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Anotações jusfilosóficas contemporâneas sobre a guerra

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23/05/2019 às 16:10
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DA EVENTUAL INCAPACIDADE DA ÉTICA E A APLICAÇÃO DO JUS IN BELLO

A guerra, para Gustav Radbuch (2010, p.295-296), só tem dois sentidos: a vitória ou a derrota. O conflito de valores ou interesses é examinado posteriormente, sendo objeto de estudo da ética tão somente a culpabilidade da guerra.[11] Portanto, nos termos de Radbruch, a ética é incapaz de resolver o problema da guerra[12], sendo que seu juízo de valor recai sobre a participação do indivíduo[13] na mesma, em se falando de inocência ou culpa.

Entendida dessa maneira, essa culpabilidade não pode de modo algum ser inequivocamente determinada, pois, enquanto a guerra tenha validez como instituição jurídica, em todo passo diplomático está implícito, mesmo que em uma forma muito sutil, o dolus eventualis de uma guerra, toda a política está orientada para a possibilidade de guerra. (RADBRUCH, 2010, p. 296)

Talvez, em vez de se falar da incapacidade da ética, a questão seja a de se enfocar a conduta durante a guerra, ou seja, o jus in bello. Trata-se da regulamentação da guerra, constituindo-se de normas aplicadas no estado de guerra. É a substituição da força pelo Direito. Para Baruch de Spinoza, “toda atividade pressupõe uma moral, mesmo a de adversários combatentes”, de acordo com Jankov (2009, p. 16): “A regulamentação convencional dos conflitos armados e a afirmação do Direito Internacional Humanitário, ambos baseados em acordos internacionais, são fenômenos jurídicos que datam da segunda metade do século XIX, impulsionados por Henry Dunant e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

As regras do Direito da Guerra, no final do século XIX e começo do século XX, não eram acompanhadas de sanções internacionalmente aplicáveis. Os Estados eram livres para punir, ou não, os atos cometidos pelas tropas contra inimigos ou pelos inimigos, narra Jankov (2009, p. 17), ficando a cargo do poder discricionário dos Estados. As Convenções de Haia de 1899 e 1907, embora fossem codificações de Direito de Guerra mais significativas em tratado internacional, tinham mais como objetivo impor obrigações e deveres aos Estados, sem criar responsabilidade criminal (p. 19), daí, a necessidade de ser complementada pelas Convenções de Genebra de 1949 e seus dois Protocolos de 1977 (p. 35). Foi em 17 de julho de 1998, que foi aprovado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em Roma, em conjunto com um “Final Act”, com a previsão de criação de uma Comissão Preparatória pela Assembléia Geral das Nações Unidas.

Dentre as tarefas a serem desempenhadas pela Comissão destaca-se a elaboração do Regulamento Processual (Rules of Procedure and Evidence), bem como os Elementos Constitutivos dos Crimes (Elements of Crimes), que ‘auxiliarão o Tribunal a interpretar e aplicar os artigos 6º, 7º e 8º ‘ (crime de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, respectivamente) do Estatuto do TPI, finalizados em 30 de junho de 2000.

Para Rawls (2001, p. 124-127), no plano da Filosofia Política e Jurídica, são seis os princípios que restringem a conduta de guerra (jus in bello): 1) o objetivo de uma guerra justa é a justa e duradoura paz entre os povos, inclusive o seu atual inimigo; 2) povos bem ordenados (liberais ou decentes) não fazem guerra entre si, só com os povos não bem ordenados que, em virtude de doutrinas expansionistas, coloquem em risco a segurança e as instituições livres das sociedades bem ordenadas; 3) Os povos bem ordenados, no jus in bello, devem distinguir três grupos (líderes e funcionários de Estados Fora da Lei, seus soldados e sua população civil). Os líderes e funcionários, com assessoria das elites, desejaram a guerra, assim, são responsáveis por ela. A população civil não pode ser responsabilizada, mesmo que haja alguns simpatizantes da guerra, pois são influenciadas pela propaganda do Estado e muitas vezes mantida na ignorância. Os soldados, exceto os altos escalões dentre os oficiais, não são responsáveis, pois, geralmente, são alistados compulsoriamente e doutrinados nas virtudes guerreiras de maneira cega. São atacados diretamente pura e simplesmente porque os povos bem ordenados não têm escolha, por uma questão de defesa; 4) Os Direitos Humanos dos membros do outro lado devem ser respeitados pelos povos bem ordenados, para ensiná-los (soldados e civis) o seu conteúdo e mensagem, pelo tratamento que receberam; 5) As ações e proclamações dos povos bem ordenados, durante a guerra, devem prever qual paz e quais relações buscam; 6) Deve-se restringir o raciocínio prático de meios e fins, com fronteiras que não devem ser cruzadas nas normas de conduta de guerra, exceto em situações emergenciais.


CRIMES INTERNACIONAIS E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Os crimes internacionais têm as seguintes características cumulativas:

1 Violações às normas costumeiras internacionais, abrangendo também as disposições dos tratados, que codificam ou consagram o Direito Consuetudinário, ou ainda contribuem para a formação deste;

2 Normas com o objetivo de proteger valores considerados importantes por toda comunidade internacional, consequentemente obrigatórias a todos Estados e indivíduos. (...)

3 Além disso, existe interesse universal na repressão desses crimes. Respeitados certos requisitos, os acusados podem, em princípio, ser julgados e punidos por qualquer Estado, independentemente do vínculo territorial ou de nacionalidade com o autor ou a vítima. (....)

4. Na hipótese de o autor ter agido em sua capacidade oficial, ou seja, como oficial de Estado de jure ou de facto, o Estado em cujo nome tenha praticado a conduta proibida está impedido de alegar o gozo de imunidade jurisdição civil ou penal do Estado estrangeiro com base no Direito Consuetudinário aplicável aos oficiais do Estado que ajam no exercício das suas funções. (JANKOV, 2009, p. 57-59)

Não se encontram no conceito de crimes internacionais o tráfico ilegal de drogas e de armas, contrabando de materiais letais ou potencialmente letais, ou lavagem de dinheiro. Tais crimes não se encontram no Direito Consuetudinário, mas em tratados e resoluções de organizações internacionais. “(...) são aplicados contra os Estados, por entes privados ou organizações criminais. Na hipótese de envolverem agentes estatais, estes agem por interesses particulares, realizando condutas consideradas crimes pela legislação nacional”, leciona Jankov (2009, p. 59).

O Tribunal Penal Internacional tem competência para julgar quatro grupos de crimes, conforme Jankov (2009, p. 59): “genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão”. Genocídio, norma consuetudinária internacional codificada pelo Estatuto de Roma, consiste em cinco atos, para destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso: “homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de vida com o objetivo de provocar sua destruição física, total ou parcial; imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; transferência, à força, de crianças para outro grupo”. (JANKOV, 2009, p. 60).

O artigo 6º do Estatuto de Roma depreende que o dolus specialis distingue o homicídio dos demais crimes contra a humanidade e dos crimes de guerra. Esse especial intuito é o de destruir em todo, ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, assevera Jankov (2009, p. 61).

Os crimes contra a humanidade estão previstos no artigo 7º do Estatuto de Roma: “1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘crime contra a humanidade’ qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque. 2. O ataque contra uma população civil deve ser praticado de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a persecução política.”

Por sua vez, os crimes de guerra estão tipificados no artigo 8º do Estatuto de Roma, agrupados em quatro categorias, duas direcionadas para conflitos armados internacionais e duas, para conflitos internos. Estes seriam, propriamente, as violações do jus in bello, ou seja, violações sérias de normas consuetudinárias ou dos tratados constitutivos do Direito Internacional Humanitário dos conflitos armados. Aí, um problema de ordem prática, assinala Jankov (2009, p. 65), para que o Tribunal Penal Internacional tipifique uma conduta como crime de guerra, deve haver consideração do Direito Internacional Geral de que tal violação é crime de guerra.

Dessa forma, o Tribunal Penal Internacional deve verificar, segundo Jankov (2009, p. 65-66): “1. Com base no Direito Internacional geral, se a conduta é considerada violação do Direito Humanitário Internacional dos conflitos armados e também; 2. Conforme o Direito Consuetudinário Internacional, a conduta constitui crime de guerra.”

A guerra de agressão, como ressaltado em tópico anterior, é norma penal internacional incriminadora em branco, carente de outra norma da mesma espécie, ou não, para fixar-lhe sentido, para que tenha eficácia plena.


A PAZ PERPÉTUA, O DIREITO DOS POVOS E A JUSTIÇA GLOBAL

John Rawls inspira-se na ideia de foedus pacificum de Immanuel Kant, esboçada no texto “Paz Perpétua” (1975) para formular sua teoria do Direito dos Povos. Os Estados Nacionais, segundo Kant (2002, p. 124), estariam submersos num Estado de Natureza, no qual a guerra seria o meio necessário e lamentável para se afirmar, pela força, o Direito. Mesmo no Estado de Direito, ainda há ameaça constante de hostilidades por parte dos homens que vivem em sociedade. Daí, a necessidade de se instituir um Estado de Paz, “pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro (o que só pode acontecer num Estado Legal – de Direito), cada um pode considerar como inimigo quem exigiu tal sentença”, afirma Kant (p. 127).

Os Estados devem ser republicanos, defende Kant (p. 128) para assegurar os princípios da liberdade dos seus membros (enquanto homens), submetendo-os a um único Direito (como súditos), estabelecendo a igualdade entre os mesmos (enquanto cidadãos), derivando da idéia de contrato social. O Estado Republicano exige a anuência dos cidadãos para que haja adesão ou não a uma guerra, o que viabilizaria, em si, a paz perpétua.

O Direito das Gentes (dos Povos, para Rawls, ou Internacional, de acordo com a terminologia corrente) teria seu fundamento na existência de uma federação de Estados Republicanos Livres. Tratados de paz seriam soluções terminativas que poriam a termo uma guerra, porém, não eliminaria o Estado de Guerra. Então, faz-se necessário um pacto entre os povos, uma federação da paz (foedus pacificum), que teria a função de por fim a todas as guerras, para sempre, idealiza Kant (2002, p. 134-135).

Tal federação não teria a pretensão de poder de um Estado, preconiza Kant (p. 135), mas de poder para “manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados Federados, sem que estes devam submeter-se a leis públicas e sua coação”. Mas como ter eficácia do Direito, num Estado de Natureza, no qual estão os Estados Nacionais? Uma das propostas de Kant (p. 136) é a construção de um Estado de Povos, uma República Mundial, que resultaria no término dos povos da Terra, o que, para Rawls (2000, p. 46), seria um despotismo global, ou império frágil com frequentes guerras civis. Caso a Sociedade Internacional não opte por isso, haveria a necessidade de se formar uma federação contrária à guerra, com contínua e permanente expansão, embora haja sempre o perigo latente da sua irrupção.

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O Direito Cosmopolita, assevera Kant (p. 137), deve ter condições de hospitalidade universal, ou seja, “o Direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude de sua vinda ao território de outro”, “um Direito de visita, que assiste todos os homens para se apresentar à sociedade em virtude do Direito da propriedade comum da superfície da Terra”.

Rawls (p. 12-13), em “Direito dos Povos”, salienta a possibilidade de celebração de um acordo (contrato social hipotético) entre povos bem-ordenados (liberais ou decentes), para concretizar efetivamente a liberdade dos seus cidadãos. Os princípios do Direito dos Povos seriam estes:

1 Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos.

2 Os povos devem observar tratados e compromissos.

3 Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam.

4 Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção.

5 Os povos têm o Direito de autodefesa, mas nenhum Direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa.

6 Os povos devem honrar os Direitos Humanos.

7 Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra.

8 Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo e decente.

Algumas instituições a exemplo da própria Organização das Nações Unidas (ONU), como idealmente concebidas, poderiam dar efetividade ao Direito dos Povos, fazendo valer os seus princípios, com a autoridade de “expressar para a sociedade de povos bem-ordenados a sua condenação de instituições nacionais injustas em outros países e esclarecer casos de violação dos Direitos Humanos”, propõe Rawls (p. 47). A efetividade do Direito dos Povos seria garantida por organizações cooperativas “assegurar o comércio justo entre os povos, outra para permitir que um povo peça empréstimo a um sistema bancário cooperativo, e a terceira, uma organização com papel similar ao das Nações Unidas, à qual se denominará Confederação dos Povos (não Estados)”, teoriza Rawls (p. 54).

Faz-se também necessária a busca da justiça global, assim definida por Amartya Sen (2011, p. 444), em “A Idéia de Justiça”. Como exposto anteriormente, pode ser impossível, ao nos nas atuais conjunturas, a formação de um Estado Democrático Global. No entanto, se a democracia for encarada como forma de argumentação racional pública, há possibilidade de se exercitar a democracia global. Várias vozes, de diversas fontes, de instituições formais e não formais – embora não perfeitas para fins de argumentação global – existem e podem ter certa eficácia. Elas ampliam e disseminam as informações e ampliam as possibilidades de discussão internacional, defende Sen (p. 443).

Aqui, muitas instituições têm um papel a desempenhar, inclusive a ONU e as instituições vinculadas a ela, mas há também o trabalho engajado das organizações da sociedade civil, de muitas ONGs e de algumas parcelas da imprensa. Há ainda um papel importante para as iniciativas empreendidas por inúmeros artistas individuais, operando em conjunto. (...) A distribuição dos benefícios das relações globais depende não só das políticas internas, mas também de um leque de arranjos sociais internacionais, incluindo tratados comerciais, leis de patentes, iniciativas sobre a saúde global, convênios educativos internacionais, centros de disseminação tecnológica, restrições ecológicas e ambientais, negociação de dívidas acumuladas (muitas vezes criadas por governos militares irresponsáveis no passado) e contenção de conflitos e guerras locais. Todos esses temas merecem discussão, podendo ser objetos fecundos para o diálogo global, incluindo críticas de todos os quadrantes. (SEN, p. 443-444)

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Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, Formado pelo Programa Especial de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal, Mestre em Filosofia (Ética). Autor de artigos de revistas e livros jurídicos. Em Portugal, lançou o livro de literatura "Contos do Infinito".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. Anotações jusfilosóficas contemporâneas sobre a guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5804, 23 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70139. Acesso em: 23 abr. 2024.

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