III – DA CORRENTE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL CONTRÁRIA AO EFETIVO CONTROLE DO ATO DISCRICIONÁRIO
Os que defendem a eternização do ato administrativo discricionário partem do pressuposto, dentre outros argumentos, que os três Poderes, por serem harmônicos e independentes não podem sofrer sobreposição de funções dentro de cada Poder, sendo vedada a invasão e usurpação de atribuições.
Essa corrente doutrinária, descarta "a passagem do ato administrativo a idade da razão", (32) para vincula-lo a um período historicamente autoritário, onde a Administração Pública, para satisfazer seus interesses, era independente, colocando-se acima da sociedade, como uma auto-proteção.
Sem a reflexão da evolução da Administração Pública para um plano constitucional-normativo, onde a natureza da sua função passou a ser regrada por princípios objetivamente definidos, nunca seremos capazes de entender o seu atual e fundamental papel.
A primeira fase do direito administrativo, aquela dos primórdios da Revolução Francesa fixou a noção de ato administrativo para delimitar as ações da Administração Pública "excluídas por lei da fiscalização dos tribunais judiciais". E foi pela Lei de 16 Fructidor do Ano III (1795), que em consonância com o princípio da separação dos Poderes, houve a subtração dos atos administrativos da jurisdição dos tribunais judiciais.
Esta providência foi oriunda da desconfiança do poder revolucionário, tendo como pano de fundo o fato dos magistrados terem sido nomeados no "Antigo Regime", o que significava um controle judicial ainda nas mãos da nobreza.
Surgiu, via de conseqüência, a noção de ato administrativo como forma a individualizar as atuações da Administração Pública sobre os quais o Poder Judiciário não poderia invadir. Ou seja, "tratava-se de um conceito que funcionava ao serviço da Administração perante o poder judicial." (33)
Ou, recordando-se a metáfora de Vasco Pereira da Silva, (34) sobre a evolução do Estado à história de Robinson Crusoé, como uma forma de desmistificação da impenetrabilidade do ato administrativo, dividida em dois momentos distintos, em conformidade com a cronologia, tem-se: "(...) Ao chegar à ilha, Robinson começa por se fortificar, reunindo todas as armas salvas do navio; só num segundo momento, quando se sentia já suficientemente seguro, ele parte à descoberta de sua ilha, estabelecendo relações de liberdade com as coisas, acabando por encontrar o Sexta-feira."
Dessa forma, o Estado, em um primeiro e decisivo momento, teve que concentrar o Poder (Estado ditatorial, segundo concepções de Maquiavel, Bodin, Hobes e Rousseau), para em um segundo momento, já fortalecido, procurar o homem, para estabelecer uma organização política, preconizada por uma construção de idéias garantidoras da liberdade e dos direitos individuais do cidadão através do expediente técnico da separação dos poderes, correspondente a um período liberal (cf. Locke e Montesquieu).
O Estado liberal surge, portanto, após o atingimento da sua segunda fase histórica, onde fortalecido ele vai encontrar a sua 3ª e atual fase, que é a de um Estado Democrático de Direito, fiscalizado, por completo, por princípios constitucionais e pela norma jurídica para atingir o seu ideal.
Sucede, que ainda não houve, por parte da doutrina nacional, o total desprendimento da primeira fase do Estado, entendendo que quanto ao efetivo controle do ato administrativo discricionário, haveria uma indesejada intromissão à separação dos poderes, sendo vedado ao Poder Judiciário a devida e constitucional fiscalização.
Nesse sentido, Manuel de Oliveira Franco Sobrinho, (35) defendendo a especialização de cada Poder prelecionou:
"Cada poder, portanto, tem o seu mister específico, de ordem interna especial jurídica. Partilha soberania não apenas teoricamente. Não disputa, porque possui self-government.
A separalidade dos outros Poderes é uma simples questão de meios de ação (círculos) compreendendo a tríplice ordem constitucional.
As três funções orgânicas, legislativa, executiva e judiciária, desempenham atividades saídas de regras jurídicas constitucionais, por onde se vê a diferenciação do poder estatal em legislativo, executivo e judiciário, caracteriza a rigidez de dogmas verdadeiros (reais) ligados à distribuição de poderes."
Analisando a evolução do Direito Administrativo, em precioso estudo, Cláudio Ari Mello (36) fez uma fiel descrição de como era vista a zona livre de jurisdição do Poder Executivo do passado, imune o ato administrativo discricionário a qualquer tipo de controle externo:
"O Direito Público concebido sob esse contexto engendrou uma administração pública cujas atividades estariam substancialmente previstas na legislação que fixaria os elementos básicos da atuação administrativa e as finalidades a serem alcançadas, estabelecendo uma vinculação positiva do administrador à lei, segundo a qual a administração só poderia fazer o que estivesse expressamente autorizado nas normas legais. Como nenhum tipo de atividade humana, nem mesmo a legislação, pode antever, predizer e projetar todos os fatos, humanos e naturais, que exigirão a ação governamental, ao lado da estrita vinculação do administrador às normas legais, sempre remanesceu um espaço de liberdade de escolha ou de decisão, ou seja, de discricionariedade administrativa. Como esse ‘vácuo legal’ era uma deferência do legislador à contingencialidade da ação administrativa, e fiscalização judicial estava inteiramente interditada. Onde houvesse discrição, não haveria jurisdição. A evolução da dogmática e da experiência pretoriana do direito administrativo produziu uma teoria ampla da discricionariedade que procurou delimitar os campos da vinculação e da discrição do administrador e definir as fronteiras do controle judicial, criando uma zona livre de jurisdição no âmbito do Poder Executivo."
Diógenes Gasparini (37) é um dos grandes administrativistas que entende que os atos administrativos discricionários não podem ser questionados quanto ao mérito (conveniência e oportunidade):
"Discricionários são os atos administrativos praticados pela Administração Pública conforme um dos comportamentos que a lei prescreve. Assim, cabe à Administração Pública escolher dito comportamento. Essa escolha, se faz por critérios de conveniência e oportunidade, ou seja, de mérito. Há conveniência sempre que o ato interessa, convém ou satisfaz ao interesse público. Há oportunidade quando o ato é praticado no momento adequado à satisfação do interesse público. São juízos subjetivos do agente competente sobre certos fatos e que levam essa autoridade a decidir de um ou de outro modo.
Costuma-se, sem muito cuidado, dizer que o ato administrativo discricionário é insuscetível de exame pelo Judiciário. Tal afirmação não é verdadeira. O que não se admite em relação a ele é o exame por esse Poder da conveniência e da oportunidade, isto é, do mérito da decisão tomada pela Administração Pública, conforme vêm decidindo nossos Tribunais (RF, 225:96 e RT 446:213)."
Praticado dentro do âmbito que admite a lei, Odete Medauar, (38) também se perfilha aos que entendem ser inapreciável pelo Poder Judiciário a análise da oportunidade do ato discricionário elaborado pelo Poder Executivo:
"Em ordenamentos estrangeiros, os termos ‘oportunidade’ ou ‘juízo de oportunidade’ traduzem a apreciação do mérito. Em alguns temas aparece o contraponto entre legalidade e mérito, em especial, nos estudos sobre o ato administrativo, como aspectos do mesmo, e nos estudos sobre controle jurisdicional da Administração, quando se discute o alcance desse controle, mencionando-se que ao Judiciário descaberia exame do mérito das decisões da Administração."
Não é outro o posicionamento de Lúcia Valle Figueiredo: (39)
"A jurisprudência brasileira, acompanhada pela doutrina tradicional, considerava que os atos discricionários não se submeteriam a controle, no pertinente a seu mérito. O caminho da evolução foi – sem dúvida – a afirmação de que ao Judiciário caberia controlar toda a atividade administrativa desde que não invadisse o mérito das decisões discricionárias.
E por mérito do ato compreendiam-se as razões de conveniência e oportunidade que teriam fundamentado a decisão do administrador."
Agrega-se a esta corrente a ilustre professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, (40) que apenas concorda com o controle do Poder Judiciário sobre o ato administrativo discricionário em caso de ilegalidade formal:
"Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é possível mas terá que respeitar a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei.
Isto ocorre precisamente pelo fato de ser a discricionariedade um poder delimitado previamente pelo legislador; este, ao definir determinado ato, intencionalmente deixa um espaço para livre decisão da Administração Pública, legitimando previamente a sua opção; qualquer delas será legal. Daí por que não pode o Poder Judiciário invadir esse espaço reservado, pela lei, ao administrador, pois, caso contrário, estaria substituindo por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto."
Ao finalizar o pensamento dos ilustres administrativistas aos quais nutrimos a maior admiração por seus magistrais e imprescindíveis trabalhos, agrega-se a eles o imortal Hely Lopes Meirelles, (41) que faleceu logo após a promulgação da atual Carta Magna:
"Poder Discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo (...)
O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionário do administrador pelo do Juiz."
Em seu Curso de Direito Constitucional, Celso Ribeiro Bastos, (42) em nota de rodapé, citou o REO nº 165.977/STF, que corrobora as colocações doutrinárias citadas anteriormente:
"Ao Judiciário é vedado, no exercício do controle jurisdicional, apreciar o mérito dos atos administrativos, para dizer do acerto da Justiça, da utilidade, da moralidade, etc., de cada procedimento. Não pode o juiz substituir-se ao administrador; compete-lhe, apenas, conte-lo nos estritos limites da ordem jurídica ou compeli-lo a que os retorne."
O STJ, pelo RESP nº 169.876-SP, colacionado por Carlos Pinto Coelho Motta, em seu Curso Prático de Direito Administrativo, também já decidiu de forma similar aos judiciosos posicionamentos que defendem a impossibilidade do Poder Judiciário invadir a seara do mérito do poder discricionário administrativo:
"Administrativo. Processo Civil. Ação Civil Pública. 1. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública para proteger interesses coletivos. 2. impossibilidade de o juiz substituir a Administração Pública determinando que as obras de infra-estrutura sejam realizadas em conjunto habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para atender a projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano. 3. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas. 4. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes. 5. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do mérito. 6. As atividades de realização dos fatos concretos pela Administração depende de dotações orçamentárias próprias e do programa de prioridades estabelecidas pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente. 7. Recurso provido. (...) Entretanto, se provida a pretensão, estar-se-ia ofendendo o Princípio da Separação de Poderes, preceituado no art. 2º da Constituição Federal. Como é sabido, o Poder Público só pode fazer o que a lei manda (poder vinculado) ou autoriza (poder discricionário).. os atos que se classificam como vinculados têm seus contornos quase que totalmente delineados pela lei, que deve fielmente ser observada pelo agente público, sob pena de nulidade do ato. Sendo a prática de tais atos um dever da Administração, a contrario sensu, constituem um direito dos administrados. Assim, a omissão do agente público na prática de tais atos ou a sua prática sem a fiel observância do enunciado da lei, em todas as suas especificações, traria ofensa a direito do administrado que, no primeiro caso, poderia, através do Poder Judiciário, compelir a Administração à prática do ato, e, no segundo, a declarar a sua nulidade. O mesmo não ocorre, porém, com relação aos atos discricionários. Nesta categoria de atos, embora o agente público, e deva ser competente para praticá-lo, tem liberdade de escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. Cabe, pois, ao agente público escolher sobre a conveniência e oportunidade para prática dos atos discricionários. Nisso não pode o Poder Judiciário substituí-lo (...) o que não pode, repita-se, é determinar que o agente público pratique um ato discricionário cuja escolha de conveniência e oportunidade lhe pertence." (g.n.)
Como visto, a doutrina e a jurisprudência declinadas defendem que não compete ao Poder Judiciário apreciar o mérito de atos administrativos discricionários.
Estas lições deixaram grafado não competir ao Poder Judiciário o exame do mérito, da oportunidade e da conveniência do ato administrativo discricionário, visto que a lei confere poderes para a prática de tal ato.
Também convergíamos com estes avalizados posicionamentos, desgarrando-nos dessas correntes doutrinárias após a edição da Carta Federal de 5 de outubro de 1988, que de forma inédita constitucionalizou a Administração Pública, criando princípios e normas que vinculam a todos, independentemente da forma ou da solenidade do ato administrativo, ou seja, se ele é ou não discricionário.
A seguir, deixaremos nítido o nosso posicionamento.