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Audiência de custódia

Agenda 04/08/2018 às 14:30

Após três anos da implantação das audiências de custódia, faz-se uma análise retrospectiva sobre o inovador instituto de natureza processual.

Após três anos da implantação das audiências de custódia, o mundo jurídico faz uma análise retrospectiva sobre o inovador instituto de natureza processual. Apesar da forte resistência por parte de alguns operadores do Direito, os métodos adotados no procedimento do flagrante delito vêm contribuindo no sentido de não agravar a situação do sistema prisional, garantindo, ao mesmo tempo, o fiel cumprimento da ordem constitucional.

No texto original do Código de Processo Penal, a prisão em flagrante seguia o modelo inquisitivo inspirador de seu tempo. A autoridade policial, ao receber a pessoa conduzida compulsoriamente à delegacia, fazia um breve exame quanto à legalidade da prisão a fim de decidir sobre a lavratura do respectivo auto, no qual ficariam consignadas todas as oitivas realizadas, bem como as demais intercorrências, desde os fatos que antecederam a voz de prisão até o encerramento da atividade policial. Para a realização desta análise jurídica, cabia ao delegado verificar a tipicidade do fato, ao menos em tese, e o enquadramento das circunstâncias da prisão em uma das hipóteses elencadas no art. 302 do Código de Processo Penal, classificadas doutrinariamente como “estados de flagrância”. A resposta negativa para qualquer um desses quesitos impediria o avanço do procedimento, devendo a pessoa detida ser colocada imediatamente em liberdade, evitando-se, desse modo, o consequente e inevitável constrangimento ilegal.

Em respeito ao art. 5.º, LXII, da Constituição da República, que impõe a comunicação imediata da prisão ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada, as autoridades policiais haviam convencionado que esta determinação seria cumprida com a remessa do auto de prisão em flagrante ao Poder Judiciário. E considerando que o Código de Processo Penal transcrevia o preceito constitucional, sem estabelecer precisamente o prazo para que o ato fosse realizado, limitando-se ao uso da expressão “imediatamente”, a prática fez consolidar o entendimento de que o referido documento teria de ser remetido ao juiz dentro das mesmas 24 horas estabelecidas para a entrega da nota de culpa ao preso. Em suma, sendo legal a captura, a autoridade policial deveria concluir todo o trabalho inerente à sua função, devidamente relatado, no prazo de 24 horas, entregando ao preso e ao juiz os documentos exigidos pela legislação em vigor.

A falha mais grave nessa fase inicial ocorria no âmbito judicial. Por longo período, muitos magistrados, ao examinarem o auto de prisão em flagrante, entendendo legal e imprescindível a custódia cautelar, limitavam-se a homologá-lo a fim de que o preso fosse mantido no cárcere, sentindo-se desobrigados a demonstrar os motivos que os levaram a decidir pelo confinamento no curso da instrução criminal. Para a doutrina majoritária, a prática ofendia severamente a Constituição da República, que impõe a fundamentação de todas as decisões judiciais, principalmente quando ordenam a constrição da liberdade. Por esse motivo, deveria o magistrado discorrer sobre a necessidade da manutenção da prisão em flagrante com base nos mesmos requisitos que autorizariam a prisão preventiva.

Porém, com o passar do tempo, o legislador foi atendendo às críticas dos juristas em diversos aspectos. O primeiro deles tinha relação com a dispensa de defesa técnica neste momento tão delicado para a pessoa do imputado. Em sede policial, as discrepâncias de ordem econômica e social emergiam de tal forma que nos faziam pensar se não seria o próprio regime democrático o maior lesado. Os indivíduos possuidores de condição financeira privilegiada recebiam completa orientação de bons profissionais da área jurídica antes mesmo de adentrarem a delegacia. Em contrapartida, cidadãos de baixa renda, que compreendem a maioria esmagadora da população brasileira, ficavam entregues à própria sorte, quando não raramente agiam contra si mesmo, em decorrência da ausência de orientação de ordem técnica. Fiéis a algum deus, uma oração rápida e improvisada era tudo que lhes cabia. Por esse motivo, com o advento da Lei 11.449/2007, acrescentou-se ao art. 306, § 1.º, do CPP, a obrigação para a autoridade policial de remeter cópia integral do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, nos casos em que o autuado deixe de informar o nome de seu advogado. Assim foi oportunizada a defesa ao imputado, independentemente de sua condição social, em meio a um procedimento que sempre tramitou à margem do contraditório.

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Anos mais tarde o caput do mesmo dispositivo passou a ter nova redação instituída pela Lei 12.403/11, segundo a qual se exige não somente a comunicação ao juiz, mas também ao Ministério Público. Embora a medida estivesse mais do que enraizada na prática processual, somente a partir da sua positivação é que se tornou possível suscitar a ilegalidade da prisão em virtude de eventual supressão do ato.

Todavia, o mais interessante a respeito das leis supracitadas está no fato de terem separado o ato de comunicação da prisão ao da remessa do auto. O art. 306, caput, dispõe que a prisão deverá ser comunicada “imediatamente”, enquanto no parágrafo a ele agregado foi fixado o prazo de 24 horas para a remessa do respectivo auto, como já se fazia na prática. Considerando que o legislador não usa palavras inutilmente – ou pelo menos deveria assim proceder – o intérprete mais cauteloso compreendeu a existência de dois momentos distintos: o da comunicação da prisão e o da remessa do auto. Por este prisma, compete à autoridade policial comunicar imediatamente a prisão por intermédio de ofício endereçado ao magistrado, e, a partir de então, começa a correr o prazo para o encaminhamento do auto ao mesmo destinatário.

A Lei 12.403/2011 realizou uma significativa reforma ao Código de Processo Penal, especialmente no que diz respeito às prisões. Na esfera policial aboliu o famigerado “livrar-se solto”, já esvaziado pela Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), autorizando o delegado de polícia a conceder a liberdade provisória não apenas para as contravenções penais e crimes de menor potencial ofensivo, mas também, mediante fiança, para aqueles delitos cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse quatro anos, pouco importando a sua espécie, ou seja, se de reclusão ou detenção. Porém, no âmbito judicial, as alterações foram ainda mais profundas. Em consonância com o art. 310 do Código de Processo Penal, o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deve determinar o relaxamento se constatar a sua ilegalidade; ou convertê-la em prisão preventiva, desde que presentes os requisitos que a autorizam, bem como se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão (institutos criados pela lei em comento); ou conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança. Diante do novo contexto, grande parte da doutrina começou a apregoar que a prisão em flagrante deixou de ser espécie de prisão cautelar para inaugurar o que se convencionou chamar de prisão “pré-cautelar”, pois quando não ceder lugar à liberdade provisória, não poderá mais ser mantida ao longo da instrução criminal, mas sim convolada em preventiva. Em hipótese alguma seu tempo de duração excederá 24 horas.

Entretanto, não obstante o esforço legislativo no sentido de criar dificuldades para o encarceramento quase automático, instituindo as medidas cautelares diversas da prisão, justamente para que o direito de liberdade prevalecesse sobre a possibilidade de enclausurar o imputado, ao menos enquanto permanecesse ostentando a condição de inocente, pesquisas estatísticas demonstram que esta pretensão nunca se tornou uma realidade. A prisão preventiva continuava sendo a solução para a maioria dos indivíduos capturados em flagrante. Por causa dessa anomalia, alguns processualistas despertaram para as normas contidas em pactos e tratados internacionais dos quais somos signatários, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San Jose da Costa Rica.

Consta no art. 9.º, item 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, acolhido pelo Brasil por força do Decreto 592, de 6 de julho de 1992, que “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, à execução da sentença.”.

Regra com o mesmo conteúdo é revelada no art. 7.º, item 5, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, assinado na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969, recepcionado pelo Brasil pelo Decreto 678, de 6 de novembro de 1992: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”.

Considerando as normas supralegais em tela, o Tribunal de Justiça disciplinou a aplicação da audiência de custódia por intermédio do Termo de Cooperação Técnico celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério da Justiça, o Governo do Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça e a Defensoria Pública da mesma unidade da federação, mediante o Provimento Conjunto 03/2015, de 26 de janeiro de 2015, determinando, em seu art. 1.º, em cumprimento ao disposto no art. 7.º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), a apresentação de pessoa detida em flagrante delito, em até 24 horas após sua prisão, para participar de Audiência de Custódia. E assim, por todo o país as regras contidas no Código de Processo Penal sobre a análise da prisão em flagrante pelo juiz, mediante a leitura do auto de prisão em flagrante, passaram a ser aplicadas somente nas regiões que ainda não se estruturam para a realização de tais audiências. Nas comarcas onde o Poder Judiciário já se organizou neste sentido, o preso é conduzido à presença do juiz, no máximo em 24 horas, para que decida acerca da prisão. Na audiência em debate, onde estarão presentes o defensor e o representante do Ministério Público, o juiz decidirá sobre a legalidade e necessidade da custódia cautelar. Quando ilegal, determinará o seu relaxamento imediato; quando legal e desnecessária, concederá a liberdade provisória (regra); se legal e necessária, demonstrados o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, converterá em prisão preventiva (exceção).

De acordo com os dados colhidos em 2017, o Conselho Nacional de Justiça estimou terem sido realizadas 258.485 audiências de custódia, nas quais foram evitados 115.497 recolhimentos a estabelecimentos prisionais, o que representa 48,68% dos casos examinados. Em um país onde encontramos a terceira maior população carcerária do planeta, com mais 700 mil presos (se considerássemos os mandados de prisão em aberto, esse número ultrapassaria 1 milhão de pessoas), dentre os quais 34% sequer foram julgados, não há dúvida de que se trata de um bom começo, principalmente se ponderarmos o atual deficit de vagas no sistema penitenciário, que já ultrapassa os 354 mil.

Levando em conta as estatísticas acima expostas fica fácil compreender o apoio ao Projeto de Audiência de Custódia por renomados juristas como Aury Lopes Jr., Roberto Delmanto Jr., Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, Eugênio Pacelli de Oliveira, Luiz Flávio Gomes, entre tantos outros, seguindo a linha da Suprema Corte, de onde vem se destacando os Ministros Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso no empenho da implementação dessa nova metodologia processual.

Atualmente tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 554/2011 que altera o art. 306 do Código de Processo Penal, a fim de introduzir na legislação pátria a obrigatoriedade de apresentação do preso ao juiz em audiência de custódia. Pela Emenda n.º1, proposta pelo Senador João Capiberibe, o parágrafo quinto do referido artigo passaria a ter a seguinte redação: “Na Audiência de Custódia de que trata o parágrafo quarto, o juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida, ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá, fundamentadamente, nos termos do art. 310.”.

Resta agora aguardar que o Congresso Nacional venha consolidar o instituto da audiência de custódia no âmbito do processo legislativo, e que o novo Código de Processo Penal não apenas o mantenha, como também promova o seu aperfeiçoamento. Usando a expressão contida nos tratados internacionais acima citados, “sem demora”, a sociedade clama por soluções penais inteligentes, experimentadas com sucesso no exterior, e devidamente adequadas à realidade nacional.

Sobre o autor
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO, GURGEL Advogados; autor da editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GURGEL, Sergio Ricardo Amaral. Audiência de custódia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5512, 4 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67249. Acesso em: 21 nov. 2024.

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