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Magistratura, previdência social e constitucionalidade

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Agenda 14/06/2005 às 00:00

IV. Regimes de transição e direito adquirido

4.1. O direito adquirido na EC n. 41/03. Preservação nominal e econômica

O artigo 3º, caput, da EC n. 41/03 vazou regra consagradora dos direitos adquiridos na acepção do artigo 6º, §2º, da LICC, ao assegurar, em qualquer tempo, a concessão de aposentadoria aos servidores públicos, bem como pensão aos seus dependentes, que, até a data de publicação da Emenda, tivessem cumprido todos os requisitos para obtenção desses benefícios, com base nos critérios da legislação então vigente.

Mas não se limitou a fazê-lo. Para mais, o legislador de antanho preocupou-se em garantir também o conteúdo econômico do direito. Com efeito, nos termos do artigo 3º, §2º, da EC n. 41/03, os proventos de aposentadoria a serem concedidos aos servidores que tenham cumprido os requisitos para obtenção de aposentadoria voluntária, e bem assim as pensões de seus dependentes, serão calculados com base na legislação em vigor à época em que forem atendidos os requisitos estatuídos na Emenda para a concessão destes benefícios (i.e., quando atendidos os requisitos do artigo 40, §1º, III, "a" e "b", da CRFB), ou com base na "legislação vigente". Com isso, pretendeu-se preservar a dimensão econômico-financeira do direito tal como disposta na época de sua aquisição (inclusive quanto aos indexadores aplicáveis à época, evoluindo conforme a legislação subseqüente). Atendeu-se, pois, à melhor exegese para questões de direito intertemporal ("tempus regit actum") [19].

A referência às "condições da legislação vigente" diz respeito ao servidor que, subsumido à hipótese do artigo 3º, caput, da EC n. 41/03, optasse por permanecer em atividade, percebendo o abono do artigo 3º, §1º, da Emenda. Sob tais circunstâncias, o servidor com direito adquirido poderá optar, em termos análogos ao artigo 122 da Lei 8213/91 [20], pelo regime mais vantajoso, seja aquele em vigor na data do cumprimento de todos os requisitos necessários à obtenção do benefício, seja aquele vigente no momento do requerimento. Aliás, o artigo 3º, §2º, da EC n. 20/98 tem redação quase idêntica [21], a que hoje se dá a interpretação supra, para ali também se reconhecer o respeito ao direito adquirido e ― acresça-se ― o direito ao regime mais vantajoso.

Com efeito, entender que o requerimento administrativo tenha aptidão para determinar qual o regime jurídico de cálculo dos proventos de aposentadorias e pensões (se o regime vigente no momento da aquisição do direito ao benefício, caso requerido de plano, ou se o regime da "legislação vigente" à época do requerimento, quando postergado) é atribuir à condição administrativo-procedimental uma função jurídica que ela não possui. O direito está adquirido desde que atendidos os pressupostos do artigo 6º, §2º, da LICC, regendo-se em princípio pela legislação do seu tempo, independentemente do momento em que se o requeira no âmbito administrativo. Outra interpretação vulneraria, por via indireta, o artigo 5º, XXXVI, da CRFB.

Dessa inteligência resulta, em suma, que a EC n. 41/03 buscou, em boa medida, respeitar os direitos adquiridos sob a égide do regime anterior. Reconheceu, portanto, que o Poder Constituinte derivado não poderia, sem mais, ferir de morte direitos já incorporados no patrimônio jurídico dos servidores públicos civis, sob pena de violar a norma predita (artigo 5º, XXXVI) e incorrer em inconstitucionalidade material. Logo, não fez "favores".

4.2. Direitos adquiridos, direitos em formação e constitucionalidade

Modificando o teor do artigo 40, §3º, da CRFB (que estabelecia que os proventos de aposentadoria seriam calculados sobre a remuneração do servidor no cargo efetivo em que ocorresse a aposentadoria e corresponderiam, na forma da lei, à totalidade da remuneração), a EC n. 41/03 deu-lhe a seguinte redação:

§ 3º. Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei.

No entanto, para os servidores que houvessem ingressado regularmente nos quadros públicos até a data da publicação da EC n. 20/98, estabeleceu-se a seguinte regra:

Art. 6º. Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas estabelecidas pelo art. 40 da Constituição Federal ou pelas regras estabelecidas pelo art. 2º desta Emenda, o servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado no serviço público até a data de publicação desta Emenda poderá aposentar-se com proventos integrais, que corresponderão à totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria, na forma da lei, quando, observadas as reduções de idade e tempo de contribuição contidas no § 5º do art. 40 da Constituição Federal, vier a preencher, cumulativamente, as seguintes condições:

I - sessenta anos de idade, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade, se mulher;

II - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher;

III - vinte anos de efetivo exercício no serviço público; e

IV - dez anos de carreira e cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria.

Ora, o artigo 8º da EC 20/98 garantia a aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o artigo 40, §3º, na redação da época (logo, proventos virtualmente integrais), ao servidor que tivesse cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito, se mulher, mais cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se daria a aposentadoria e ainda o tempo mínimo de contribuição estatuído nas alíneas "a" e ‘b" do seu inciso III. Essa garantia terminou prejudicada pelos termos mais restritivos do artigo 6º da EC 41/03. Assim, à mercê das novas regras, põe-se a questão dos direitos de quem ingressou no serviço público sob a égide da norma antiga.

Como antecipado na introdução (supra, tópico I), o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em diversos arestos, que não há direito adquirido a determinado regime [22]. E de fato não pode haver, em termos absolutos. Mas o problema não está adstrito a termos assim maniqueístas. Vejamos.

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Convém distinguir entre o regime em si mesmo e os direitos em formação aderentes ao patrimônio jurídico do servidor. Esses últimos podem surtir efeitos de direitos adquiridos, notadamente quando "assimiláveis aos [direitos] negociais, «quase-negociais», como os que outorgam «vantagens» (esperadas) ao servidor público nas suas relações com o Estado. Aqui se pode supor o aspecto da autonomia da vontade como determinante da adesão a um quadro legalmente fixado" [23].

Com efeito, também os direitos em formação tendem a ser garantidos contra mudanças unilaterais, "motivadas pelo arbítrio de outrem. É evidente que tanto o ingresso no serviço público quanto a filiação no INSS criam uma relação jurídica que não pode ser modificada a qualquer tempo. Talvez esse seja o pensamento minoritário nos Tribunais, mas um novo sistema que signifique mais perdas para as classes trabalhadoras ¾ especialmente para os servidores públicos ¾ certamente suscitará muita luta judicial em defesa do direito em formação" [24]. Em termos leigos, dir-se-ia que não é possível mudar impunemente as regras do jogo durante uma partida. Ou, em termos jurídicos: as expectativas devem ser preservadas, quando se fundam em atos jurídicos perfeitos.

Nesse preciso sentido é que DALMO DE ABREU DALLARI entendeu estar "adquirido", no momento em que o servidor fosse empossado num cargo efetivo, o seu direito de se aposentar com proventos correspondentes à totalidade da remuneração (i.e., na forma do artigo 40, §§ 2º e 3º, da CRFB, ainda com a redação da EC n. 20/98: integralidade de proventos e cálculo baseado na remuneração do cargo efetivo). Assim entendido, não poderia a Administração Pública, por ato unilateral, alterar ou extinguir o tal direito, como tampouco poderia o legislador (nem sequer no exercício do poder constituinte derivado [25]) prejudicá-lo [26], em respeito à norma do artigo 5º, XXXVI, da CRFB.

Em Teoria Geral do Direito, a garantia dos direitos em formação dá-se quase por adquirida (discutem-se apenas seus termos), enquanto a jurisprudência constitucional produzida nos ordenamentos vanguardeiros já se insinua no mesmo sentido. Para referir apenas um caso, veja-se em OLIVEIRA ASCENSÃO o estado do Direito português. No escólio do autor,

Em casos mais graves, a lei que atinge retroactivamente direitos garantidos por lei anterior deve considerar-se inconstitucional.

A proibição é apenas expressa para as "leis restritivas de direitos, liberdades e garantias" (art. 18/3 da Constituição).

Mas a jurisprudência constitucional foi mais longe, e não admite que possa ser atingido direito anteriormente concedido quando isso afectar "o princípio da confiança ínsito na ideia do Estado de Direito democrático". Com isso se quer deixar excluída a privação arbitrária de direitos adquiridos. Note-se que assim se utiliza o critério do direito adquirido, o que se não coaduna com o critério do facto passado admitido em geral pela lei portuguesa.

A tendência é a de estender cada vez mais os "princípios do Estado de Dicreito democrático, da segurança e da confiança". E isso em dois sentidos:

― acentuando cada vez mais as expectativas e não os direitos;

― questionando a própria aplicação imediata da lei nova [27].

Também o Direito positivo brasileiro tem reconhecido paulatinamente a expressão jurídica dos direitos em formação ou "acumulados". Assim, p. ex., a Lei Complementar n. 109/2001, que "dispõe sobre o Regime de Previdência Complementar e dá outras providências" dispõe que "as alterações processadas nos regulamentos dos planos aplicam-se a todos os participantes das entidades fechadas, a partir de sua aprovação pelo órgão regulador e fiscalizador, observado o direito acumulado de cada participante" (artigo 17, caput ― g.n.). Já para o direito adquirido "stricto sensu" (artigo 6º, §2º, da LICC), o legislador reservou o parágrafo único [28] do mesmo artigo 17. Os primeiros estudos doutrinais em torno do caput já avaliam que, ressalvados os direitos adquiridos e acumulados (que garantem, a seus titulares, regimes de transição), a possibilidade de alteração dos planos de benefícios, sejam eles de contribuição ou de benefício definidos, é da própria essência do instituto. É inegável, portanto, que o Direito nacional caminha a passos largos para o reconhecimento de efeitos jurídicos iniludíveis aos direitos em formação ou acumulados, notadamente em matéria de previdência pública.

Convém reconhecer que é realmente tênue, em Direito de Estado, o limiar entre o direito adquirido e o direito em formação. Pode-se inclusive ir além e reconhecer, ainda com OLIVEIRA ASCENSÃO, que

A distinção entre direito adquirido e mera expectativa é muito difícil de traçar. Os autores acabam por chamar expectativas a umas situações e direitos a outras consoante pretendem ou não a aplicação da nova lei, o que representa a inversão do princípio [29].

Assim, interessará mais saber se a mudança de regras afeta o "princípio da confiança ínsito à idéia de Estado Democrático de Direito" que discutir se, à luz do artigo 6º, §2º, da LICC, trata-se ou não de direito adquirido. E, nesse encalço, a conclusão é palmar: indiscutivelmente, a mudança de regras operada pelo novo artigo 40, §3º, da CRFB apanhou de surpresa a generalidade dos servidores públicos civis.

Concretamente, sendo a posse em cargo efetivo, na célebre construção de LÉON DUGUIT, um ato-condição para a aposentadoria, tem ela o condão de vincular o servidor, até a inatividade, à estrutura peculiar da Administração Pública. Mais que isso, os efeitos da adesão protraem-se no tempo, para além do próprio jubilamento ¾ tanto que, à diferença do trabalhador filiado ao RGPS, o servidor público pode sofrer a cassação de sua aposentadoria por conta de faltas disciplinares praticadas na ativa. À vista disso, é razoável reconhecer algum sinalagma no espectro positivo da relação: do ponto de vista dos direitos subjetivos, alguns há que, ainda incipientes, enraízam-se no patrimônio jurídico do servidor, conquanto não possam ser fruídos de imediato: conformar-se-ão com o tempo, ganhando em maturidade, completude e exeqüibilidade. São, pois, direitos em formação, como no caso do cálculo da aposentadoria pela última remuneração da ativa ou, ainda, no caso da integralidade de proventos, marcadamente em relação aos servidores que ingressaram no serviço público antes da EC n. 20/98.

Recorrendo ao escólio de GABBA, é certo que, nesses dois casos, estão presentes dois dos pressupostos constitutivos de um direito adquirido, a saber:

(a) fato idôneo para gerar o direito em função da lei vigorante ao tempo em que tal fato teve lugar (= a posse no cargo);

(b) impossibilidade de atuação ou valência do interesse antes da entrada em vigor de nova norma relativa ao mesmo assunto (= EC n. 41/03).

Falta-lhes apenas o terceiro pressuposto, a saber, (c) o comando da lei contemporânea ao fato, determinando a integração imediata do direito imanente ao patrimônio de quem o adquire [30]. Com efeito, o texto constitucional anterior à EC n. 41/03 não o dizia e nem poderia fazê-lo, já que estabelecia ainda outros requisitos para o exercício do direito (artigo 40, §1º, III, da CRFB). Nada obstante, sendo evidentes a se as duas primeiras características da definição de GABBA, demonstra-se a franca proximidade entre aquelas situações e o conceito geral de direito adquirido.

Na verdade, o tempo de contribuição, a idade mínima, o "pedágio" e os outros pressupostos objetivos da aposentadoria são elementos de um fato constitutivo mais complexo, cuja realização "tem sua raiz num direito adquirido anterior", porquanto não está "no poder do interessado [a Administração] impedir o fato que falta, em se tratando de condição verdadeira e própria" [31]. Indubitável, portanto, que a posse no cargo efetivo conferia, por si mesma, alguma estabilidade jurídica à expectativa de aposentação com proventos integrais pela última remuneração. Dizer se havia aqui típico direito adquirido (como opina DALLARI), ou se havia direito acumulado com efeitos de adquirido (como sugere FREUDENTHAL em tese à qual acedemos), é discussão teórica que desborda dos objetivos deste estudo. Antes disso, sendo certo que a mudança violou os princípios da confiança e da segurança (supra), interessa saber se, na prática, aquelas pretensões ― os direitos em formação ― estariam sob guarida do artigo 5º, XXXVI, da CRFB, e por isso imunes ao Poder Constituinte derivado.

Para tanto, não há critério seguro no Direito positivo. Socorre-nos, pois, a doutrina.

FERREIRA FILHO assevera que é possível a conciliação entre o direito adquirido, no seu sentido mais amplo, e a restrição de seus efeitos futuros, desde que fundada no princípio da ponderação de bens: rejeita-se, a bem do direito, a extinção radical de efeitos futuros, mas admite-se, a bem do interesse público, a moderação desses efeitos. Ou, na sua dicção, "pode [...] toda norma constitucional, inclusive a norma derivada, restringir os efeitos futuros de ‘facta pendentia’. [...] Neste último caso, a restrição tem de respeitar os princípios inerentes a toda restrição de direitos fundamentais, mormente os de razoabilidade e proporcionalidade" [32]. Essa lição aplica-se com igual ou maior propriedade aos direitos em formação, emprestando fundamento jurídico para os chamados "regimes de transição".

Do mesmo modo, ENNECCERUS advertia que "quanto mais graves são as razões que levaram a estabelecer o novo direito, tanto mais se há de supor que a força de seu efeito alcança também aos direitos existentes; sobretudo quando a norma jurídica se funda em razões de moralidade ou está ditada para eliminar situações inconvenientes na ordem econômica e social" (referindo, nesse sentido, o artigo 2º do Código Civil suíço) [33]. A contrario, se as razões para o novo direito são frágeis, inconvincentes ou desarrazoadas, não se justifica sacrificar, por ele, o direito adquirido (e, à sua conta, o direito em formação).

Restaria saber, então, se é razoável, do ponto de vista socioeconômico e em face do interesse público, a restrição estabelecida para a aquisição do direito à aposentadoria por parte dos servidores admitidos anteriormente à EC n. 20/98. Esses servidores perdem o direito de se aposentar com proventos integrais aos cinqüenta e três ou aos quarenta e oito anos, se homem ou mulher (artigo 8º, I, da EC n. 20/98), para fazê-lo somente com sessenta ou cinqüenta e cinco anos, respectivamente (artigo 6º, I, da EC n. 41/2003); além disso, não lhes basta mais cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se daria a aposentadoria (artigo 8º, II, da EC n. 20/98): é mister agora ter também vinte anos de efetivo exercício no serviço público e dez anos de carreira (artigo 6º, III e IV, da EC n. 41/03). É lídima tal modificação "in pejus"?

À mercê dos subsídios doutrinais colhidos, de ASCENSÃO a ENNECCERUS, passando por FERREIRA FILHO, é de rigor responder negativamente à pergunta. Com a mudança, frustram-se legítimas expectativas do servidor público civil, com malferimento dos princípios da confiança e da segurança no Estado Democrático de Direito e sem razões quaisquer de moralidade, proporcionalidade, razoabilidade ou conveniência socioeconômica (face à auto-sustentabilidade do regime previdenciário dos juízes) que justifique a manobra. Daí se concluir que essa alteração também vulnera, "a latere", a garantia constitucional do direito adquirido (ou direito em formação que, na espécie, estará sendo injustificadamente sacrificado) ¾ ou, se não, ao menos o princípio da irretroatividade da norma [34].

É que não se justifica o agravamento das condições de aquisição do direito às aposentadorias integrais, sequer do ponto de vista econômico. Em verdade, "a introdução da idade mínima, em moldes semelhantes aos observados na maioria dos países da OCDE, ou seja, entre 60 e 65 anos, reduziria o déficit potencial [...] Se tal mudança viesse acompanhada do fim das diferenças entre homens e mulheres, os efeitos redutores nos gastos seriam ainda mais pronunciados" [35], podendo compensar razoavelmente o que se perde, em arrecadação, com a manutenção da imunidade dos inativos, ou mesmo com a vinculação dos proventos e pensões às remunerações da ativa. O Poder Executivo preferiu, todavia, manter a distinção etária e contributiva entre homens e mulheres, carreando o ônus da reforma à classe dos inativos atuais (taxação) e futuros (taxação, benefício médio e desvinculação). Na verdade, "apenas uma queda muito expressiva do teto de benefícios provocaria efeitos modestos na redução dos gastos" [36] ¾ raciocínio que vale para a redução do piso e do teto do serviço público, mas vale também para a própria taxação dos proventos de aposentadoria e pensões.

É cediço, portanto, que essa política de cortes e os seus resultados "não melhorariam o perfil financeiro do sistema, além de colocar em risco o benefício dos segurados, tendo em vista que [p.ex.] todos aqueles que recebessem salários superiores ao teto fixado deveriam destinar seus recursos para fundos previdenciários capitalizados que dependeriam, por sua vez, do comportamento do portfólio para fixar a taxa de reposição. A recente experiência chilena não deixa margem a dúvidas sobre o problema" [37]. Desse modo, para promover reformas efetivas pelo viés dos benefícios, "seria necessário reduzir substancialmente o valor dos benefícios e manter inalterada a arrecadação de contribuições para manter o sistema em equilíbrio. Embora tal situação possa ser efetiva do ponto de vista financeiro, ela colocaria em risco as condições de vida dos inativos e causaria sérios prejuízos às economias das pequenas localidades [38], aumentando as migrações internas. Isso acabaria por incrementar as pressões por gastos sociais compensatórios que, em última instância, reduziriam os possíveis ganhos financeiros obtidos com a reforma" [39].

Em outras palavras, o ajuste fiscal às custas da capacidade econômica dos direitos em tese do servidor público tende a ser, a médio e longo prazo, funesto para o país, seja por implicar relativo desaquecimento da economia, em locais e graus variáveis, com possíveis deslocamentos migratórios internos, seja ainda por compelir o servidor da ativa a aderir a expedientes de complementação de renda escusos ou ruinosos. É, ademais, desnecessário, uma vez que as contas gerais da Seguridade Social têm sido superavitárias [40] e eventuais ajustes podem ser efetuados mediante aportes oriundos de outras fontes de financiamento, que não afetem direitos sociais e tampouco comprometam a atividade econômica [41]. Na verdade, a vinculação preferencial das contribuições às folhas de salários, desde a EC n. 20/98, é um equívoco programático e um recuo histórico, que desmerece o paradigma instaurado pela Constituição Federal de 1988, de múltiplas fontes de financiamento para a Seguridade Social [42].

Desse contexto extrai-se que, para a preservação da confiança e da segurança ínsitas ao Estado Democrático de Direito, as regras de transição da EC n. 20/98 ― supondo-se-as, por agora, aplicáveis aos juízes ― haveriam de ser preservadas. Diga-se-o "ad argumentantum tantum", porque já a primeira reforma previdenciária (1998) é de duvidosa constitucionalidade, pelas razões expostas na introdução. Mas, se ali os direitos em formação foram validamente alterados (antes da EC n. 20/98 sequer havia idade mínima para a aposentação com proventos integrais, como tampouco se exigia "tempo de contribuição", mas "tempo de serviço"), impendia instituir regras de transição, como imperativo de justiça social e confiança pública, já que os servidores de então haviam acedido a um estatuto jurídico bem definido no momento da posse no cargo ou função. E, uma vez instituídas, jamais poderiam ser ao depois frustradas, como se deu com o advento da EC n. 41/03. Nesse passo ― seguindo o programa axiológico consagrado alhures pela Tribunal Constitucional português, de segurança e confiança públicas [43] ―, é de inteira juridicidade admitir que aqueles servidores, sejam funcionários ou agentes políticos, mantiveram as condições de aposentação dispostas pelo artigo 8º da EC n. 20/98.

Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Magistratura, previdência social e constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 713, 14 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6873. Acesso em: 22 nov. 2024.

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