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A ilegalidade dos juros do ICMS do Estado de São Paulo

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Agenda 14/06/2018 às 15:46

A competência legislativa do Estado na instituição de taxa de juros é questionada quanto à sua constitucionalidade e aspectos formais e materiais.

A presente obra aborda questão polêmica a respeito da competência legislativa do Estado na instituição de taxa de juros, sua inconstitucionalidade e seus aspectos formais e materiais e as razões para o afastamento de sua aplicação. (LEI Nº 13.918, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2009)


Introdução

No exercício de sua competência legislativa, o Estado de São Paulo instituiu os juros de mora por meio da Lei 13.918/09.

Os juros de mora em matéria tributária, incidentes sobre os impostos estaduais, são exigidos do contribuinte sempre que houver atraso no pagamento.

Sempre que exigidos, os juros de mora devem ser cobrados com a finalidade exclusivamente indenizatória.

Ocorre que os juros de mora do Estado de São Paulo, são cobrados em valor que superam, e muito, a taxa de juros utilizada para cobrança dos créditos tributários federais.

No Brasil a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, detém competência legislativa.

Com relação à essa competência legislativa, a Constituição Federal adotou o princípio da preponderância do interesse, subdividindo a competência legislativa entre os entes federados.

No passado não se sabia ao certo se a instituição dos juros de mora estavam dentre as competências privativas da União, ou da competência concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal.

Havia dúvida a respeito da natureza jurídica dos juros de mora para o fim de definir de quem seria a competência legislativa para editar leis sobre a questão.

Diante disso, a jurisprudência buscou interpretar a questão mais a fundo, a fim de conceituar o instituto e estabelecer os limites da competência para instituição dos juros de mora.

Nesse passo, com base na construção promovida pela doutrina e jurisprudência, a discussão foi concluída e os juros de mora foram considerados como parte integrante do instituto de direito financeiro.

Partindo desse pressuposto, evidente que estávamos diante de um caso de competência concorrente.

O artigo 24, da Constituição Federal estabelece os casos em que haverá competência legislativa concorrente entre a União, na edição de normas gerais, e os Estados e o Distrito Federal, de forma concorrente.

A partir de então não restou dúvida a respeito da competência concorrente entre os Estados e o Distrito Federal com a União Federal, para a instituição de taxa de juros de mora em matéria tributária.

A legislação paulista, em plena inobservância dos critérios de competência concorrente, editou os juros de mora em patamar superior ao determinado pela lei federal, em descompasso com os seus limites legislativos.

Nesse contexto, evidente que a existência de lei federal torna ineficaz a lei estadual no tocante à parte que lhe for contraria.

Essa questão foi tratada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que reconheceu a inconstitucionalidade dos artigos 85 e 96 da Lei 13.918/09, para que não exceda aquela incidente na cobrança dos tributos federais (SELIC).

Atualmente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tem acolhido a tese com facilidade, sem discussões teratológicas a respeito do entendimento firmado pelo Órgão Especial.

Porém, os órgãos de julgamento administrativo ainda não acolhem a tese, apensar de sinalizarem uma mudança de posicionamento, há extrema relutância para acompanhar o entendimento das decisões judiciais.

Isso se da em razão da legislação administrativa prever que apenas poderá ser levado em consideração, para fins de alteração de posicionamento, os julgamentos promovidos pelo Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade.


1. Do Conceito de Juros de Mora

Sílvio Rodrigues define os Juros como:

"Juro é o preço do uso do capital. Vale dizer, é o fruto produzido pelo dinheiro, pois é como fruto civil que a doutrina o define. Ele há um tempo remunera o credor por ficar privado de seu capital e paga-lhe o risco em que incorre de o não receber de volta."1

De Plácido e Silva, por sua vez, define:

"Juros, no sentido atual, são tecnicamente os frutos do capital, ou seja, os justos proventos ou recompensas que deles se tiram, consoante permissão e determinação da própria lei, sejam resultantes de uma convenção ou exigíveis por faculdade inscrita em lei."2

Os juros podem ser compensatórios ou moratórios, a depender de sua natureza.

Os juros compensatórios constituem remuneração pelo uso temporário do capital de um terceiro.

A doutrina especializada leciona que:

“Entende-se por juros o que o credor pode exigir pelo fato de ter prestado3 ou de não ter recebido o que se lhe devia prestar

(...)

Os juros moratórios são usurae punitorieae. (...) Juros moratórios não se infligem por lucro dos demandantes, mas por mora dos solventes.”3

A distinção entre os juros compensatórios e os moratórios, também é tratada pela doutrina:

“Quando compensatórios, os juros são os frutos do capital empregado e nesse sentido é que melhor assenta o conceito acima formulado. Quando moratórios, constituem indenização pelo prejuízo resultante do retardamento culposo.”4

Igor Mauler Santiago define os juros de mora como:

“Os juros de mora, ao seu turno, correspondem à indenização ao dano causado por aquele que não paga dívida no vencimento ou não restitui no instante apropriado dinheiro alheio de que tenha a posse.”5

Explica ainda, com relação aos juros em matéria tributária, que:

“a inadimplência tributária obriga o Fisco a tomar empréstimos e a pagar juros (agora remuneratórios) que de outro modo não pagaria. Este — o valor dos juros vertidos às instituições financeiras — o prejuízo oriundo da impontualidade do contribuinte”6

Esta, aliás, é a mesma posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que entendeu haver caráter indenizatório dos juros de mora:

“A questão é simples e está ligada à natureza jurídica dos juros moratórios, que a partir do novo Código Civil não mais deixou espaço para especulações, na medida em que está expressa a natureza indenizatória dos juros de mora.”7

Nesse passo, é importante lembrar que as taxas de juros devem sempre ser vinculadas ao seu critério instituidor.

Em outras palavras, os juros de mora devem ter caráter exclusivamente indenizatório. Caso contrário, adotaria uma feição punitiva, que no direito tributário, como as previstas nas multas de mora, que se prestam para punir o Contribuinte inadimplente ou impontual.

Igor Mauler Santiago aponta que:

“Não se trata decerto de pedir ao Judiciário que fixe taxa de juros de mora compatível com a realidade (atuação como legislador positivo), mas apenas que nulifique as taxas claramente desvinculadas dela (atuação como legislador negativo), o que restaurará automaticamente o regime da Lei estadual 10.175/98, a qual não por acaso optava pela Selic.”8

Com efeito, nada justifica taxas ao redor dos 40%, como as que tem cobrado e pretende continuar a cobrar o Estado de São Paulo, tanto mais quando se lembra que, ao lado dos juros, exigem-se ainda multas de mora em percentuais sempre expressivos, e que cabe exclusivamente a estas, e nunca aos juros, a função de punir o contribuinte inadimplente ou impontual.”9

Sacha Calmon, lastreado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ensina:

“Discute-se muito na doutrina a natureza jurídica da multa aplicada por falta, insuficiência ou intempestividade no pagamento do tributo.

O ponto de interesse da quaestio juris está na discussão sobre se é punitiva ou ressarcitória a ‘multa moratória’ (a que sanciona o descumprimento da obrigação tributária principal).

Vamos nos impor — pelo caráter limitado dessa dissertação — o dever de não adentrar a doutrina pátria e peregrina a respeito do assunto.

Bastar-nos-á a ressonância da problemática na Suprema Corte brasileira. O debate, também ali, é sobre se a multa moratória tem caráter punitivo ou é indenização (civil).

O ministro Cordeiro Guerra, louvando-se em decisão de tribunal paulista, acentuou que as sanções fiscais são sempre punitivas, desde que garantidos a correção monetária e os juros moratórios.

Com a instituição da correção monetária, qualquer multa passou a ter caráter penal, in verbis: ‘a multa era moratória, para compensar o não pagamento tempestivo, para atender exatamente ao atraso no recolhimento.

Mas, se o atraso é atendido pela correção monetária e pelos juros, a subsistência da multa só pode ter caráter penal’.

Relatando o Recurso 79.625, sentencia que ‘não disciplina o CTN as sanções fiscais de modo a estremá-las em punitivas ou moratórias, apenas exige sua legalidade’.

A multa moratória não se distingue da punitiva e não tem caráter indenizatório, pois se impõe para apenar o contribuinte, observa o Ministro Moreira Alves, seguindo Cordeiro Guerra, in verbis:

‘Toda vez que, pelo simples inadimplemento, e não mais com o caráter de indenização, se cobrar alguma coisa do devedor, este algo que se cobra a mais dele, e que não se capitula estritamente como indenização, isso será uma pena... e as multas ditas moratórias... não se impõem para indenizar a mora do devedor, mas para apená-lo.’”10

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Em síntese, a correção monetária mantém o valor da dívida, os juros de mora indenizam e as multas de mora punem.

A natureza indenizatória dos juros de mora, já havia sido tratada, inclusive, no Código Civil de 1916, em seu artigo 1.061, atualizada pelo art. 404. do Código Civil de 2002. Vejamos:

“Art. 1.061. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, consistem nos juros da mora e custas, sem prejuízo da pena convencional.”11

“Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.”

Em que pese não ser aplicado em matéria tributária, retrata de forma clara que os juros de mora não bastam para recompor o patrimônio do credor, evidenciando sua natureza indenizatória.

É certo que, os juros de mora em matéria tributária, em razão do seu caráter indenizatório, devem guardar proporção compatível com a realidade, observando as disposições legais e os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de onerar excessivamente o contribuinte.

Não há nada que justifique a aplicação de juros de mora de modo excessivo, desviando seu caráter indenizatório para obter vantagem econômica com fim exclusivamente arrecadatório.

Nesse caso, com a cobrança excessiva, os juros de mora, diferentes da utilidade que lhe é devida, tomaria contornos confiscatórios.

Logo, a taxa de juros de mora deve, obrigatoriamente, guardar a função de complemento indenizatório da obrigação principal.


2. Da Instituição­ dos Juros de Mora no Estado de São Paulo

Historicamente, o Estado de São Paulo instituiu em 1º de março de 1989, a Lei nº 6.374, que trata do Imposto sobre Operações Relativas a Circulação de Mercadorias e Sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS)12.

A redação original do art. 97, da referida Lei, previa que a apuração do débito quando não liquidado em época própria, seria por UFESP (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo), cujo valor era corrigido pelo Índice de Preço ao Consumidor (IPC).

“Artigo 97 - O débito fiscal, não liquidado nas épocas próprias, fica sujeito à correção monetária do seu valor.

§ 1º - O débito fiscal corrigido monetariamente deve ser:

1 - relativamente ao imposto, o resultado da multiplicação do débito pelo coeficiente obtido com a divisão do valor nominal de uma UFESP no mês em que se efetive o pagamento:”

O art. 96, tratou da incidência dos juros no caso de inadimplemento tempestivo, determinando a incidência de juros de 1% (um por cento) ao mês ou fração.

“Artigo 96 - O imposto fica sujeito a juros de mora, não capitalizáveis, que incidem:

I - a partir do dia seguinte ao do vencimento, caso se trate de imposto declarado ou transcrito pelo fisco nos termos dos artigos 56 e 58, de parcela devida por contribuinte enquadrado no regime de estimativa e de imposto exigido em auto de infração, nas hipóteses das alíneas "b", "c", "d", "e", "f", "g" e "h" do inciso I do artigo 85;

II - a partir do dia seguinte ao último do período abrangido pelo levantamento, caso se trate de imposto exigido em auto de infração na hipótese da alínea "a" do inciso I do artigo 85;

III - a partir do mês em que, desconsiderada a importância creditada, o saldo tornar-se devedor, caso se trate de imposto exigido em auto de infração, nas hipóteses das alíneas "a", "b", "c", "d" e "g" do inciso II do artigo 85;

IV - a partir do dia seguinte àquele em que ocorra a falta de pagamento, nas demais hipóteses.

§ 1º - Os juros são de 1% (um por cento) por mês ou fração, considerando-se:

1 - mês, o período iniciado no dia 1º e findo no respectivo último dia útil;

2 - fração, qualquer período de tempo inferior a um mês, ainda que igual a um dia.

§ 2º - O valor dos juros deve ser fixado e exigido na data do pagamento do débito fiscal, incluindo-se esse dia.

§ 3º - Na hipótese de auto de infração pode o regulamento dispor que a fixação do valor dos juros se faça em mais de um momento.”

Esse sistema durou até a publicação da Lei nº 10.17513, de 30 de dezembro de 1998, que alterou a Lei nº 6.374/89, dispondo acerca da nova taxa de juros de mora incidente sobre os impostos estaduais, além da suspensão da atualização monetária.

O art. 1. estabeleceu que a taxa de juros de mora seria equivalente a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC), acumulada mensalmente.

“Artigo 1º - Os impostos estaduais, não liquidados nos prazos previstos na legislação própria, ficam sujeitos a juros de mora.

(...)

§ 1º - A taxa de juros de mora é equivalente:

1 - por mês, a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia- SELIC, para títulos federais, acumulada mensalmente;”

A SELIC foi instituída pela Lei nº 9.25014, de 26 de dezembro de 1995, e regulamentada pela Resolução nº 1.124/8615, do Conselho Monetário Nacional16.

Ela corresponde à taxa média ajustada dos financiamentos apurados nos títulos federais pelo Banco Central do Brasil (BACEN).

Após 2 anos de vigência a Lei 10.175/98 foi modificada pela Lei nº 10.61917, de 19 de julho de 2000, que passou a apurar os tributos estaduais em moeda (real) e não mais em UFESP, com a incidência de juros de mora calculados pela SELIC, desde que não inferior a 1% (um por cento) ao mês.

Entretanto, após a publicação de Lei nº 13.91818, de 22 de dezembro de 2009, que alterou mais uma vez a redação do artigo 96 da Lei nº 6.374/89, os juros foram elevados para 0,13% (treze centésimos de por cento) ao dia.

“Art. 96, § 1º. A taxa de juros de mora será de 0,13% (treze décimos por cento) ao dia.

§ 2º. O valor dos juros deve ser fixado e exigido na data do pagamento do débito fiscal, incluindo-se esse dia.

§ 3º. Na hipótese de auto de infração, pode o regulamento dispor que a fixação do valor dos juros se faça em mais de um momento.

§ 4º. Os juros de mora previstos no § 1º deste artigo, poderão ser reduzidos por ato do Secretário da Fazenda, observando-se como parâmetro as taxas médias pré-fixadas das operações de crédito com recursos livres divulgadas pelo Banco Central do Brasil.

§ 5º. Em nenhuma hipótese a taxa de juros prevista neste artigo poderá ser inferior à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente.” (grifou-se)

No exercício de suas atribuições, o Secretário de Fazenda editou a Resolução SF nº 98/2010, que estabeleceu o seguinte:

“Art. 1º. A taxa de juros de mora prevista no § 4º do artigo 96 da Lei nº 6.374, de 1º de março de 1989, será calculada com base na taxa média préfixada das operações de crédito com recursos livres referenciais para taxa de juros – desconto de duplicatas, divulgada pelo Banco Central do Brasil.

Art. 2º, § 3º. Em nenhuma hipótese a taxa de juros de mora poderá ser superior a 0,13% (treze décimos por cento) ao dia ou inferior à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente, nos termos dos §§ 1º e 5º do artigo 96 da Lei 6.374, de 1º de março de 1989.

(...)

Art. 6º. Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de 01 de janeiro de 2011.” (grifou-se)

Note que a elevada taxa de juros prevista na legislação paulista estabelece patamar mínimo, não inferior à SELIC.

Evidente que a incidência de juros de mora em patamar superior à SELIC, índice federal, constitui afronta direta à competência legislativa da União nos termos do texto da Constituição Federal de 1.988, conforme passará a ser abordado no presente estudo.


3. Da Competência Legislativa Constitucional

Segundo Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, a Constituição Federal de 1.988 adotou como critério para a repartição de competências entre os diferentes entes federativos o denominado princípio da predominância do interesse19.

Referido princípio impõe a outorga de competência de acordo com o interesse predominante quanto a matéria. Em outras palavras, parte-se do pressuposto que há assuntos que, por sua natureza, devem, essencialmente, ser tratados de forma uniforme em todo o território nacional e outros em que é possível haver tratamento regional ou local.

Assim, a autonomia dos entes federativos, com fundamento no princípio da predominância do interesse, pressupõe a repartição de competências.

Nas palavras de Fernanda Dias Menezes de Almeida:

“Parece-nos, efetivamente, que a utilização das competências concorrentes, como idealizada, atende aos desígnios de se chegar a maior descentralização, sem prejuízo da direção uniforme que se deva imprimir a certas matérias.

Numa palavra, o caminho que se preferiu é potencialmente hábil a ensejar um federalismo de equilíbrio, que depende, embora, como não se desconhece, também de outras providências.”20

No sistema adotado pela Constituição Federal, as competências são repartidas horizontalmente, quando privativas e verticalmente, quando concorrentes ou delegadas.

Embora deve-se anotar que, ainda, conquanto a regra seja a enumeração expressa das competências da União e dos municípios e a outorga da competência remanescente aos Estados, quando se trata de competência tributária, não foi esse o modelo adotado pela Constituição Federal.

Em matéria tributária foi adotada a enumeração expressa das competências de todas as entidades federativas, ou seja, a Constituição indicou expressamente quais tributos que cada ente federado poderá instituir, sempre com a competência residual para a União Federal.

Norteado pelo referido princípio, o texto constitucional prevê em seus artigos 21 e 22 da Constituição Federal, as competências legislativas privativas da União, indicando em seu rol as matérias sobre as quais somente normas federais poderão dispor.

“Art. 21. Compete à União:

I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;

II - declarar a guerra e celebrar a paz;

III - assegurar a defesa nacional;

IV - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente;

V - decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal;

VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;

VII - emitir moeda;

VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;

IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;

XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;

d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;

XIII - organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e a Defensoria Pública dos Territórios;

XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio;

XV - organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;

XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;

XVII - conceder anistia;

XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações;

XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso;

XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;

XXI - estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação;

XXII - executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:

a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;

b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais;

c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas;

d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa;

XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;

XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa.

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

II - desapropriação;

III - requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra;

IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

V - serviço postal;

VI - sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais;

VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;

VIII - comércio exterior e interestadual;

IX - diretrizes da política nacional de transportes;

X - regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial;

XI - trânsito e transporte;

XII - jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia;

XIII - nacionalidade, cidadania e naturalização;

XIV - populações indígenas;

XV - emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros;

XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;

XVII - organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios, bem como organização administrativa destes;

XVII - organização judiciária, do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e da Defensoria Pública dos Territórios, bem como organização administrativa destes; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 69, de 2012) (Produção de efeito)

XVIII - sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia nacionais;

XIX - sistemas de poupança, captação e garantia da poupança popular;

XX - sistemas de consórcios e sorteios;

XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;

XXII - competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais;

XXIII - seguridade social;

XXIV - diretrizes e bases da educação nacional;

XXV - registros públicos;

XXVI - atividades nucleares de qualquer natureza;

XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, nas diversas esferas de governo, e empresas sob seu controle;

XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

XXVIII - defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa civil e mobilização nacional;

XXIX - propaganda comercial.

Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.”

Não há previsão constitucional que autorize a delegação da competência exclusiva da União aos demais entes federados (art. 21, CF). Mesmo diante da omissão da União na criação de normas de sua competência, os demais entes federados não detêm competência para suprir a inércia legislativa.

Vale dizer que, os demais entes federados não dispõem de competência para legislar sobre as matérias arroladas no artigo 21, sob pena de inconstitucionalidade.

Porém, o parágrafo único do art. 22. da Constituição Federal autoriza que a União delegue sua competência por Lei Complementar, aos Estados e ao Distrito Federal. Em outras palavras, as matérias de competência privativa da União autorizam a sua delegação.

Por outro lado, o art. 24, da Constituição Federal, estabelece a competência legislativa concorrente ao dispor que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

“I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

II - orçamento;

III - juntas comerciais;

IV - custas dos serviços forenses;

V - produção e consumo;

VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;

VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

IX - educação, cultura, ensino e desporto;

IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015)

X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;

XI - procedimentos em matéria processual;

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

XIII - assistência jurídica e Defensoria pública;

XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

XV - proteção à infância e à juventude;

XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.”

A atribuição concorrente, também chamada de repartição vertical de competência legislativa, autoriza diferentes entes a, de forma legítima, legislar sobre as respectivas matérias.

Nesse âmbito, a União limitar-se-á a estabelecer normas gerais, não excluindo a competência suplementar dos Estados e do Distrito Federal (art. 24, §1, CF).

É evidente que estamos diante de uma regra de subordinação entre a União, na edição de normas gerais, e os Estados e o Distrito Federal, na complementação mediante normas específicas.

Assim, a União edita a lei de normas gerais e os Estados e o Distrito Federal suplementam a legislação federal editando normas específicas, nos limites das normas gerais.

Nesse caso, a atuação dos Estados e do Distrito Federal não está condicionada à atuação prévia da União, podendo legislar, inclusive, estabelecendo tanto normas gerais quanto específicas.

No exercício da competência suplementar complementar, os Estados e o Distrito Federal editam normas específicas, quando já existentes normas gerais, editadas pela União.

No tocante, quando da omissão da União, haverá o exercício da competência suplementar supletiva, que é outorga tácita da competência legislativa plena aos Estados e ao Distrito Federal.

A competência suplementar supletiva, em que pese autorizar seu exercício pleno pelos Estados e o Distrito Federal, estão limitadas às regras e princípios constitucionais.

Importante lembrar, também, que a competência legislativa plena dos Estados e do Distrito Federal não é definitiva.

Com a superveniência, mesmo que ulterior, de norma constitucional, haverá a suspensão da eficácia da lei estadual naquilo que lhe for contrária.

O Supremo Tribunal Federal já abordou questão relativa a superveniência de norma federal nos seguintes termos:

“Lei 10.820/1992 do Estado de Minas Gerais, que dispõe sobre adaptação dos veículos de transporte coletivo com a finalidade de assegurar seu acesso por pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção. (...) Como, à época da edição da legislação ora questionada, não havia lei geral nacional sobre o tema, a teor do § 3º do art. 24. da CF, era deferido aos Estados-Membros o exercício da competência legislativa plena, podendo suprir o espaço normativo com suas legislações locais. A preocupação manifesta no julgamento cautelar sobre a ausência de legislação federal protetiva hoje se encontra superada, na medida em que a União editou a Lei 10.098/2000, a qual dispõe sobre normas gerais e critérios básicos de promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência. Por essa razão, diante da superveniência da lei federal, a legislação mineira, embora constitucional, perde a força normativa, na atualidade, naquilo que contrastar com a legislação geral de regência do tema (art. 24, § 4º, CF/1988).”21

A suspensão da eficácia, pela inobservância da lei federal, se refere aos procedimentos e pressupostos relativos às características de formação da lei.

A suspensão da eficácia não se confunde com a revogação.

Diferente da revogação, na suspensão a norma não é retirada do ornamento jurídico, coexistindo no ordenamento jurídico. Porém, seus efeitos permanecem suspensos, sem incidir, enquanto perdurar a suspensão.

O julgamento da ADI nº 3.098, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, pelo Supremo Tribunal Federal, aborta de forma didática a questão:

"O art. 24. da CF compreende competência estadual concorrente não cumulativa ou suplementar (art. 24, § 2º) e competência estadual concorrente cumulativa (art. 24, § 3º).

Na primeira hipótese, existente a lei federal de normas gerais (art. 24, § 1º), poderão os Estados e o Distrito Federal, no uso da competência suplementar, preencher os vazios da lei federal de normas gerais, a fim de afeiçoá-la às peculiaridades locais (art. 24, § 2º); na segunda hipótese, poderão os Estados e o Distrito Federal, inexistente a lei federal de normas gerais, exercer a competência legislativa plena ‘para atender a suas peculiaridades’ (art. 24, § 3º).

Sobrevindo a lei federal de normas gerais, suspende esta a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (art. 24, § 4º).

A Lei 10.860, de 31-8-2001, do Estado de São Paulo foi além da competência estadual concorrente não cumulativa e cumulativa, pelo que afrontou a CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX, § 2º e § 3º."22

Essa é a solução adotada pela Constituição Federal na solução de conflito entre lei estadual e lei federal no âmbito da competência concorrente.

Pode-se falar, inclusive, quando da criação de lei conflitante, na existência de vício formal na criação da lei que não observa a existência de causa suspensiva de eficácia.

Segundo Gilmar Mendes, “os vícios formais traduzem defeito de formação do ato normativo, pela inobservância de princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de competência”.23

Segundo leciona Paulo Bonavides:

“Confere ao órgão que o exerce a competência de examinar se as leis foram elaboradas de conformidade com a Constituição, se houve correta observância das formas estatuídas, se a regra normativa não fere uma competência deferida constitucionalmente a um dos poderes, enfim, se a obra do legislador ordinário não contravém preceitos constitucionais pertinentes à organização técnica dos poderes ou às relações horizontais e verticais desses poderes, bem como dos ordenamentos estatais respectivos, como sói acontecer nos sistemas de organização federativa do Estado”24

No mesmo sentido, o julgamento da ADI nº 1.245 de relatoria do Ministro Eros Grau:

“A CB contemplou a técnica da competência legislativa concorrente entre a União, os Estados-membros e o Distrito Federal, cabendo à União estabelecer normas gerais e aos Estados-membros especificá-las. É inconstitucional lei estadual que amplia definição estabelecida por texto federal, em matéria de competência concorrente.”25

Feitas as considerações iniciais a respeito da competência legislativa dos entes federados, partimos à análise da natureza jurídica dos juros de mora na cobrança do crédito tributário, objeto do presente estudo.

Sobre o autor
Tulio Schlechta Portella

Advogado, formado pela FADISP. Especialista em Direito e Processo Tributário pela Escola Paulista de Direito.

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