciada em inquérito, para tanto podendo mandá-la conduzir a sua presença, caso considere indispensável o ato e o interessado se recusa a comparecer” (RT, 482/357).

No que tange aos seus antecedentes jurídicos históricos, tem-se notícia, conforme o magistério de Eugênio Pacelli (2014), que no Código do Processo Criminal de Primeira Instância do Império do Brasil de 1832, o qual foi editado logo após a vigência das Ordenações do Reino de Portugal (do século XVI ao início do século XIX) e à promulgação da Constituição imperial de 1824, já havia um instituto análogo a condução coercitiva, nos artigos 95 e 202 da referida legislação:

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Art. 95 do Código de Processo Criminal do Império: “As testemunhas que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara, e soffrerão a pena de desobediência”. (Grifo nosso).

Art. 202 do Código Criminal do Império assim dispõe: “O possuidor ou occultador das cousas ou pessoas, que forem objectos da busca, serão levados debaixo de vara a presença do juiz que a ordenou, para serem examinados e processados na forma da lei, se forem manisfestamente dolosos, ou se forem cumplices no crime”. (Grifo nosso).

É válido destacar que a expressão “debaixo de vara” tem uma conotação de obrigatoriedade, ou seja, de medida tomada à força, contra a vontade do conduzido.

A “Vara”, no direito antigo português, era símbolo de autoridade e as Ordenações Filipinas traziam a determinação de que os juízes deveriam trazer consigo varas, vermelhas ou brancas, sempre que estivessem em público, sob pena de multa:

“E os juízes ordinários trarão varas vermelhas e os juízes de fora brancas continuadamente, quando pella villa andarem, sob pena de quinhentos réis, por cada vez, que sem ella forem achados”. Livro 1, Título LXV. 1. Ordenações Filipinas.

Portanto, a condução coercitiva é um instituto utilizado desde meados do século XIX, com fundamento na necessidade de apuração de infrações de forma célere, mas devendo garantir os direitos do conduzido.


LEGALIDADE NORMATIVA DA CONDUÇÃO COERCITIVA.

No ordenamento jurídico brasileiro, somente a lei pode criar direitos, deveres e obrigações, constituindo-se uma garantia fundamental para todos os indivíduos contra os atos arbitrários cometidos pelo Estado.

O modelo atual de processo confere subordinação ao sistema constitucional vigente no Brasil, que em seu art. 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, no inciso XXXIX, dispõe que não há crime sem previsão em lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. O referido dispositivo revela o mandamento constitucional da anterioridade da lei e este é a aplicação do princípio da legalidade. O Código de Processo Penal também traz a previsão legal da medida limitativa da liberdade. (Artigos 201 § 1º, 218, 260 e 278).

Vale lembrar que tramita no congresso a Projeto de Lei do Senado 85/2017, que versa sobre a lei de abuso de autoridade, e também aborda o tema da condução coercitiva à luz do sistema constitucional brasileiro.

O referido projeto prevê mais de 30 ações que podem ser consideradas abuso de autoridade. Serão punidas, por exemplo, práticas como decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem prévia intimação ao juízo; fotografar ou filmar preso sem seu consentimento ou com o intuito de expô-lo a vexame; colocar algemas no detido quando não houver resistência à prisão e pedir vista de processo para atrasar o julgamento.


CONDUÇÃO COERCITIVA DO OFENDIDO

Segundo Renato Marcão (2016), o ofendido é o sujeito passivo do delito, é aquele sobre quem recai a ação delitiva, direta ou indiretamente. É o titular do bem jurídico atingido pela infração penal. É a vítima, em síntese, no sentido processual penal. Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci (2016), o Estado é considerado o sujeito passivo constante e formal sempre presente em todos os delitos, pois detém o direito de punir com exclusividade.

A respeito da condução coercitiva do ofendido, assim dispõe o Art. 201 do Código de Processo Penal:

Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstancias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.

§ 1º - Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008).

O ofendido deve comparecer perante a autoridade judicial ou policial para prestar declarações sobre a sua versão dos fatos. Trata-se de uma obrigatoriedade imposta pelo diploma processual penal, pois sua declaração é de suma importância para a instrução do inquérito ou processo. Uma vez que não seja ouvido o ofendido, poderá ocorrer o enfraquecimento da colheita das provas, dificultando, assim, a condição do magistrado formar sua convicção e proferir o veredicto.

Quanto a questão da legitimidade para determinação da apresentação obrigatória do ofendido a autoridade, no entendimento de Nestor Távora (2013), pode o ofendido ser conduzido coercitivamente tanto por determinação do magistrado quanto do delegado de polícia.

É importante ressaltar que estão dispostos, também, no art. 201 do citado diploma processual penal direitos fundamentais do ofendido, incluídos pela Lei 11.690 de 2008, que, de acordo com o processo penal constitucional, jamais poderão ser desrespeitados:

§ 2o O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. 

§ 3o As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico. 

§ 4o Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido. 

§ 5o Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado.  

§ 6o O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação. 

Neste contexto, o ofendido será informado dos atos processuais referentes a entrada e saída do acusado da prisão, sendo informado através de meios e no endereço que ele informar, inclusive os eletrônicos. Terá espaço reservado e separado do acusado, antes e durante a realização das audiências. Poderá ser encaminhado para atendimento multidisciplinar, nas áreas psicossocial, saúde, jurídica as custas do Estado ou do acusado. Terá sua intimidade, vida privada, honra e imagem preservados, podendo ser beneficiado com o segredo de justiça com relação ao seu depoimento e demais informações constantes dos autos, evitando-se exposição aos meios de comunicação.


CONDUÇÃO COERCITIVA DO PERITO

O perito é conceituado por Renato Brasileiro (2016) como um auxiliar do juízo que possui conhecimentos técnicos ou científicos sobre determinada área do conhecimento humano. O perito oficial é investido pelo Estado da função de realizar exames periciais, uma vez que é funcionário público de carreira. Fornece, através de análise, elementos imprescindíveis para instrução da investigação, processo e do convencimento do magistrado. Há previsão de dois tipos de peritos, oficial e não oficial. Ambos devem possuir diploma de nível superior.

A respeito da condução coercitiva do perito, Renato Marcão (2016) informa que sua condução somente poderá ser determinada em caso de não comparecimento sem motivo justo. Entende, ainda o referido autor, que a medida somente seria aplicada a perito não oficial, uma vez que os peritos oficiais estão subordinados a regulamento disciplinar de sua instituição. Sendo que são previstas punições se cometerem falta funcional, tal como de não comparecer em juízo, quando intimado. 


CONDUÇÃO COERCITIVA DA TESTEMUNHA

A testemunha é o terceiro, que não é parte no processo, porém é capaz de fornecer informações sobre o ocorrido. Toda pessoa tem o dever de testemunhar, basta que tenha informação importante e pertinente sobre o fato objeto da causa.

O conceito de testemunha trazido por Renato Brasileiro (2016) é a pessoa desinteressada e capaz de depor, que perante a autoridade judiciária, declara o que sabe acerca de fatos percebidos por seus sentidos que interessam à decisão da causa. A prova testemunhal tem como objetivo, portanto, trazer ao processo dados de conhecimento que derivam da percepção sensorial daquele que é chamado a depor no processo. Suas declarações têm, portanto, natureza jurídica de meio de prova.

O Código de Processo Penal assegura que toda pessoa poderá ser testemunha (artigo 202), no entanto, a própria lei processual penal traz limitações ao dever de testemunhar, conforme demonstra o art.206 da lei processual penal:

“A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor, mas poderão, entretanto, recursar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstancias”.

Também de acordo com o art. 207 do mesmo diploma legal que consta o rol de pessoas proibidas de depor, temos que:

“São proibidas de depor as pessoas que em razão de função, ministério, oficio ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

Assim, mesmo as pessoas listadas como testemunhas dispensadas e proibidas de depor, nos artigos supracitados do referido código processual legal, deverão comparecer quando devidamente intimadas pelo magistrado, sob pena de condução coercitiva, uma vez que não há ressalva em contrário no dispositivo legal.

A respeito da legitimidade da autoridade policial (delegado) poder determinar a condução coercitiva da testemunha, Renato Brasileiro (2016) afiança que a expressão “polícia judiciária” está relacionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas etc. Portanto, caso necessite proceder à oitiva da testemunha deve o delegado de polícia requer ao magistrado a apresentação dela.

Com referência a previsão legal da condução coercitiva da testemunha, está delineado no Art. 218 do Código de Processo Penal:

“Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública”.

No caso da testemunha, o texto da lei indica, exclusivamente, o magistrado, (juiz) como autoridade competente para determinar que seja conduzida contra sua vontade para prestar depoimento, se for regularmente intimada e não comparecer sem apresentar um motivo relevante.

No procedimento do júri também há previsão de condução coercitiva de testemunha, determinada, exclusivamente, pelo juiz, art. 461 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:

§ 1º “se intimada a testemunha não comparecer o juiz presidente suspenderá os trabalhos e mandará conduzi-la”.

No mesmo sentido, Fernando Capez (2014) afirma que se for intimada e não comparecer, será determinada condução coercitiva da testemunha, ou o adiamento do julgamento para o primeiro dia possível, ordenando sua condução.

Sobre os autores
Jânio Oliveira Donato

Advogado criminalista. Mestre em Direito Processual (2013) e Especialista em Ciências Penais (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Gestão de Instituições de Ensino Superior (2016) pela Faculdade Promove de Minas Gerais. Professor de Direito Processual Penal e Filosofia do Direito da graduação e pós-graduação das Faculdades Kennedy de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas de Minas Gerais (ABRACRIM-MG).

Lucas Marco da Silva Rocha

Bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente artigo tem como principal autor Lucas Marco da Silva Rocha, Bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

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