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Anotações jusfilosóficas contemporâneas sobre a guerra

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23/05/2019 às 16:10
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CONCLUSÃO

Clausewitz (1998, p. 27;28-29) já enunciava que “guerra é uma simples continuação da política por outros meios”. A guerra sempre resulta de um motivo político, sendo ela própria um ato político. É um camaleão que modifica sua natureza no caso concreto, mas também um fenômeno de conjunto relativo às tendências que nela predominam, pressupondo a violência original, o ódio, a animosidade, o cego impulso natural, o jogo de probabilidades e do acaso, que, por ser instrumento da política, pertence à razão pura.

Daí, se faz necessária a presença da tolerância religiosa e ideológica, classificada provisoriamente, por Luiz Paulo Rouanet (2010, p. 31), em quatro tipos:

  1. tolerância governamental: é quando o poder estabelecido tolera a coexistência de crenças e práticas religiosas divergentes, desde que não ponham em xeque a estabilidade e a legitimidade do Estado;
  2. tolerância passiva: é a tolerância que os homens do século XVIII (Kant, Goethe) qualificavam de odiosa, arrogante, pois é aquela tolerância em que se está convencido da superioridade da própria crença, mas em que se aceita que outros tenham ou pratiquem suas próprias crenças;
  3. tolerância ativa: é aquela em que, independentemente da própria convicção religiosa ou política, se defende ativamente o Direito de outrem a ter e a praticar suas próprias crenças;
  4. tolerância da diferença: é aquela em que as pessoas pouco se importam com as convicções dos demais, numa espécie de relativismo limítrofe da apatia.

É evidente que, de acordo com Rouanet, a tolerância ativa é a que “tem maiores possibilidades de sucesso para o objetivo de promover a paz, a justiça e a tolerância no mundo”. No atual cenário mundial em que a paz aparece extremamente fragilizada, a contribuição da Filosofia Política e da Filosofia do Direito é fundamental para se repensar as práticas cotidianas tanto da Política quanto do Direito. Diante dos deslizes dos políticos e demais atores do cenário global, a crise econômica é um dos menores males que se avista. Se a política falha ao tecer o condão da paz, entra em cena sua outra faceta, a guerra. Edmund Burke, salvo melhor juízo, anunciava: “O mal prospera quando os bons se omitem.” Por isso, é de suma importância a participação dos intelectuais no debate global engajado, no intuito de qualificá-lo para evitar males maiores, frutos das irracionalidades do senso comum. Sigam-me os bons.[14] No bom sentido, é claro.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Vida em Fragmentos. Sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 

DINSTEIN, Yoram. Guerra, Agressão e Legítima Defesa. 3. ed. Barueri: Manole, 2004.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2002.

KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998a

____. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998b.

MELLO, Celso Duiviver Albuquerque de. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. v. I e II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

OPPENHEIM, L. International Law. 7. ed. v. II, 1953-1654, p. 884-890.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ROUANET, Luiz Paulo. Paz, Justiça e Tolerância no Mundo Contemporâneo. São Paulo: Loyola, 2010.

SEN, Amartya. A Idéia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

WALZER, Michael. Guerras Justas e Injustas. Uma Argumentação Moral com Exemplos Históricos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


Notas

[1] Interessante ler “Não há dia fácil. Um líder da tropa de elite americana conta como mataram Osama Bin Laden”, de Mark Owen e Kevin Maurer, da editora Paralela, lançado em 2012, que narra uma série de missões do Grupo para o Desenvolvimento de Operações Especiais da Marinha (DEVGRU), popularmente conhecida como Equipe Seis do Seal (sigla para combatentes para situações em Sea – Mar, Air – Ar, e; Land – Terra), a unidade de missões especializadas da Marinha Americana. O DEVGRU trabalha, muitas vezes, em estreita cooperação com a Força Delta, do Exército Americano, já que ambas são subordinadas ao Comando de Operações Especiais Conjuntas (JSOC). Em “Força Delta – Por dentro da Tropa Antiterrorista Americana”, o veterano Eric L. Haney relata alguns dos procedimentos da tropa de elite mais secreta do Exército Americano. O livro de Haney inspirou o seriado “The Unit”, que foi ao ar de 7 de março de 2006 a 10 de maio de 2009, pela CBS, nos Estados Unidos.

[2] “Ora, a linguagem com que debatemos sobre a guerra e a justiça é semelhante à linguagem do Direito Internacional. (...) Há muitas obras sobre esse tema, e eu muitas vezes recorri a elas. Tratados legais não fornecem, entretanto, uma explicação perfeitamente plausível ou coerente de nossos argumentos morais; e as duas abordagens mais comuns à lei refletidas nos tratados necessitam de suplementação de fora do âmbito legal. Antes de mais nada, o positivismo legal, que gerou importantes obras eruditas no final do século XIX e início do século XX, vem se tornando na era as Nações Unidas cada vez menos interessante. (...) Os juristas construíram um mundo de papel, que em pontos cruciais não corresponde ao mundo no qual ainda nós ainda vivemos.” (WALZER, 2003, p. XXV-XXVI)

[3] Emmer Vattel (1758), segundo Jankov (2009, p. 15-16), tornou clara a distinção entre jus ad bellum e jus in bello.

[4] “Tomamos como característica básica dos povos bem ordenados o fato de que desejam viver num mundo em que todas as pessoas aceitam e seguem o (ideal do) Direito dos Povos.” (RAWLS, 2001, p. 117)

[5] “Um tipo lida com condições de não-aquiescência, isto é, com condições em que certos regimes recusam-se a aquiescer a um Direito dos Povos razoável; esses regimes pensam que uma razão suficiente para guerrear é o fato de que a guerra promove, ou poderia promover, os interesses racionais (não-razoáveis) do regime. Chamo esses regimes Estados Fora da Lei. O outro tipo (...) lida com condições desfavoráveis, isto é, com as condições de sociedades cujas circunstâncias históricas, sociais e econômicas tornam difícil, se não impossível, a conquista de um regime bem ordenado, liberal ou decente. Chamo a essas sociedades de sociedades oneradas.” (RAWLS, 2001, p. 118)

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[6] “Os povos liberais têm três características básicas: um governo constitucional razoavelmente justo, que serve os seus interesses fundamentais; cidadãos unidos pelo que Mill denominou ‘afinidades comuns’; e, finalmente, uma natureza moral. A primeira é institucional, a segunda é cultural e a terceira exige uma ligação firme com uma concepção política (moral) de Direito e justiça.” (RAWLS, 2001, p. 30-31)

[7] “A estrutura básica de um tipo de povo decente tem o que chamo ‘uma hierarquia de consulta decente’, e chamo esses povos ‘povos hierárquicos decentes’; o outro tipo de povo decente é simplesmente uma categoria que deixo de reserva, supondo que pode haver outros povos decentes cuja estrutura básica não se ajusta à minha descrição de hierarquia de consulta, mas que são dignos de tornar-se membros de uma Sociedade dos Povos.” (RAWLS, 2001, p. 82)

[8] Tratado de Renúncia à Guerra (1928), ou Pacto de Paris (Briand-Kellog), teve a adesão brasileira em 20 de fevereiro de 1934, via nota da Embaixada Brasileira em Washington, ratificada em 10 de abril de 1934, cujo depósito foi realizado em 10 de maio de 1934, também em Washington. E foi promulgado pelo Decreto nº 24.557, de 3 de julho de 1934, esclarece Jankov (2009, p. 14).

[9] O Estatuto de Roma dispõe: “Art. 22 (Nullun cimen sine lege) – 1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, nos termos do presente Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver lugar, um crime de competência do Tribunal. 2. A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada. 3. O disposto no presente artigo em  nada afetará a tipificação de uma conduta como crime nos termos do Direito Internacional, independentemente do presente Estatuto.”

[10] “O Brasil assinou o tratado em fevereiro de 2000, tendo-o ratificado pelo Decreto Legislativo nº 112, de 6 de junho de 2002, e pelo Decreto de Promulgação nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.” (JANKOV, 2009, p. 31)

[11] Não se concorda com a posição de Radbruch, como se argumenta ao longo do texto, com justificação em vários autores.

[12] Para Michael Walzer (2003, p. 3) o argumento de que a guerra está além (ou aquém) da apreciação moral não subsiste. Quer dizer: “Inter arma silent leges: em tempos de guerra, cala-se a lei.”

[13] Interessante o comentário de Bauman (2011, p. 266) acerca da participação do indivíduo na máquina da morte: “A modernidade não tornou as pessoas mais cruéis; ela apenas inventou uma maneira pela qual crueldades poderiam ser praticadas por pessoas não cruéis. As pessoas racionais, homens e mulheres bem-afixados na rede impessoal, adiaforizada, da organização moderna, podem fazê-lo perfeitamente.”

[14] Frase frequentemente utilizada pelo herói do seriado mexicano “Chapolim Colorado”.

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Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, Formado pelo Programa Especial de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal, Mestre em Filosofia (Ética). Autor de artigos de revistas e livros jurídicos. Em Portugal, lançou o livro de literatura "Contos do Infinito".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. Anotações jusfilosóficas contemporâneas sobre a guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5804, 23 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70139. Acesso em: 26 abr. 2024.

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