Este artigo não pretende desenvolver um tratado sobre as teorias filosóficas delineadoras do Positivismo Jurídico, mas tão somente trazer à baila seus conceitos e princípios primordiais. Apesar das diversas acepções de Positivismo Jurídico, optou-se por delimitar o tema à obra de Hans Kelsen intitulada “Teoria pura do Direito”[1], destacando seus principais referenciais teóricos, sem, no entanto, desenvolver um estudo analítico.
Em caráter meramente introdutório ao complexo tema Positivismo Jurídico, é interessante atentar ao elucidativo fragmento que se segue:
"O paradigma vigente é uma construção teórica forjada e consolidada no decorrer da modernização sócio-econômica do país, entre os anos 60 e 80, e é vinculado ao caráter normativista do positivismo de inspiração kelseniana. Este paradigma considera o Estado como fonte central de todo o Direito e a lei como sua única expressão, formando um sistema fechado e formalmente coerente, cuja pretensão de “completude” despreza, como já dito, no designativo de “metajurídicas”, todas as indagações de natureza social, política e econômica" [2]
Como se percebe do texto supramencionado, a doutrina Positivista tem como fundamento nodal seu apego ao formalismo legal, sendo a norma jurídica o eixo de sustentação do Direito. Faz frente às correntes idealistas, principalmente àquelas que sustentam a existência de princípios absolutos aplicáveis a todos os seres humanos, como o Direito Natural. Os positivistas limitam-se à ordem do ser, emitindo juízos da realidade (diferentemente dos idealistas, que exprimem juízos de valor), transpondo a investigação jurídica, sempre que possível, os métodos das ciências naturais.[3]
Dentro do Positivismo Jurídico há diferentes escolas, das mais radicais às liberais moderadas, com uma linha de pensamento semelhante, mas com alguns traços característicos particulares do momento histórico em que surgiram. Indubitavelmente o ponto convergente de todas é o tecnicismo formal, limitando-se a identificar o Direito com a lei, mediante uma interpretação literal dos preceitos normativos. Paulo Nader[4] assim descreve sua visão do Positivismo:
"Os positivistas estreitam o campo de abordagem do Direito, limitando-se à análise do Direito Positivo. O Direito é a lei; seus destinatários e aplicadores devem exercitá-la sem questionamento ético ou ideológico. Para eles não existe o problema da validade das leis injustas, pois o valor não é objeto da pesquisa jurídica. Quanto à justiça, consideram apenas a legal, mesmo porque não existiria a chamada justiça absoluta. O ato da justiça consiste na aplicação da regra ao caso concreto. Os positivistas não aceitam a influência dos elementosextralegem na definição do Direito Objetivo."[5]
Apesar das diversas acepções de Positivismo Jurídico, elegeu-se para análise a obra de Hans Kelsen intitulada “Teoria Pura do Direito”[6]. Não se trata de tentar refutar ou questionar a teoria em voga - até porque seria de absurda audácia – e nem tampouco de fazer um estudo analítico de toda a obra, mas apenas de destacar seus principais referenciais teóricos, de modo que o leitor, ainda que desconheça preceitos básico do Direito, possa compreender as acepções medulares do Positivismo Kelseniano.
Kelsen descreve dois mundos distintos e independentes: o dever-ser e o ser. O autor entende não poder aprofundar a distinção entre eles, pois é algo que se faz naturalmente, “um dado imediato de nossa consciência”[7]. O Direito integra a realidade do dever-ser; o que quer dizer que as normas são ditames que descrevem como deve figurar a conduta social dos sujeitos submissos ao poder estatal e não como verdadeiramente é. Mutatis mutandis, no Direito, diferentemente do que ocorre nas Ciências Naturais, os fenômenos acontecem irregularmente, de forma não algébrica, sendo necessária a tutela jurídica em diversas oportunidades em que são praticados[8]. Entendendo os preceitos legais como enunciados cogentes pertencentes ao mundo do dever-ser, o autor conceitua o que seriam as normas, conforme se verifica, ipsis literis:
"‘Norma’ é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto é importante salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e ao ato de vontade de que ela constitui sentido é um ser. Por isso, a situação fática perante a qual nos encontramos na hipótese de tal ato tem de ser descrita pelo enunciado seguinte: um indivíduo quer que o outro se conduza de determinada maneira. A primeira parte refere-se a um ser, o ser fático do ato de vontade; a segunda parte refere-se a um dever-ser, a uma norma como sentido do ato."[9]
Para Kelsen, “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma”[10]. Dessa forma, normas inferiores encontram sua legitimidade em normas superiores, ou seja, uma norma jurídica regula o procedimento de elaboração de outra norma jurídica, em uma relação de silogismo. Nesse contexto, o intento da Constituição, também chamada de Norma Fundamental, é “fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é, das normas, postas através de atos de vontade humanos, de uma ordem coercitiva globalmente eficaz”[11]. É, portanto, a base legitimadora e condicionante de validade de todo o ordenamento vigente.
A grande questão enfrentada pelo autor nesse ponto foi o fato de não ter a Constituição uma norma positivada que lhe conferisse validade jurídica. Entendeu Kelsen que, diferentemente das demais normas jurídicas, a norma fundamental não surge de um órgão criador e não adquire validade por ter sido criada por um ato jurídico, mas simplesmente por ter sido pressuposta como válida, enquanto base de uma construção silogística das demais normas.[12] Com fulcro no entendimento apresentado, é possível identificar o pensamento Kelseniano sobre o objeto da Ciência Jurídica.
O autor considera que “uma teoria do Direito, deve, antes de tudo, determinar conceitualmente seu objeto” [13]. Utilizando-se da força da linguagem, chega à conclusão de que, em todas as línguas, o termo “direito” se apresenta como ordem de conduta humana, regulada pelas normas, que somente integram legitimamente uma ordem jurídica quando compatíveis com a Norma Fundamental.[14] Para Kelsen, a norma constitui o principal objeto do Direito, que é visto como “uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regula o comportamento humano. Com o termo ´norma` se quer significar que algo deve ser ou acontecer”.[15]
Dessa forma, o ilustre pensador atribuiu ao Direito a função de analisar as normas, que já comportam em sua estrutura os elementos axiológicos da sociedade, ou seja, as normas já disciplinam as relações sociais, prescindindo de qualquer análise sociológica ou psicológica. Nesse sentido, preceitua Paulo Nader: “Kelsen atribuiu à Ciência do Direito o estrito papel de analisar as normas jurídicas e divisou à Ética, Sociologia e Política a função de submeter o Direito à crítica do conteúdo”.[16]
Percebe-se, portanto, que o Direito é um emaranhado de normas que regulamenta as condutas sociais e são legitimadas pela Norma Fundamental, prescindindo de valoração legitimadora. Isso não quer dizer que Kelsen, que atribuiu caráter extremamente normativista a sua obra, ignora as ordens valorativas, mas apenas que ele não as considera como necessárias ao aspecto jurídico das normas, que por si só já contêm todos os elementos necessários à apreciação judicial. Paulo Nader entende que, para Kelsen, a busca da legitimação fora do quadro normativo é admitida, mas como problema metajurídico, que deve ser apreciado por esferas espirituais (filosofia, sociologia, política, religião, metafísica)[17], não pelo Direito.
Desse ponto, é importante passar à análise da hermenêutica de normas internas preconizadas por Kelsen para que se possa entender o posicionamento do autor de enxergar a norma como o elemento norteador da interpretação jurisdicional (enfoca-se, portanto, na interpretação pelo órgão que aplica a norma e não dos particulares que devem segui-la[18]).
O autor entende que a interpretação é uma operação mental que surge no processo de aplicação do Direito[19]. Considera, nesse turno, que a norma é o próprio esquema de interpretação, isto é, deve o julgador, em sua função interpretativa, basear-se nos enunciados legais. Nesse sentido ressalta:
"A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa."[20]
Utiliza-se, assim, de uma resposta epistemológica para não recorrer a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza (em confronto ao Direito natural), no momento da interpretação: o operador deve pautar-se pelo que a Constituição escreve. A Constituição, como foi visto, estabelece os limites da produção legislativa, vinculando as leis hierarquicamente inferiores. Ocorre que para Kelsen, diferentemente do que dizem os radicais exegetas, a determinação normativa nunca é completa, ou seja, resta sempre uma margem de livre apreciação do julgador, dado o singelo grau de indeterminação que exsurge da lei. Entretanto, essa esfera de liberdade e subjetivismo na análise do julgador é sempre limitada por uma moldura jurídica: o ordenamento hierarquicamente superior que a legitima[21]. Veja-se, verbis:
"O Direito a aplicar a forma, em todas as hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível."[22]
Com efeito, o juiz, isto é, o agente público que tem a incumbência de aplicar a lei ao caso concreto, segundo a Teoria Pura, cria o Direito através de uma norma válida às partes envolvidas. É o que Kelsen disciplina como retratação da atividade jurisprudencial, quando da interpretação surge uma norma individualizada, sem atrelamento a elementos filosóficos ou sociológicos. Kelsen desconsidera, assim, normas de moral e éticas na aplicação da legislação ao caso concreto, assumindo que essas são desprovidas de validade aos olhos do Direito Positivo.
Outro aspecto relevante a ser mensurado refere-se à questão das lacunas no ordenamento.
Kelsen entende que a interpretação jurídica deve pautar-se pelas normas já existentes, não podendo utilizar-se da criação de novas normas por via do conhecimento, como faz a “jurisprudência conceitual”. Nesse diapasão, ainda nega a existência, do ponto de vista positivista, de lacunas autênticas, já que o ordenamento está integrado e coeso. Mas, se mesmo assim se aventa a existência de lacunas, é necessário considerá-las como uma indeterminação que decorre da moldura da norma e que deve ser preenchida pela interpretação, sem que seja permitido o julgamento pelo magistrado no lugar da lei. [23]
Para a “Teoria Pura do Direito”, a indeterminação das normas, que acaba deixando espaços na lei que serão preenchidos pelo aplicador, não pode ser utilizada ao livre contento do pretor, sob pena de se ter prejudicada a legalidade e, por consequência, a validade das normas em geral[24]. Assim conclui Kelsen:
A autorização para eliminar a lei é formulada de modo que o aplicador do Direito não se valha do extraordinário poder que lhe é realmente transferido. O executor do direito deve pensar que só não deve aplicar a lei nos casos em que não possa ser aplicada, por não conter em si nenhuma possibilidade de aplicação. Ele deve saber que só é livre quando ele próprio puder fazer as vezes do legislador, não porém sob outro aspecto: quando tiver de se colocar no lugar do legislador.[25]
CONCLUSÃO
O Positivismo Jurídico passou pela Escola da Exegese, onde havia um legalismo extremado, ao modelo Pandectista (marcado por um legalismo mitigado pela possibilidade da utilização de outras fontes no processo interpretativo), chegando ao normativismo dogmático Kelseniano, um dos principais (porém, longe de ser o único) estirpes positivistas da história, que só permitia a interpretação da norma nos limites da “moldura” - sendo o Estado a única fonte de produção legal.
O modelo recebeu severas críticas por parte de correntes não-juspositivistas, especialmente dos que defendem a necessidade de atrelar valores sociais à hermenêutica das lei, conforme se percebe:
“O modelo Kelseniano de Direito cria, então, uma teoria Jurídica formal; uma ciência jurídica destituída de critérios do valor de justiça ou de qualquer conexão com a realidade social. A validade de uma norma condiciona-se apenas à sua vigência, isto é, à capacidade formal de validade por vigorar num sistema jurídico. (...) os comando legais não podem ficar desvinculados do contexto histórico cultural e do valor de justiça. Logo, a Teoria Pura do direito peca por sobrepor a cientificidade à realidade, e por exaltar a forma lógico jurídica em detrimento do conteúdo ético-justo” [26]
Certo é que, embora seja possível contrapor argumentos infindáveis às bases filosóficas defendidas por Hans Kelsen (o que ficará para um próximo artigo), sua visão ainda hoje é amplamente difundida, servindo de pressuposto teórico a decisões judiciais em todo o mundo.
BIBLIOGRAFIA
[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. (tradução João Baptista Machado). São Paulo:Martins Fontes, 1991.
[2] FREITAS FILHO, Roberto. Crise do direito e juspositivismo: A exaustão de um paradigma. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 40-41.
[3] NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 175.
[4] Optou-se por utilizar a visão de Paulo Nader por mera liberalidade. Outros teóricos poderiam ter sido citados. O intuito é somente demonstrar a percepção de um jurista renomado que, apesar de parcial em sua opinião, é estranho àqueles que construíram a base teórica do Positivismo Jurídico.
[5] NADER, Paulo. Op.cit., p. 175.
[6] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. (tradução João Baptista Machado). São Paulo: Martins Fontes, 1991.
[7] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. (tradução João Baptista Machado). São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 6.
[8] Ibidem, p. 86-90.
[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 5.
[10] Ibidem, p. 205.
[11] Ibidem, p. 168.
[12] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 1945, 2000 (tradução), p. 170.
[13] Idem. Teoria pura do direito. 5. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 33.
[14] Ibidem, p.33.
[15] Ibidem, p. 5.
[16] NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 196.
[17] NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 198.
[18] Ibidem, p.388.
[19] Ibidem, p. 388.
[20] NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 4.
[21] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 388.
[22] Ibidem, p. 390.
[23] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Versão condensada pelo próprio autor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 119.
[24] Ibidem, p. 123.
[25] Ibidem, p. 123.
[26] XAVIER, Bruno de Aquino Parreira. Direito Alternativo: uma contribuição à teoria do direito em face da ordem injusta. Curitiba: Juruá Editora, 2002. p. 34-38.