DA ADIAFORIZAÇÃO GENERALIZADA
A estrutura burocrático-técnico-científica encapuzou o mundo com um pretenso véu de neutralidade, imparcialidade, objetividade e independência. Zygmunt Bauman (2011, p. 202) alerta quanto ao problema da adiaforização: “tornar certas ações ou certos objetos de ação moralmente neutros ou irrelevantes – isentá-los da adequada categoria de fenômenos para a de avaliação moral”. Algumas pessoas, são, portanto, excluídas da esfera dos sujeitos morais, “ou pelo encobrimento da ligação entre a ação parcial e o efeito definitivo de efeitos coordenados, ou ainda pela entronização de disciplina procedural e lealdade pessoal no papel de critérios imperativos do desempenho moral”.
A burocracia auxiliada pela tecnologia ampliou o alcance e os efeitos da adiaforização. Nota-se, em escala planetária, a “insensibilização” frente ao sofrimento humano, que parece estar banalizado, pela exposição da crueldade em volume letárgico. Os meios de comunicação e entretenimento veiculam, diariamente, centenas de cenas de morte violenta e cadáveres nos noticiários, filmes, seriados e demais tipos de programas. “Hoje vivemos um constante carnaval de crueldade”, enuncia Bauman (2011, p. 203).
Devido ao efeito dramático dos meios de comunicação e entretenimento, que adiciona intensidade, emoção e carga dramática, a realidade – como realmente ocorreu – parece imperfeita e menos interessante. Então, analisa Bauman (2011, p. 204), a crueldade real parece para o consumidor midiático, como imperfeita em termos técnicos e desinteressante, inferior, portanto, à crueldade mutiladora e à matança sofisticada editadas em clima de high tech.
A realidade tende a ser avaliada de acordo com o grau de proximidade com que ela simula a criatividade dramática e a precisão de um crime com ou filme-catástrofe ou a produtividade de um videogame com seus milhares de aliens exterminados a cada minuto. Por outro lado, a mediação eletrônica da ‘guerra real’ pode tornar muito mais fácil daqueles com estômago mais fraco. É possível esquecer com facilidade os motivos de um tiroteio ou de um bombardeio. Afinal, não é realmente um tiroteio ou bombardeio, mas um movimento de joystick e um apertar de botões. (...) Todas as imagens disputam entre si a atenção no mesmo universo de significado, o da diversão – dentro do mundo esteticamente organizado, estruturado pela relevância da atratividade, do prazer potencial, do despertar de interesse. (BAUMAN, 2011, p. 204-205)
Os autores da crueldade e as vítimas distanciam-se na medida em que armas de guerra mais atualizadas, baseadas em sistemas de identificação eletrônica, são empregadas. A responsabilidade de identificar as vítimas é maior. E caso de erro, o problema pode ser facilmente descartado como um “tilt” de computador. Nunca foi tão fácil separar a ação do seu significado moral. “As armas e estratégias de combate mais atualizadas são as de massacre e matança, e não as de combate”, assevera Bauman (2011, p. 207).
JUS AD BELLUM E JUS IN BELLO
Duas partes constituem a realidade moral da guerra, o que faz com que seja julgada duas vezes. Primeiro, de natureza adjetiva, com relação aos motivos que levaram os Estados à luta, se foram justos ou injustos. Segundo, de natureza adverbial, com relação aos meios empregados, se foi travada de modo justo ou injusto. “Escritores medievais tornaram a diferença uma questão de preposições, fazendo a distinção entre jus ad bellum, a justiça do guerrear, e do jus in bello, a justiça no guerrear”, explica Walzer (2003, p. 34).
Com a filosofia cristã medieval que se desenvolveu a noção de guerra justa. Para São Tomás de Aquino, observa Fernanda Florentino Fernandes Jankov (2009, p. 10-11), uma guerra justa tem os seguintes elementos: “a) causa justa; b) intenção reta nas hostilidades (evitar fazer o mal e procurar fazer o bem); c) declaração realizada pela autoridade competente”. “A guerra, para ele, deveria ter por fim o bem comum”, comenta Jankov (2009, p. 11).
Posteriormente, Francisco de Vitória, internacionalista, calcou a teoria de que a violação de um Direito seria a única causa para empreender uma guerra. No entanto, se deve considerar o princípio da proporcionalidade, visto que delitos leves não podem levar à guerra, pois é a grandeza do delito que acarreta na mesma, que pode ser acompanhada de sanções penais, completa Jankov (2009, p. 11).
Em “De Jure Belli ac Pacis” (1625), Hugo Grotius, pai da doutrina do “estado de guerra”, “definiu-a como ‘status’ dos que lutam pela força, devendo corresponder a uma justa causa, ensina Jankov (2009, p. 11). Em sua obra, Grotius afirmava que todas as forças deveriam unir-se contra os culpados para a manutenção da paz, para a imposição do princípio da repressão universal, ancorado no senso comum da humanidade, “derivado da lei natural”.
Em 1758, Emer Vattel[3] reafirma que as nações têm o Direito de utilizar a força para reprimir os que violam as leis estabelecidas entre elas pela sociedade da natureza, o que atacam o bem e a saúde da mesma. São duas as consequências da doutrina da guerra:
- Submete a guerra ao Direito, deslocando-a do império da força. Assim, o recurso ao uso da força é jurisdicionado;
- Conduz à distinção entre guerra lícita e o abuso do uso da força, como resultado da defesa de um Direito das relações de força entre potências; a guerra aparece como meio de luta contra a impunidade que não será admitida caso exista uma violação do droit de gens. (JANKOV, 2009, p. 12)
Já no século XX, prosegue Jankov (2009, p. 12), ressurge a doutrina da guerra justa (Strisower, Kelsen e Guggenheim), que somente assim o é se for uma reação à violação do Direito Internacional Positivo, ao contrário dos medievais, que admitiam a guerra como sendo justa se fosse invocada em caso de violação do Direito Natural.
Jus ad bellum exige que façamos julgamentos sobre agressão e autodefesa. Jus in bello, sobre o cumprimento ou a violação das normas costumeiras e positivas de combate. Os dois tipos de julgamento são independentes em termos lógicos. É perfeitamente possível que uma guerra justa seja travada de modo injusto e que uma guerra injusta seja travada em estrita conformidade com as normas. Contudo, essa independência é desconcertante, muito embora nossas opiniões sobre guerras específicas costumem estar em conformidade com seus termos. É crime cometer agressão, mas a guerra de agressão é uma atividade regida por normas. É certo resistir à agressão, mas a resistência está sujeita a limitações morais (e legais). O dualismo de jus ad bellum e jus in bello está no cerne de tudo o que é mais problemático na realidade moral da guerra. (WALZER, 2003, 34-35)
John Rawls (2001), em “Direito dos Povos”, tece também suas considerações sobre a doutrina da guerra justa (jus ad bellum) e à conduta de guerra (jus in bello). No âmbito da teoria não-ideal, Rawls discute como povos relativamente bem ordenados (Povos Liberais e Povos Decentes)[4] deveriam agir diante povos não bem ordenados (Estados Fora da Lei e Sociedades Oneradas)[5]. A guerra é permitida pelo Direito dos Povos em caso de autodefesa, na doutrina de Rawls, dos povos bem ordenados (liberais e decentes). Rawls (2001, p. 30) prefere utilizar “Povos”, em vez de “Estados”, pois concebe os Povos Democráticos Liberais[6] e os Povos Decentes[7] “como atores na Sociedade dos Povos, exatamente como os cidadãos são os atores na sociedade nacional”.
Quando uma sociedade liberal guerreia em autodefesa, ela o faz para proteger e preservar as liberdades básicas dos seus cidadãos e das suas instituições políticas constitucionalmente democráticas. Na verdade, uma sociedade liberal não pode exigir com justiça que seus cidadãos lutem para conquistar riqueza econômica ou obter reservas naturais, muito menos conquistar poder e império. Os povos decentes também têm direito à guerra em autodefesa. Eles descreveriam o que estão defendendo diversamente do que faz um povo liberal, mas os povos decentes também têm algo que vale a pena defender. (...) eles admitem e respeitam os membros de diferentes credos e respeitam instituições políticas de outras sociedades, inclusive de sociedades (...) não-liberais. Também respeitam e honram os Direitos Humanos; sua estrutura básica contém uma hierarquia de consulta decente e eles aceitam um Direito dos Povos (razoável). (RAWLS, 2001, p. 119-120; p. 121)
GUERRA DE AGRESSÃO COMO CRIME: NORMA PENAL INTERNACIONAL INCRIMINADORA EM BRANCO?
Em princípio, a guerra é proibida pelo Direito Internacional, sendo admitida somente como legítima defesa contra um delito e direcionada contra o Estado causador da mesmo, leciona Hans Kelsen (1999a, p. 472). “Como ocorre com as represálias, a guerra deve ser uma sanção para não ser caracterizada como delito. Trata-se da teoria de bellum justum.” O Direito protege a não intervenção dos Estados, em assuntos internos e externos, consagrando-lhes a independência. A não intervenção pressupõe a doutrina do bellum justum, que foi fundamento do Tratado de Paz de Versalhes, o Pacto da Liga das Nações e o Pacto Kellog-Briand[8], importantes estatutos do Direito Internacional Positivo (p. 475). No entanto, a preferência por essa teoria tem embasamento mais político que científico, assevera Kelsen (1999a, p. 486): “Que a guerra seja, em princípio, um delito, sendo permitida apenas como sanção, é uma interpretação possível das relações internacionais, mas não a única.”
A guerra de agressão pode ser legal ou ilegal. “Quando ilegal, pode ser denominada ‘crime internacional’ (international crime), como se pode notar no Protocolo de Genebra de 1924 para a Resolução Pacífica de Disputas Internacionais e na Resolução da Oitava Assembléia da Liga das Nações”, ressalta Jankov (2009, p. 15).
No entanto, a guerra de agressão foi criminalizada somente depois da II Guerra Mundial, com a Carta do Tribunal Militar Internacional anexada ao Acordo de Londres para o Estabelecimento de um Tribunal Militar Internacional (1945).
Segundo o art. 6º (a) da Carta, ‘o planejamento, preparação, iniciação ou promoção de uma guerra de agressão, ou de uma guerra de violação dos tratados, acordos e garantias internacionais, ou ainda a participação num plano comum ou conspiração visando os objetivos supracitados’ constituem ‘crimes contra a paz’, dando origem à responsabilidade individual (e fica especificamente acrescentado que ‘líderes, organizadores, instigadores e cúmplices que participem na formulação ou na execução’ do plano ou conspiração serão responsáveis por ‘todos os atos realizados por qualquer pessoa na execução de tal plano’). (DINSTEIN, 2004, p. 163)
A essência do art. 6º (a) da Carta do Tribunal Militar Internacional foi reiterada, com pequenas variações, no art. II (1) (a) da Lei de Controle do Conselho nº 10 (fundamento jurídico dos Processos Subsequentes de Nuremberg, nos quais outros criminosos alemães de guerra foram julgados por Tribunais Militares Americanos), e no art. 5º (a) da Carta ao Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (em que o General MacArthur designou para julgamento os principais criminosos de guerra japoneses), detalha Dinstein (2004, p. 163). “No seu julgamento de 1946, o Tribunal Militar Internacional em Nuremberg afirmou que o art. 6º (a) da Carta de Londres é declaratório do Direito Internacional Moderno, que considera a guerra de agressão como crime grave”, menciona Dinstein (p. 164). Dessa maneira, rechaçou o argumento de violação do princípio da legalidade com relação à criminalização ex post facto das condutas dos acusados.
Ou seja, “desde sempre” a guerra de agressão é um crime, daí o efeito meramente declaratório do art. 6º (a) da Carta.[9] Aliás, preleciona Jankov (2009, p. 44), que o Estatuto de Roma[10], consagra o Direito Consuetudinário Internacional, sendo inquestionável a incriminação dos tipos penais previstos em seu bojo, reitera-se, ademais, a sua aplicação aos Estados Não-Partes do Estatuto, de modo que as normais penais internacionais tenham caráter de jus cogens e de aplicação erga omnes.
São os homens, e não entidades abstratas, que cometem os crimes contra o Direito Internacional, então, apenas com a sua punição que se fortalece o Direito Internacional.
O Julgamento de Nuremberg foi inovador quando introduziu a criminalidade da guerra no Direito Internacional Geral. Entretanto, o assunto não é mais tão importante. É virtualmente irrefutável que o atual Direito Internacional Positivo espelhe o Julgamento. A guerra de agressão hoje em dia constitui crime contra a paz. Não apenas um crime, mas o crime supremo sob o Direito Internacional. (...) Entretanto, nenhuma acusação por crimes contra a paz (em violação ao jus ad bellum) atingiu os conflitos armados múltiplos da era posterior à II Guerra. (DINSTEIN, 2004, p. 167)
Entretanto, o crime de agressão (guerra de agressão) teve sua definição deferida a um momento futuro, nos termos dos artigos 121 e 123 do Estatuto de Roma. Tratar-se-á de uma norma penal internacional incriminadora em branco, carente de fixação de significado e sentido de outra norma (em sentido estrito, ou não) para que tenha eficácia plena? Eis uma questão que perdura em aberto. O que se tem como óbvio e ululante é apenas o artigo 1º do Pacto Briand-Kellog: “As altas partes contratantes declaram solenemente, em nome dos seus respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais, e a isso renunciam, como instrumento de política nacional, em suas relações recíprocas.” No preâmbulo do pacto, consta que os Estados signatários que recorrerem à guerra para a promoção dos seus interesses, devem ser privadas das vantagens conferidas pelo mesmo.