Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Aspectos da capacidade civil da pessoa com deficiência à luz da Lei nº 13.146/15

Agenda 01/05/2019 às 18:00

Avaliam-se as principais modificações trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência no sistema civil de incapacidades.

A situação jurídica da pessoa com deficiência experimentou sensíveis alterações com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/15. Aludida norma, inspirada na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), de Nova York, e que passou a integrar o direito brasileiro por meio do Decreto nº 6.949/2009, disciplinou, de forma ampla, a matéria, com nítido viés inclusivo, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, a teor do disposto no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988.

O direito civil brasileiro, tradicionalmente, sempre tratou a pessoa com deficiência mental como incapaz, absoluta ou relativamente, a depender do grau de discernimento. O Código Civil de 1916, como se sabe, empregava a expressão “loucos de todo gênero”, bastante criticada pela atecnia, para classificar, como incapazes, os deficientes desprovidos de discernimento (art. 5º, II), vedando-lhes, com base nesse estado, a prática direta de atos da vida civil. Embora o deficiente mental grave, à luz do Código Civil anterior, tivesse aptidão para ser titular de direitos e obrigações, como decorrência de sua personalidade (art. 2º), não tinha possibilidade de exercê-los diretamente, faltando-lhe a chamada capacidade de fato ou de exercício.

Tal panorama não sofreu alterações significativas com o advento do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/02), sem embargo dos avanços da medicina e do longo tempo de tramitação do projeto do novo diploma. Seguindo a trilha de seu antecessor, o novo Código classificou como absolutamente incapazes aqueles que, “por enfermidade ou doença mental”, não tivessem o discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil (art. 3º, II). Por outro lado, classificou como relativamente incapazes os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os deficientes e excepcionais com “discernimento reduzido” (art. 4º, II e III). Preservou, destarte, em grande parte, a disciplina anterior, com a manutenção do status de incapaz do deficiente mental grave e com sua sujeição à curatela, cominando ainda a pena de nulidade aos atos praticados diretamente pelo absolutamente incapaz (art. 166, I).

A crítica que se fazia a tal sistema, notadamente após o advento da Constituição de 1988, era no sentido de que, embasando a incapacidade na enfermidade mental,{C}[1] com amparo, portanto, em critério médico, e sujeitando o deficiente à curatela, que em determinados casos tinha ampla abrangência, a norma praticamente privava o deficiente de existência civil, aniquilando sua individualidade, com a transferência total da prática dos atos à pessoa do curador.

Assim é que, nos deficientes com o discernimento mais severamente comprometido, a interdição podia assumir caráter quase absoluto,[2] e tal estado de coisas se mostrava - sustentavam os críticos - incompatível com a própria dignidade do deficiente, circunstância que, por certo, contribuiu para a alteração levada a efeito pela Lei nº 13.146/15. A ideia da segregação deu lugar à ideia da inclusão, adotando o novo diploma diretrizes renovadas para o tratamento jurídico dos deficientes, de forma a respeitar-lhes, tanto quanto possível, a individualidade, em sintonia com o princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade, vale lembrar, é pedra angular da vigente ordem constitucional, e consubstancia, nos dizeres da doutrina,

“um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar”{C}[3]{C}

De acordo com a Lei nº 13.146/15, o portador de deficiência mental não pode mais ser classificado como absolutamente incapaz. Suprimiu-se, do rol respectivo, existente no Código Civil, o mentalmente enfermo, remanescendo nessa categoria somente o menor de 16 (dezesseis) anos. Quanto ao mentalmente enfermo, por outro lado, foi inserido no rol dos relativamente incapazes, porém tal incapacidade é, agora, definida a partir de novo critério, qual seja, o da impossibilidade de manifestação válida da vontade, em decorrência de causa permanente ou transitória (art. 4º, III). Afastou-se, pois, o critério médico, que vigorava nos regimes anteriores. Em substituição, acolheu-se o critério da impossibilidade circunstancial de emissão da vontade, por causa permanente ou transitória.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

As pessoas com deficiência, além disso, nos termos do art. 84, caput, da Lei nº 13.146/15, passaram a ter o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Isso significa que a capacidade passou a ser a regra, e que a deficiência, isoladamente considerada, deixou de ser causa determinante de incapacidade, ainda que de grau severo. Em tais casos, de deficiência incapacitante de manifestação da vontade, a incapacidade subsistirá, porém será, como adiantado, relativa, e decorrerá, repita-se, não mais da enfermidade, mas sim da ausência de capacidade volitiva.

O mesmo art. 84, em seus parágrafos 1º e 2º, revisou o instituto da curatela, conferindo-lhe contornos mais específicos. Destacou, em primeiro lugar, a sua natureza de medida protetiva excepcional e limitada a questões patrimoniais e negociais. E vedou, de forma expressa, sua aplicabilidade aos chamados direitos da personalidade, ou direitos existenciais, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à saúde, à privacidade e outros. A curatela deverá ser imposta em processo judicial regular e as restrições aos atos do deficiente curatelado serão definidas em atenção às peculiaridades do seu caso, apuradas e definidas por equipe multidisciplinar, devendo perdurar, a medida, apenas pelo tempo em que se fizer necessária.

Ao lado da medida da curatela, a Lei nº 13.146/15 instituiu um novo mecanismo de proteção ao deficiente, inserindo, no Código Civil, o art. 1.783-A. Trata-se da tomada de decisão apoiada. Por meio de tal instituto, o deficiente terá a possibilidade de, caso seja de seu interesse, solicitar a designação de duas pessoas, com as quais mantenha proximidade e vínculos de confiança, para lhe prestarem apoio na tomada de decisões, fornecendo-lhe informações e aconselhamento. Os apoiadores nomeados assumirão formalmente o compromisso e os limites de sua atuação deverão constar, de forma expressa, do instrumento respectivo, cabendo ao magistrado dirimir eventuais divergências entre o apoiado e o apoiador. O apoiador responderá por eventual atuação negligente e, a qualquer tempo, poderá a pessoa apoiada solicitar o encerramento do vínculo, assistindo igual direito ao apoiador, que, porém, permanecerá no exercício até a dispensa formal pelo juiz.

A inserção do instituto da tomada de decisão apoiada é medida bastante salutar, uma vez que, ao mesmo tempo em que incrementará o sistema de proteção ao deficiente, atuando como medida intermediária, não prejudicará a capacidade legal do apoiado, que permanecerá íntegra. Como explica Nelson Rosenvald,

“na tomada de decisão apoiada, o beneficiário conservará a capacidade de fato. Mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil”[4]

Percebe-se, portanto, que não foram poucas as novidades trazidas pela Lei nº 13.146/15. Ela igualmente assegurou, de forma expressa, vários outros direitos das pessoas com deficiência, como o direito à moradia, ao trabalho, à cultura e à mobilidade, dentre outros. Contudo, também não serão poucas as dificuldades que surgirão da aplicação do novo diploma, que somente poderão ser superadas após um período de reflexão e uma intensa atuação da doutrina e da jurisprudência. Questões como a necessidade de revisão das curatelas já instituídas, a natureza da nulidade dos atos praticados por deficientes, se absoluta ou relativa, e a exigência de intervenção judicial para a nomeação de apoiadores, além de várias outras, deverão ser enfrentadas e solucionadas, buscando-se sempre evitar o risco de, ao invés de mais protegido, ficar o deficiente em situação de maior vulnerabilidade por influxo da nova lei, sofrendo prejuízos.[5] Necessário, contudo, que, na atividade interpretativa, tenha o aplicador do direito sempre em mente a finalidade maior da norma, que é a derrubada de barreiras para a inclusão social e comunitária cada vez maior da pessoa com deficiência.


Referências 

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed., atual. até a EC nº 48/05, São Paulo: Atlas, 2006.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v.I, 19 ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 1998.

ROSENVALD, Nelson. Estatuto da Pessoa com Deficiência: 11 perguntas e respostas. Disponível em << http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11-perguntas-e-respostas-tudo-que-voce-precisa-para-conhecer-o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia >>

TARTUCE, Flávio. Estatuto da pessoa com deficiência: Uma nota crítica. Por Zeno Veloso. Disponível em << https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/338456458/estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-uma-nota-critica >>

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. v. 6, 5 ed., São Paulo: Atlas, 2005.


Notas

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v.I, p. 171

[2] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. v. 6, p. 487

[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 16

[4] Estatuto da Pessoa com Deficiência: 11 perguntas e respostas. Disponível em << http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11-perguntas-e-respostas-tudo-que-voce-precisa-para-conhecer-o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia >>

[5] Estatuto da pessoa com deficiência: Uma nota crítica. Por Zeno Veloso. Disponível em << https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/338456458/estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-uma-nota-critica >>

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PÉREZ, Cândido. Aspectos da capacidade civil da pessoa com deficiência à luz da Lei nº 13.146/15. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5782, 1 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66152. Acesso em: 21 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!