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Fundada suspeita: o mítico pressuposto processual que confere legalidade à busca pessoal

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O MISTÉRIO DA FUNDADA SUSPEITA

A fundada suspeita é requisito obrigatório para realização do procedimento de busca pessoal. Desta forma, os agentes ostensivos devem fazer uso de critérios subjetivos (técnica policial, poder discricionário, experiência, sensibilidade do observador, 'tirocínio ou tino policial', etc.) e critérios objetivos que formam a atitude suspeita (localidade, características, tamanho, detalhes, condições do ambiente, descrição, etc.).

Embora seja pressuposto processual, a fundada suspeita não possui um conceito jurídico definido. A lei, a doutrina, a jurisprudência e qualquer outra fonte de direito não conceitua com clareza o que seria a fundada suspeita.

Fundada suspeita no Código de Processo Penal (CPP)

A vagueza do requisito da fundada suspeita pode ser constatada conforme a leitura dos artigos 240, § 2º e 244 do Código de Processo Penal[9] (BRASIL, 1941). Ao analisar ambos dispositivos é possível vislumbrar que o pressuposto da fundada suspeita condiciona o procedimento de busca pessoal. Alexandre Morais da Rosa (2016) destaca essa condicionante ao dizer que: “Do ponto de vista normativo, o teor do art. 240, § 2º, do CPP, somente (condição, pois) quando houver fundada suspeita de quem alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior (...).” (ROSA, 2016, p. 273).

A caracterização da fundada suspeita como pressuposto para busca pessoal mostra-se assunto de extrema relevância no mundo jurídico, acadêmico e prático-policial. Todavia, a imprecisão desse termo enseja notórias divergências na doutrina e na jurisprudência o que recai sobre a atividade preventiva de maior incidência do universo policial, a busca pessoal. Por isso, questões controversas e obscuridades deixadas pelo legislador devem ser no mínimo repensadas.

Fundada suspeita na doutrina

Como dito, nem a Doutrina contemporânea é capaz de esclarecer ou pontuar aspectos que caracterizam a fundada suspeita. Essa incerteza é ratificada por Lopes Junior (2016), o qual declina:

Assim, a autoridade policial (militar ou civil, federal ou estadual) poderá revistar o agente quando houver “fundada suspeita”. Mas, o que é “fundada suspeita”? Uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial. (LOPES JUNIOR, 2016, p. 544).

A imprecisão da fundada suspeita coloca em dúvida o serviço desempenhado pelas forças policiais, visto que a lei não estabeleceu qualquer parâmetro tangível que pudesse configurar o comportamento humano suspeito. Paulo Rangel (2014, p. 158) aponta que “há uma carga de subjetividade quando na ação policial que objetiva a busca em determinada pessoa, pois quando alguém será suspeito? A lei não diz. Alguém pode parecer suspeito para o policial X e não parecer para o policial Y”.

Ao analisar a fundada suspeita, Lopes Junior (2014) refere-se ironicamente ao utópico ‘mundo de fantasia’ da lei processual penal:

Mas, voltando ao mundo (de fantasia) do processo penal, a busca pessoal somente pode(ria) ser feita quando houver a “fundada suspeita” de que alguém oculte consigo arma proibida (ou sem o porte regular), ou, ainda, coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; colher qualquer elemento de convicção. (LOPES JUNIOR, 2014, p. 563).

A incerteza deixada pelo legislador é enfatizada por Rosa (2016):

A denominação “atitude/fundada suspeita” é mantra entoado e que quando se pergunta, “mas especificamente em que consistia a atitude/fundada suspeita?”, o agente não sabe responder. Quando falei sobre a percepção (5.7.), deixei sugerido que a prática da profissão e treinamento pode gerar a capacidade de os profissionais compreenderem melhor os sinais e também a leitura corporal das pessoas (5.11.). Mas a pergunta é se esse “tino”, essa “capacidade sensorial” é suficiente para a legitimidade de uma abordagem pessoal, muitas vezes humilhante, violadora, mesmo que, momentaneamente do direito de ir e vir. (ROSA, 2016, p. 273):

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A reflexão doutrinária acerca do vago conteúdo da fundada suspeita enseja o elemento subjetivo daquele que detecta a atitude de suspeição. De fato a experiência e a técnica não são o bastante para autorizar o policial a abordar e realizar busca em qualquer pessoa, simplesmente pela mera suspeita. Essa, por sua vez, deve basear-se também em critérios objetivos, caso contrário, a ação policial estará eivada de ilegalidade, incorrendo, inclusive, em abuso de autoridade, nos termos da lei 4898/65[10].

Fundada suspeita na jurisprudência

Tamanha é a incerteza quanto ao pressuposto da fundada suspeita que esse assunto alcançou discussão junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em resumo, o impetrante do Habeas Corpus (HC) 81.305, sentiu-se extremamente humilhado com uma suposta situação vexatória em função de uma abordagem e busca pessoal policial que se submeteu. Tal situação chegou ao Supremo que determinou o arquivamento do processo. Na dicção do STF:

A fundada suspeita prevista no art. 244 do CPP não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade de revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um blusão suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder[11].

Com efeito, caracterizar a fundada suspeita sob o enfoque exclusivamente subjetivo do policial ostensivo não basta para legitimar a busca pessoal. Contudo, a vagueza do termo inevitavelmente ensejará interpretações equivocadas dos agentes ostensivos, o que não quer dizer que o possível vício de interpretação configure arbitrariedade.

No acórdão proferido pelo Relator: Silvio Barbosa dos Santos da 2ª turma do TJDFT[12] foram apontadas quatro vertentes para motivar o livre convencimento daquele julgador:

APELAÇÃO CRIMINAL. DESOBEDIÊNCIA. SUBMISSÃO DE TODOS OS FREQUENTADORES DO LOCAL A BUSCA PESSOAL. NEGATIVA DO RÉU A PERMITIR A REVISTA. DÚVIDA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA PARA AUTORIZAR A BUSCA.  DENÚNCIA ANÔNIMA. RECURSO PROVIDO.

1. A busca pessoal é um meio de prova previsto no artigo 240, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal, cuja realização independe de mandado (artigo 244 do Código de Processo Penal), condicionada a fundada suspeita de que o sujeito oculte consigo arma proibida ou objetos ou papeis que constituam corpo de delito.

2. Em atenção ao aspecto invasivo e vexatório do procedimento, a própria lei reforça que a suspeita de que o indivíduo esteja ocultando consigo algum dos materiais previstos no dispositivo deve ser "fundada", ou seja, é necessário que exista indício concreto de ocorrência de alguma das situações que autorizam a busca pessoal, evitando-se submeter pessoas aleatoriamente a revista pessoal.

3. Embora a suspeita de porte de substância entorpecente ilícita possa justificar a adoção dessa medida, não se pode considerar a comunicação genérica de que havia pessoas consumindo drogas em determinado bar como indício concreto de que o apelante estava nessa situação, pois não consta dos autos que tenham sido informadas características dos suspeitos para que os policiais pudessem identificar o recorrente como um deles. Tampouco há relato de que a equipe tenha realizado alguma diligência antes da abordagem a fim de que, diante dessa informação imprecisa, eles concluíssem que o apelante poderia ser uma daquelas pessoas que supostamente estariam consumindo drogas no bar. Também não há notícia de que havia poucos clientes no estabelecimento, reunidos numa mesma mesa, de modo que aquela comunicação não poderia ser referente a outros indivíduos, senão àquele único grupo ali reunido.

4. Uma vez que não existe nos autos prova suficiente de que havia suspeita fundada de que o apelante estava em alguma das situações que justificam a busca pessoal, há dúvida acerca da legalidade da própria ordem emanada pelos policiais, de modo que o recorrente deve ser absolvido com fundamento no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal, em consonância com o princípio in dubio pro reo.

Verifica-se que o provimento do recurso baseou-se no princípio da dúvida em benefício do réu. Igualmente, pode-se concluir que se houve dúvida acerca da fundada suspeita que autorizasse a busca pessoal, também não se pode afirmar que os policiais cometeram abuso. A imprecisão do requisito que autoriza a busca pessoal carece de solução que atenda aos interesses do cidadão e que ofereça segurança jurídica para ao policial ostensivo, que rotineiramente realiza revistas em pessoas sob a fundada suspeita de que poderiam praticar ato danoso à sociedade.


5.         FATORES QUE INFLUENCIAM A SUSPEITA INFUNDADA

É preciso extirpar do contexto da fundada suspeita toda e qualquer forma pejorativa, preconceituosa e discriminatória que por ventura esteja arraigada no consciente social, sobretudo no elemento subjetivo incutido na mente do agente encarregado de fazer cumprir a lei. Aqui cumpre ressaltar que diversos fatores como a influência midiática e os discursos políticos-ideológicos corroboram para a formação desses estigmas sociais depreciativos.

A escola positivista proporcionou o estudo da criminologia, tendo como um dos principais expoentes Cesare Lombroso (1835-1909). “Lombroso pertenecía a la escuela positivista, y su novedad fué precisamente fundar um nuevo derecho penal sobre esa escuela”. (LOMBROSO, [1909], p. 20.). Por meio do método empírico, Lombroso realizou diversas pesquisas para traçar feições humanas que ensejavam o estereótipo do criminoso nato. Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli (2007),

Suas ideias desencadearam um verdadeiro escândalo ideológico e, ainda que as tenha matizado e temperado prudentemente ao longo de sua vida, sempre estiveram circunstâncias em um biologismo sumamente reacionário, que terminou oferecendo uma base às teorias racistas do crime do nacional-socialismo. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 258).

Ao promover seu estudo, Lombroso inseria na sociedade um novo (pré) conceito de criminoso, baseando-se em fatores genéticos do indivíduo, o que serviu de fundamento para a mais famosa teoria lombrosiana, a do criminoso nato. “A delinquência era, pois, para Lombroso, um fenômeno atávico: o delinquente era uma specie generis humani diferente”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 258). Suas pesquisas acabaram por influenciar outros pensadores da escola positivista, como Enrico Ferri (1856-1929).

Segundo Zaffaronni e Pierangeli (2007), Ferri admitia a existência de um criminoso predestinado a praticar delitos, mas o foco do seu estudo não era biologista, como o de Lombroso, era sociológico. Para Ferri, “em condições sociais favoráveis, o criminoso nato poderia não cometer crime algum”. Tal afirmação permite-se cogitar que em condições sociais desfavoráveis, o ‘honesto’ desprivilegiado poderia praticar crimes.

A criminologia, portanto, tivera suas origens a partir de Lombroso, contudo o caráter biologista cedeu espaço ao enfoque sociológico de Ferri que acabou evoluindo até chegar à criminologia de reação social nos Estados Unidos, onde surgiu a Labeling Approach Theory ou Teoria do Etiquetamento Social.

Esta teoria é a que pôs em relevo importantes críticas às instituições totais (GOFFMAN), ao condicionamento de carreiras criminosas, como parte do processo interativo de criminalização (BEKER, LEMERT, MATZA, CICOUREL), e a criação de um estereótipo criminoso com que se orienta a criminalização (CHAPMAN). (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 276).

Portanto, seguindo o entendimento de Zaffaroni e Perrangeli (2007), a teoria do etiquetamento social consiste nos rótulos preconceituosos atribuídos a certos indivíduos que a sociedade entende como delinquentes. O comportamento delituoso seria aquele que estivesse catalogado nas leis, e a interpretação ficaria a cargo das instituições de controle social, como o judiciário e as forças de segurança. Assim, os rótulos estipulados pela sociedade e aplicados por tais instituições contribuem para a criação do estigma social do “criminoso nato”, o qual recai sobre certos grupos sociais menos favorecidos como ocorre no Brasil.

Sobre os autores
Jânio Oliveira Donato

Advogado criminalista. Mestre em Direito Processual (2013) e Especialista em Ciências Penais (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Gestão de Instituições de Ensino Superior (2016) pela Faculdade Promove de Minas Gerais. Professor de Direito Processual Penal e Filosofia do Direito da graduação e pós-graduação das Faculdades Kennedy de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas de Minas Gerais (ABRACRIM-MG).

Renato Medeiros Rosa

Bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DONATO, Jânio Oliveira; ROSA, R. M., Renato Medeiros Rosa. Fundada suspeita: o mítico pressuposto processual que confere legalidade à busca pessoal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5643, 13 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65827. Acesso em: 27 dez. 2024.

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