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A lei nº 10.639/2003: resgate de uma história adormecida sob o véu do esquecimento

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Agenda 19/07/2018 às 13:48

O texto objetiva traçar um panorama sobre as diretrizes do sistema educacional brasileiro e a tardia inclusão da cultura negra como assunto obrigatório no grade curricular na base nacional de educação.

A LEI 10.639/2003 – UMA TENTATIVA DE REENCONTRAR UM DOS ELOS PERDIDOS

A Lei nº 9.394, der 20 de dezembro de 1996, estabeleceu as diretrizes e bases da Educação Nacional.

Trata-se de uma lei nacional, a qual atinge todas as esferas de governo, seja federal, estadual, municipal ou distrital. Essa distinção é importante, vez que a Lei Federal possui seu campo de abrangência restrito aos órgãos componentes da União.

Publicada em 9 de janeiro de 2003, a Lei nº 10.639, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, acrescentando ao currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade do tema “História e Cultura Afro-Brasileira”, determinando, também, que o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.

Foram acrescentados os seguintes artigos:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras.

§ 3º (VETADO)

................................

Art. 79-A (VETADO)[1]

Art. 79-B O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.

Essas alterações representam o início da concretização efetiva e reconhecimento, no âmbito educacional, dos três grandes grupos formadores da nação brasileira – branco europeu, negro e índio – aos quais foram agregados vários outros povos que compõem a aquarela brasileira. Rompe-se o monopólio de educar com foco somente para determinado valor civilizatório. Henri Moniote faz referência ao europocentrismo histórico a propensão presente durante vários anos da inclusão nos relatos históricos tão-somente dos povos europeus, sob a justificativa de ausência de fatos relevantes nas demais culturas, em período anterior ao contato com o branco europeu[2]. As informações que serão adicionadas contribuirão para que o educando se situe no tempo e espaço históricos no qual vive e convive, consciente das suas origens, que por muito tempo ficaram escondidas sob uma educação míope, direcionada somente para a cultura “oficial”.


A LEI 10.639/2003 – UMA TENTATIVA DE REENCONTRAR UM DOS ELOS PERDIDOS

Em 1930 foi adicionado ao conteúdo das escolas normais o estudo da História da Educação. Com o parecer CFE 251/62 foram contemplados conteúdos relacionados à educação em nosso país. A partir da década de 70 foi criada a disciplina História da Educação Brasileira[3].

A própria história do Brasil, a ser ministrada nas escolas, ao ter apenas como referência os aspectos relacionados a determinada civilização, exclui outros segmentos, no caso, os não-europeus. Isso faz com que ocorra uma falta de identidade para o educando em desenvolvimento que não se adequa ao “fenotipo oficial”, carecendo de paradigmas que possam auxiliá-la a compreender a história do grupo humano do qual descende.

Importante salientar que é essencial que haja cursos de formação do educador para que, como peça fundamental do processo de aprendizagem relacionada a esse novo dado histórico – o que trará novos paradigmas ao aluno para a compreensão da realidade – saiba lidar com a diversidade cultural nas escolas.

Oportuno salientar que o Decreto nº 1331 A, de 17 de fevereiro de 1854 exclui a possibilidade do escravo freqüentar as escolas públicas (art. 69, § 3º)[4]. Entretanto, as hipóteses de alfabetização de negros, especialmente mulheres, carecem de revisão. Entre elas cabe salientar que as escolas primárias estavam abertas para negros libertos que poderiam freqüentá-las desde que provenientes de família com recursos ou no caso de serem protegidos por ex-senhores. Outra hipótese é a contratação de professores particulares por senhores que tinha o objetivo de lucrar com os escravos alfabetizados e, ainda, a educação informal, caracterizado pelo acompanhamento silencioso das aulas ministradas no meio rural e urbano, bem como a instrução religiosa a cargo dos padres.[5]

Geraldo Silva e Márcia Araújo citam a possibilidade de escravos africanos terem sido alfabetizados em árabe: “o mais revelador uso do árabe é mencionado por Mary Karasch, em A vida dos escravos no Rio de Janeiro – 1808 e 1850, a respeito de uma queixa colonial de que negros minas da cidade do Rio de Janeiro se reuniam em ‘associações secretas’ e se correspondiam em escritos cifrados com os minas da Bahia, São Paulo e Minas Gerais. Após intensas buscas policiais, são descobertos uma infinidade de papéis e livros manuscritos em caracteres desconhecidos, posteriormente declarados como ‘orações do Corão’ em ‘árabe espúrio’. Concluem os autores que, ao contrário dos estereótipos a respeito da ignorância do negro escravo ou liberto, existia um pequeno grupo alfabetizado e letrado que possuía um grau de aprendizado talvez superior ao de seus senhores”[6].

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Há registro da imprensa negra no Rio Grande do Sul em 1892, em Campinas em 1903 e em outros municípios paulistas desde 1915. Mariléia dos Santos afirma que “os autores que compõem o conjunto de referência que realizam a crítica historiográfica da história da educação brasileira, ao analisarem os estudos realizados no campo da história da educação, indicam que esses trabalhos têm apresentado algumas limitações, tais como: termo educação restrito ao sentido de escolarização da classe média; periodização baseada em fatos político-administrativos; temáticas mais enfocadas em contemplar o Estado e as legislações de ensino; ausência da multiciplicidade dos aspectos da vida social da riqueza cultural do povo brasileiro.” E conclui que “essa disciplina e seu campo de pesquisa têm sido veículo de continuísmo da reprodução do tratamento desigual relegado aos negros e índios dessa sociedade. À margem desse processo têm sido esquecidos os temas e as fontes históricas que poderiam nos ensinar sobre as experiências educativas, escolares ou não, dos indígenas e dos afro-brasileiros. O estudo, por exemplo, da conquista da alfabetização por esse grupo; dos detalhes sobre a exclusão desses setores das instituições escolares oficiais; dos mecanismos criados para alcançar a escolarização oficial; da educação nos quilombos; da criação de escolas alternativas; da emergência de uma classe média escolarizada no Brasil; ou das vivências escolares nas primeiras escolas oficiais que aceitaram negros são temas que, além de terem sido desconsiderados nos relatos da história oficial da educação, estão sujeito ao desaparecimento.”[7]

No início do Século XIX, havia uma discussão no Brasil na qual predominava a crítica à miscigenação. Muitos intelectuais visualisavam a questão nacional a partir da raça e esse caldo cultural inviabilizava a idéia de nação, vez que formaríamos uma nação de raças mistas. Não obstante a Abolição da Escravidão no Brasil, a organização da sociedade levava em consideração o critério da etnia. O Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890 condicionava a entrada de indígenas da Ásia ou da África à autorização e condições ditadas pelo Congresso Nacional[8].

Por ocasião da aprovação do projeto de Lei nº 4.024/1961, os debates ficaram polarizados entre aqueles que defendiam investimentos públicos em escolas também privadas e confessionais e os que almejavam escola pública para todos, sob o gerenciamento estatal. Criticava-se o projeto porque ele se afinava com os interesses das escolas confessionais. Fernando Azevedo afirma que “a escola pública, cujas portas, por ser escola gratuita, se franqueiam a todos, sem distinção de classes, de situações, de raças e de crenças, é, por definição, contrária e a única que está em condições de se subtrair a imposição de qualquer pensamento sectário, político ou religioso”[9].

A própria definição de escola pública abarca a idéia de comunhão – que deve envolver a todos que nela se apresentam – pois é aberta a todos, indistintamente da prática religiosa, convicção filosófica, origem, condição social ou econômica, sexo, raça, etc.

Para rebater qualquer posicionamento em sentido diverso, a Lei nº 4.024/1961 preceitua que a educação nacional, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana tem como finalidade a condenação de qualquer tratamento desigual por motivo de convicção religiosa, política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou de raça. (artigo 1º, alínea g).

Embora presente no discurso a inclusão racial, esta continuava como elemento que atuava como diferenciação no processo de escolaridade.

Posteriormente tivermos a edição das Leis nºs 5.540/1968 e 5.692/71, dispondo a primeira sobre o Ensino Superior e a segunda sobre o ensinos de primeiro e segundo graus, ambas feitas sob o jugo do regime ditatorial para adequação da rede de ensino aos interesses do Governo das armas.


A INCLUSÃO DA CULTURA NEGRA APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Inicia-se em 1986, o movimento deflagrado pela “Carta de Goiânia”, aprovada pela IV Conferência Brasileira de Educação, em prol de uma nova LDB. Intermediada pela abertura política e por vários movimentos da sociedade civil, é editada, após a promulgação da Constituição de 1988, a Lei nº 9.394/1996. A questão das raças é discutida em dois momentos: o Centenário da Abolição, em 1988 e os 300 Anos da Morte de Zumbi dos Palmares, em 1995. O movimento negro faz-se atuar mais intensamente e apresentam argumentos para desfazer a idéia de todos eram tratados igualmente no país.

O racismo, que até então era considerado contravenção penal, passível apenas de multa e não de prisão – Lei Afonso Arinos de 1951 – foi transformado pela Constituinte de 1988 em crime a ser punido com pena de prisão (artigo 5º, inciso XLII, regulamentado pela Lei nº 7.716/1989, conhecida como Lei Caó).

A Lei nº 10.639 foi sancionada pelo atual presidente Luis Inácio Lula da Silva no início de sue mandato presidencial, cujo o projeto foi apresentado pelos deputados federais Ester Grossi e Bem-Hur Ferreira.


CONCLUSÃO

Com a proclamação da República, adotou-se no Brasil o modelo político americano e, sem que houvesse uma transição com o modelo francês anterior, incorporou-se o novo paradigma sem atentar que os valores europeus estavam arraigados na coletividade e faziam parte do seu quotidiano. A Abolição marcou, fato que veio a exigir a reestruturação da sociedade brasileira, não rompendo, no entanto, com o preconceito que havia em relação ao negro até então considerado objeto e despido da condição humana, fato endossado, inclusive, pela autoridade religiosa da época. Como bem salientado por Antonio Flavio Barbosa Moreira e Vera Maria Candau: “O marco contextual é fundamental para que se possa construir o novo olhar que desejamos. Outra questão importante é favorecer uma reflexão de cada educador(a) sobre sua própria identidade cultural: como é capaz de descrevê-la, como tem sido contruída, que referentes têm sido privilegiados e por meio de que caminhos”. Esses autores desenvolveram exercícios com educadores e constataram que os níveis de autoconsciência da própria identidade cultural encontrava-se, na maior parte das vezes, pouco presentes e não costumam constituir objeto de reflexão pessoal[10].

E concluem os autores: “Também o aprofundamento da temática da formação cultura brasileira se faz imprescindível. Ainda está presente no imaginário coletivo o chamado ‘mito da democracia racial. Questionar os lugares-comuns, as leituras hegemônicas da nossa cultura e de suas características, assim como das relações entre os diferentes grupos sociais e étnicos, constitui outro aspecto que carece discutir e aprofundar. Na medida das possibilidades, outro ponto a ser trabalhado é a interação com diferentes grupos culturais e étnicos. A intenção é propiciar uma interação reflexiva, que incorpore uma sensibilidade antropológica e estimule a entrada no mundo do ‘outro’. Consideramos que todos esses aspectos são importantes na formação docente, para que melhor se analisem as questões curriculares e a dinâmica interna da escola. O principal propósito, acrescentamos, é que o docente venha a descobrir outra perspectiva, assentada na centralidade da cultura, no reconhecimento da diferença e na construção da igualdade. Esperamos, assim formar educadores que atuem como agentes sociais e culturais a serviço da construção de sociedades mais democráticas e justas”[11].

A LDB é de fundamental importância enquanto norma que orienta o caminho que deverá ser seguido pelo educador para a transmissão do conhecimento e formação de um cidadão.

Podemos, destarte, ver que há um duplo sentido na referida lei: enquanto Platão já escrevera “As Leis” para que elas fossem educadoras dos indivíduos, a própria LDB trata da educação. Ou seja, educa enquanto lei e possui como tema a própria diretriz do ensino.

Hodiernamente, apesar de estar superada a idéia de raça, vez que todo ser humano possui a mesma composição em seu DNA, esse verbete, durante o desenrolar da história ocidental serviu para guiar o pensamento e ações das sociedades surgidas e consideradas civilizadas desde tempos imemoriais. Não se pode simplesmente apagar e continuar a história a partir dessa nova descoberta científica, desconsiderando toda a influência e conseqüências surgidas a partir de uma palavra que, embora despida atualmente de sentido, provocou alterações na forma de relacionamento entre os seres humanos.

A Lei nº 10.639/2003 tenta resgatar a história e a memória de uma das três “raças” que contribuíram decisivamente na formação do povo brasileiro.

Deixamos registrado, apenas, que o passo dado foi tímido. A Lei em comento peca por não conter disposição semelhante com relação ao indígena, participante também do processo colonizador e formador de nosso país. Os demais povos que se agregaram ao grande caldo cultural que é nosso país, onde convivem pessoas advindas de diversas parte do globo possuem uma memória e uma identidade em relação a própria origem, o que não ocorre com os índios e negros. Os descendentes desses dois povos possuem o direito de conhecer suas origens.

Saliente-se, finalmente, que não há somente uma história européia, mas que a ela devem ser agregadas as demais histórias. Com esse substrato será possível pensar em uma identidade nacional, oriunda das contribuições de todos os povos acolhidos em solo pátrio. O negro e o índio não influenciaram em vários aspectos de nossa cultura; não somente na linguagem e na culinária, mas também em nossos comportamentos e visões diante da realidade que nos cerca. São povos que também lutaram pela sua liberdade perante a invasão de povos que impuseram seus valores e costumes como universais..


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Sobre o autor
Silas Mendes dos Reis

Especialização Lato-Sensu em Direito Consticional pela Escola Superior de Direito Constitucional/SP; Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP; Doutorando em Direito Constitucional na PUC/SP

Informações sobre o texto

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