A condução coercitiva face à processualidade penal constitucional

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CONDUÇÃO COERCITIVA DO ACUSADO

Guilherme de Souza Nucci (2016) conceitua o acusado como sujeito passivo da ação penal, é também parte da relação processual. No decorrer da investigação deve ser denominado de investigado, se, formalmente, apontado como suspeito pelo Estado. É a pessoa em face de quem se deduz a pretensão punitiva, ou seja, é o sujeito passivo da relação processual.  (LENZA, 2012, p.335).

A previsão legal que autoriza a condução forçada até a presença da autoridade está descrita no Código de Processo Penal em seu art. 260:

Se o acusado não atender a intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato, que sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo a sua presença.

Diante desta situação, Renato Marcão (2016) comenta que muito embora cogitável a possibilidade de condução coercitiva do acusado até a presença da autoridade policial com vista à sua oitiva (por força do disposto no art. 260), não há dúvida a respeito da inconstitucionalidade desse dispositivo, visto não se encontrar o acusado obrigado a colaborar com as diligências em seu desfavor.

Se o investigado pode se manter calado, não tem sentido lógico e coerência sistêmica a interpretação que permite a sua condução coercitiva até a presença da autoridade policial, pois sua recusa manifestada mediante ausência inicialmente evidenciada deve ser interpretada como opção clara pelo silencio.


AUTORIDADE COMPETENTE PARA DETERMINAR A CONDUÇÃO COERCITIVA DO ACUSADO: POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS E PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.

Neste ponto, existe controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a autoridade legitimada e competente para ordenar a apresentação do acusado para o ato legal.

O sistema constitucional vigente, legislação máxima da nação, assegura que ninguém poderá ter sua liberdade cerceada senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial, juiz, exceto nos casos de transgressão militar ou crime militar definidos em lei.

Conforme entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2016) atualmente, apenas o juiz pode determinar a condução coercitiva, visto ser esta uma modalidade de prisão processual, embora de curta duração. Afirma, ainda, que a Constituição é taxativa ao preceituar caber, exclusivamente, à autoridade judiciária a prisão de alguém, por ordem escrita e fundamentada (art. 5º, LXI).

O delegado, quando necessitar, deve pleitear a autoridade judicial que determine a condução coercitiva do indiciado/suspeito ou de qualquer outra pessoa à sua presença.

Em sentido divergente, Renato Brasileiro (2016), diz que em razão do disposto na Constituição da República de que o preso será informado dos seus direitos, entre os quais de permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistência da família e de advogado (art.5º, LXIII), não poderia o acusado ser conduzido obrigatoriamente para realização de interrogatório, nem mesmo por determinação do juiz. A condução poderia ser determinada somente para atos que não implicassem em produção de prova contra si mesmo, a exemplo de identificação e acareação, atos que não demandariam do acusado nenhuma conduta positiva. Continua vigendo, certamente, a possibilidade de o juiz determinar a condução coercitiva doréu para comparecer ao interrogatório, mas somente assim fará, caso necessite, por alguma razão, identificá-lo e qualificá-lo.

Renato Brasileiro (2016) ainda afirma que, mesmo diante do teor do dispositivo legal, a doutrina e a jurisprudência são unânimes em afirmar que na medida que a Constituição da República e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos garantem ao acusado o direito de não produzir prova contra si mesmo não é possível que o magistrado determine a condução coercitiva para comparecer ao interrogatório, mesmo porque se o interrogatório é um meio de defesa, é claro que pode o acusado abrir mão de comparecer ao interrogatório.

O Supremo Tribunal Federal se manifestou no sentido de que não há qualquer objeção ao delegado de polícia determinar a condução forçada de investigado em cumprimento ao disposto no art. 260 do Código de Processo Penal, ou seja, a instrução do inquérito.

Foi fundamentado pela Suprema Corte que com base no art. 144 da Constituição da República, que descreve a função da polícia, e assim dispõe:

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares.

§4º: “A Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de polícia de carreira, o qual incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, exceto as militares”.

E no art. 4º do Código de Processo Penal, que descreve a atuação da polícia judiciária.

A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Também no art. 6º, incisos II a VI, do Código de Processo Penal, que por sua vez, estabelece as providências a serem tomadas pelas autoridades policiais quando tivessem conhecimento da ocorrência de um delito.

Neste contexto, portanto, o delegado de polícia teria legitimidade na busca do esclarecimento do crime e para tanto, poderia de forma autônoma determinar a condução coercitiva de investigados. O Supremo Tribunal Federal observou, ainda, a desnecessidade da invocação da teoria dos poderes implícitos[2].

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO. CONDUÇÃO DE SUSPEITO À DELEGACIA MESMO NÃO ESTANDO EM FLAGRANTE DELITO. POSSIBILIDADE. [...] 3. Consoante os artigos 144, § 4º, da Constituição Federal, compete 'às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares', sendo que o artigo 6º do Código de Processo Penal estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito. 4. A teoria dos poderes implícitos explica que a Constituição Federal, ao outorgar atribuições a determinado órgão, lhe confere, implicitamente, os poderes necessários para a sua execução. 5. Desse modo, não faria o menor sentido incumbir à polícia a apuração das infrações penais, e ao mesmo tempo vedar-lhe, por exemplo, exemplo, a condução de suspeitos ou testemunhas à delegacia para esclarecimentos (STF, HC 107.644, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 06/09/2011).

No mesmo sentido, orienta-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

[...] De acordo com tais relatos e informações, percebe-se claramente que não houve qualquer ilegalidade na condução do recorrente à delegacia de polícia para prestar esclarecimentos, ainda que não estivesse em flagrante delito e inexistisse mandado judicial. Consoante o disposto no § 4º do artigo 144 da Constituição Federal, "às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Por sua vez, o artigo 6º do Código de Processo Penal estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, dentre as quais se destacam as previstas nos incisos II a VI, verbis : "Art. 6 o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (...) II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;" Nesse contexto, cumpre ressaltar que a doutrina constitucional cuida da teoria dos poderes implícitos, como postulado de hermenêutica pelo qual a atribuição de determinadas funções a um órgão é acompanhada, ainda que implicitamente, dos poderes necessários para a execução de suas finalidades funcionais. Desse modo, não faria o menor sentido incumbir à polícia a apuração das infrações penais, e ao mesmo tempo vedar-lhe, por exemplo, a condução de suspeitos ou testemunhas à delegacia. A jurisprudência, em diversos julgados, tem reconhecido a doutrina dos poderes implícitos (STJ, RHC 25.475, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 10/06/2014).

Na corrente contrária, o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, se manifestou no sentido de não permitir que o Ministério Público determinasse a condução coercitiva:

PODER DE INVESTIGAÇÃO PENAL. - O Ministério Público, sem prejuízo da fiscalização intra-orgânica e daquela desempenhada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, está permanentemente sujeito ao controle jurisdicional dos atos que pratique no âmbito das investigações penais que promova "expropria auctoritate", não podendo, dentre outras limitações de ordem jurídica, desrespeitar o direito do investigado ao silêncio ("nemo tenetur se detegere"), nem lhe ordenar a condução coercitiva, [...] (STF, HC 94173, REL. MIN. CELSO DE MELLO, 2ª TURMA, DJ 27/11/209)

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 A CONDUÇÃO COERCITIVA À LUZ DO MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO.

O sistema constitucional positivo vigente no Brasil foi promulgado em 05 de outubro de 1988. Destarte, toda legislação infraconstitucional brasileira deve ser interpretada sob a luz da Constituição, ou seja, qualquer norma jurídica do Brasil deverá ser subordinada aos mandamentos e princípios constitucionais.

Acompanhando essa tendência de processualidade constitucional, o Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 16 de março de 2015, em seu art. 1º determina que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República, observando-se as disposições deste código. Nesse sentido, Fredie Didier Jr (2016), assevera que as normas jurídicas derivam da Constituição e devem estar em conformidade com ela. Essa norma decorre do sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pela própria Constituição Federal.  

No mesmo sentido, o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 156/2009, que trata da elaboração do novo Código de Processo Penal, também em seu art. 1º dispõe que o processo penal reger-se-á por este código, bem como pelos princípios fundamentais constitucionais e pelas normas previstas em tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja signatário. O dispositivo deixa claro que é imprescindível a observação da Constituição na aplicação das normas processuais.

O atual Código de Processo Penal é datado da década de 40. Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941. Foi elaborado baseado na legislação italiana da época, que vivia um regime autoritário, o fascismo[3].

Após a promulgação da Constituição da República, o modelo constitucional de processo penal, de acordo com Araújo, Grinover e Dinamarco (2013) passou a ser conceituado como a condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais abrangendo, de um lado, a tutela constitucional dos princípios fundamentais da organização judiciária e de outro a jurisdição constitucional.

Tecendo comentários à Lei 12403/11, Eugênio Pacelli (2014) afirma não haver mais dúvida quanto a essa tendência constitucionalizante do processo, visto que “nosso Código de Processo Penal vai se alinhando às determinações constitucionais, ao menos em temas essenciais: as prisões provisórias devem ser sempre a exceção, devendo o magistrado preferir as medidas cautelares diversas daquelas (prisões) ”.

De igual modo, a doutrina majoritária, a exemplo de processualistas de vanguarda, como Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró, tem entendido que o processo penal deve se conformar cada vez mais aos modelos acusatórios, visto que, neles, observa-se um respeito maior à dialeticidade processual e a uma isonômica distribuição dos papéis entre os interlocutores do processo.

Nesse sentido, o sistema de processo penal acusatório, conforme nos ensina Renato Brasileiro (2016), é aquele em que há distinção entre acusação e defesa, atuando ambos de forma igualitária. Sendo que o juiz, se coloca de forma imparcial e equidistante das partes. É claramente visível a separação das funções de acusar, defender e julgar. O sistema apresenta como características a oralidade e a publicidade. Neste modelo de processo, é aplicada a presunção de inocência. Diante disso, a regra é que o acusado permaneça solto durante o processo. 

Neste sistema, sob o ponto de vista da produção de provas, o juiz não deveria ser dotado do poder de determinar a produção de provas de oficio, uma vez que estas devem ser apresentadas pelas partes. O julgador atenderia ao princípio da imparcialidade. Podendo o juiz atuar excepcionalmente de forma instrutória subsidiariamente as partes, garantido o respeito aos procedimentos descritos na lei.

Neste contexto, reforçando uma característica do sistema acusatório, a Constituição da República, em seu art. 129, inciso I, determina que é privativo do Ministério Público a propositura de ação penal pública, sendo que a relação processual somente tem início por sua provocação.

O sistema inquisitório se apresenta de maneira totalmente divergente ao sistema acusatório.

Dessa forma, no sistema inquisitório não há separação nas funções de acusar e julgar, que se encontram concentradas nas mãos de uma só pessoa, que é o juiz. É admitido o princípio da verdade real e o acusado não é sujeito de direito. O juiz tem total iniciativa na produção de provas e também de acusação, em qualquer fase da persecução penal. Atuando dessa forma, o juiz viola frontalmente os princípios da imparcialidade e do devido processo legal, atualmente inseridos na Constituição brasileira vigente.

Diante de tudo acima exposto, chega-se ao entendimento de que o instituto da condução coercitiva é relevante dentro da persecução penal. A doutrina e a jurisprudência apontam a necessidade da medida. Portanto, a restrição da liberdade das partes no processo penal somente deve ser determinada conforme ditames constitucionais, e ainda se observando todos os requisitos legais constantes do Código de Processo Penal. A autoridade competente que pode determinar a condução coercitiva é sempre o magistrado, em respeito à lei máxima da nação e os princípios nela constantes.

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Sobre os autores
Jânio Oliveira Donato

Advogado criminalista. Mestre em Direito Processual (2013) e Especialista em Ciências Penais (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Gestão de Instituições de Ensino Superior (2016) pela Faculdade Promove de Minas Gerais. Professor de Direito Processual Penal e Filosofia do Direito da graduação e pós-graduação das Faculdades Kennedy de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas de Minas Gerais (ABRACRIM-MG).

Lucas Marco da Silva Rocha

Bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente artigo tem como principal autor Lucas Marco da Silva Rocha, Bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

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