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Os consórcios públicos na sua legislação reguladora

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Agenda 29/07/2005 às 00:00

Trata-se de poderoso instrumento que, se bem aplicado, ensejará amplas possibilidades para municípios ou estados carentes de recursos, atualmente impossibilitados de enfrentar vultosos empreendimentos de infra-estrutura.

1. O art. 241 da Constituição e seus desafios.

Enfim, sete anos decorridos após a alteração do artigo 241 da Constituição pela Emenda Constitucional nº 19/98, é promulgada a lei reguladora dos consórcios públicos, de nº 11.107, de 6 de abril de 2005.

Em 1999, integramos, juntamente com Paulo Modesto e renomados administrativistas de outros Estados da Federação, a Comissão que iria elaborar o anteprojeto de lei reguladora do art. 241 da Constituição, constituída pelo Ministério de Administração e Reforma do Estado e presidida pelo eminente jurista Caio Tácito. Tendo sido honrada com a designação para relatora do aludido anteprojeto, chegamos a iniciar nossa modesta colaboração, que foi, entretanto, interrompida com a extinção daquele Ministério.

Desde então, nunca deixamos de nos preocupar com o assunto, ante a convicção da enorme importância dos convênios e consórcios públicos, como instrumentos para a efetiva concretização do ideal do federalismo regional, - tão caro aos interesses da realidade brasileira, - através da efetiva cooperação entre os entes da Federação. [01]

Em nossos estudos sobre a matéria, deparamo-nos com alguns problemas técnicos, cuja complexidade iria desafiar o legislador, inclusive pelas falhas e lacunas do texto constitucional em exame:

-1. A competência legislativa para disciplinar a gestão associada e a cooperação entre os entes federados em caráter nacional.

-O art. 241, com a redação lhe deu a Emenda Constitucional nº 19/98, apenas se referiu à lei, pura e simplesmente:

"A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos."

- Ensejou-se, assim, entre alguns juristas, o entendimento de que a matéria haveria de ser disciplinada pela lei de cada ente federado, em homenagem a sua autonomia constitucionalmente assegurada. Mas, evidentemente, o disciplinamento diferente de tais vínculos de cooperação entre entes federados, sem nenhuma coordenada comum, sem nenhuma linha de coerência, geraria verdadeira anarquia e não alcançaria os salutares resultados pretendidos pelo texto constitucional em comento.

A matéria há que ser entendida por dois ângulos diferentes, que deveriam desde logo ter sido convenientemente fixados pelo texto da emenda constitucional.

Uma coisa é a competência para estabelecer diretrizes ge- rais que norteiem a celebração de convênios e consórcios entre entes federados.

Outra, bem diversa, - esta, sim, da inarredável competência de cada ente de direito público, - é a decisão de participar, ou não, de tais ajustes, com a definição de seus objetivos e a estipulação de suas condições.

2. A indissociabilidade da matéria do art. 241 com a previsão constitucional do parágrafo único do art. 23, segundo o qual "lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional".

Tratando-se de cooperação entre entes federados e de gestão associada de serviços públicos, e tendo sido sempre os convênios e consórcios, na melhor doutrina e segundo a tradição de nosso direito, a forma predileta de instrumentalização dessa cooperação, pensamos que o assunto estaria melhor disciplinado por lei complementar, integrativa da Constituição e de hierarquia superior à ordinária.

3. Abandono da distinção clássica, que se fazia em nosso direito, entre convênios e consórcios [02].

Com efeito, sempre se entendeu que os convênios poderiam ser realizados entre pessoas e entidades diferentes, convergindo para uma mesma finalidade de interesse comum, que necessariamente não precisava ser da competência de todas e de cada uma delas.

Diferentemente, reservava-se a figura do consórcio para os ajustes celebrados entre entidades da mesma espécie e da mesma competência. Nesse sentido, desenvolveu-se amplamente, em todo o País, a instituição de consórcios intermunicipais, e de alguns isolados convênios interestaduais.

Mas, agora, o art. 241 da Constituição consagra a possibilidade de celebração de consórcios com a União, - ente federado único em sua espécie, - adotando posição inovadora, relativa à distinção tradicional. Os consórcios, de composição homogênea quanto à espécie de partícipes e quanto à competência destes, evoluem, assim, para uma natureza heterogênea, até então sem parâmetros em nosso direito.

É de notar, aliás, que o direito italiano, notoriamente inspirador da introdução do instituto entre nós, sempre admitiu uma composição heterogênea nos consórcios [03].

4. Manutenção da igualdade jurídica dos partícipes dos consórcios públicos, em consonância com o princípio federativo, embora cada um seja chamado a contribuir de acordo com as suas possibilidades para a consecução do objetivo comum.

A esse propósito, é oportuno recorrermos às lições de CARMEN LUCIA ANTUNES ROCHA, ao comentar o art. 23 da Constituição da República [04], que trata da gestão associada de serviços públicos de competência comum, bem como das coordenadas possíveis da lei complementar prevista em seu parágrafo único. Em comentários bastante apropriados à hipótese ora em comento, afirma a ilustre jurista, com toda a razão, em síntese :

- o movimento harmonizado em unidade na diversidade e na conjugação dos interesses, para a realização de um mesmo objetivo,é que dá a tônica fundamental da comunidade das competências;

- nem essa lei complementar poderá retirar a titularidade da competência de qualquer das entidades, nem restringi-la a um ponto em que se anule a sua participação no desempenho comum, porque a condição de titular da competência é constitucionalmente conferida a todas elas;

- nenhuma das entidades é titular exclusiva, superior ou desigual das competências;

- não se dá nem superioridade hierárquica, nem subordinação de uma das entidades;

- não se dá a exclusividade da responsabilidade de uma delas nem (e muito menos) a omissão possível dessa responsabilidade por qualquer delas.

5.Necessidade de autorização legislativa específica, de cada um dos partícipes, para a constituição do consórcio, em homenagem ao cânone constitucional da autonomia das ordens federadas ( art. 18 – CF).

6.Dentro do mesmo princípio, necessidade de aprovação, pelo legislativo de cada ente federado partícipe, das dotações orçamentárias de sua competência.

7.Necessidade de um entendimento consensual prévio para a celebração de um acordo entre os partícipes.

A Lei 11.107/05, para tanto, escolheu legitimamente a forma usual de protocolo de intenções, o qual, estipulando as condições do ajuste, deverá ser posteriormente submetido à apreciação e aprovação pelo Legislativo de cada ente federado, uma vez que se trata de matéria de reserva de lei.

8.Transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e de bens, tal como previsto no art. 241 da Constituição.

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Trata-se de matéria da maior importância, porque dela depende o êxito das operações consorciadas. Envolve, ainda, a necessidade de disciplinamento das normas atinentes ao regime jurídico aplicável aos servidores porventura cedidos pelos entes federados partícipes.

9.Atribuição de uma personalidade jurídica ao consórcio.

Doutrinariamente, sempre se entendeu entre nós que o consórcio não tem personalidade jurídica própria, mas isto tem limitado, em muito, sua liberdade de ação e o êxito dos seus objetivos. Tal concepção é diferente, por exemplo, da experiência italiana, em que os consórcios administrativos entre províncias ou entre comunas têm personalidade jurídica própria, atribuída por lei [05].

Então, HELY MEIRELLES recomendou que, no caso dos convênios, se estruturasse uma sociedade civil, integrada pelos Prefeitos participantes:

"é de toda conveniência a organização de uma entidade civil ou comercial, com a finalidade específica de dar execução aos termos do convênio, a qual receberá e aplicará os seus recursos nos fins estatutários, realizando diretamente as obras e serviços desejados pelos partícipes, ou contratando-os com terceiros. Assim, o convênio manter-se-á como simples pacto de cooperação, mas disporá de uma pessoa jurídica que lhe dará execução, exercendo direitos e contraindo obrigações em nome próprio e oferecendo as garantias peculiares de uma empresa". [06]

Assim se vinha fazendo, na prática, relativamente aos consórcios, à falta de disposição legal sobre a espécie; mas tal solução não se tem revelado correta, por vários inconvenientes operacionais, fartamente assinalados pela doutrina [07]. De nossa parte, sempre sustentamos a inconveniência e a impropriedade da reunião de entes públicos em uma sociedade de caráter privado.

Bem melhor sempre nos pareceu a proposta de DIOGO FIGUEIREDO MOREIRA NETO, no sentido de estruturar-se, para execução dos objetivos do consórcio, uma autarquia ou entidade paraestatal [08]. Essa seria uma autarquia pluripessoal, constituída pelos representantes de cada ente federado.

10. Como assegurar-se a efetiva participação dos entes federados consorciados nas importantes decisões a serem tomadas.

Tínhamos proposto, no anteprojeto de lei reguladora do art. 241-CF, que elaboramos, que a referida autarquia tivesse, como autoridade máxima, uma assembléia consorcial. É também a orientação adotada pela Lei nº 11.107/05.

11.Como assegurar-se, na institucionalização dos consórcios públicos, o seu controle participativo, tendo em vista os interesses coletivos a serem atendidos pela realização dos empreendimentos projetados.

Nesse sentido, propúnhamos que a referida autarquia tivesse um Conselho Consultivo tripartite, integrado pelos representantes das pessoas consorciadas, pelos representantes dos respectivos poderes legislativos e por entidades representativas da sociedade civil, na forma prevista pelo ato constitutivo do Consórcio. A Lei 11.107/05 não cogita da espécie.

12. Previsão de alguma forma de participação de representantes da Região Metropolitana, na hipótese de que municípios dela integrantes venham a consorciar-se para a gestão de serviços públicos.

Esta tem sido uma preocupação da doutrina a respeito do tema, com vista a evitarem-se, assim, indevidas interferências e conflitos de competência.

13. Competência fiscalizadora dos Tribunais de Contas.Sempre entendemos que a única solução compatível com os princípios constitucionais seria atribuir-se tal fiscalização a cada um dos Tribunais competentes e correspondentes, no específico âmbito de atuação dos entes participantes dos consórcios públicos. É esta a orientação da nova lei.

14. Duração de tais ajustes, bem como das pessoas jurídicas criadas para administra-los.

Há um justo receio generalizado de que se multiplique a criação de novas pessoas para a administração dos consórcios, e fiquem as mesmas perpetuadas, como outras tantas fontes geradoras de "cabides de emprego", até mesmo depois de exaurida a consecução das finalidades que ditaram sua criação. Não seria demasiada cautela, pois, vincular-se a duração de tais entidades ao estritamente necessário para o atendimento dos seus objetivos. A Lei nº 11.107/05 prevê, prudentemente, que as mesmas sejam constituídas por prazo determinado, a ser estipulado pelo protocolo de intenções.


2. Soluções adotadas pela Lei 11.107/05.

Vejamos como tais questionamentos, e muitos outros problemas, foram enfrentados e solucionados pela nóvel lei de consórcios públicos, que acaba de ser editada.

Nossa abordagem será limitada a apenas alguns aspectos pontuais, que nos pareceram merecedores de mais detida reflexão.

2.1. Em primeiro lugar, há que examinar-se a ementa da Lei:

"Dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providências."

Vale observar que a Lei não menciona, sequer, o art. 241 da Constituição da República, embora se destine, exatamente, a regular as suas disposições, - o que fez até, a nosso ver, com certa felicidade, tendo em vista a complexidade dos problemas a serem enfrentados e a redação compacta, porém lacunosa, do artigo, trazida pela Emenda Constitucional nº 19/98.

Essa omissão do legislador é tanto mais estranha, quando a matéria de que trata a Lei seria de impossível abordagem, no âmbito de lei ordinária, se não tivesse, como efetivamente possui, amplo respaldo naquele dispositivo constitucional.

2.2. A Lei incorre em um equívoco, qual o de tratar a constituição de consórcios entre entes da Federação para a consecução de objetivos comuns de interesse público, como sendo de contratação desses mesmos consórcios ( art. 3º )

Os consórcios, bem como os convênios de cooperação também previstos no dispositivo constitucional, não têm, nem podem ter, natureza contratual.

Que é que caracteriza a categoria jurídica contratual? É justamente o constituir-se, dentro da teoria geral do direito, como aquele acordo de vontades gerador de vínculo obrigacional entre partes que objetivam a consecução de interesses opostos, mediante a prestação e contraprestação de obrigações recíprocas.

Em vez disso, os ajustes de que se trata, consubstanciados nos consórcios públicos e nos convênios de cooperação entre entes federados são, a toda evidência, de outra espécie. Trata-se de negócios jurídicos coletivos, os acordos, em que as vontades dos partícipes convergem para a consecução de um interesse comum.

Podemos identificar, nesse negócio jurídico multilateral que estabelece um vínculo de cooperação associativa, algumas características especiais, todas presentes, aliás, na temática da Lei em comento:

Nesse sentido é o pensamento de EMILIO BETTI [09]:

"O negócio (bilateral ou plurilateral) de interesses opostos ou divergentes é o contrato; pelo contrario, o negócio ( sobretudo o plurilateral, mas também o bilateral), com interesses paralelos ou convergentes para um escopo comum, costuma qualificar-se como acordo, no sentido mais restrito que, doutrinariamente, se convencionou dar a este termo".

Em notável estudo sobre a matéria, EROS ROBERTO GRAU [10] alinha ainda a doutrina de GABRIEL ROUJOU DE BOUBÉE [11], que opõe os atos jurídicos coletivos, - caracterizados pelo compromisso de vontades que têm o mesmo conteúdo e que se voltam à realização de um mesmo fim,- aos contratos, observando que a própria terminologia contratual expressa perfeitamente essa idéia de oposição de interesses ou de egoísmo, ao identificar as "partes" do contrato a interesses individualizados, que são antagônicos aos interesses das demais "partes" do mesmo contrato.

Cita, ainda, a lição de HENRI JACQUOT:

"No ato coletivo, por outro lado, as partes desejam a mesma coisa: realizar conjuntamente uma ou várias operações comuns; seus interesses, ainda se diferentes, caminham na mesma direção" [12]

É também o pensamento de JOSÉ ABREU FILHO, no sentido de que, na categoria dos acordos, existiriam interesses convergentes ou paralelos, que não se enquadrariam como ‘contrato", porque tal figura pressupõe, necessariamente, interesses opostos e divergentes, que afinal se harmonizam. [13]

Vale salientar, ainda, a preocupação do legislador, na Lei 8.666/93, de, em seu artigo 2º, parágrafo único, extremar as características do contrato, para que não viesse o mesmo a ser confundido com "convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres, celebrados por órgãos e entidades da Administração", aos quais referida Lei, em seu art. 116, declara ter aplicação apenas "no que couber".

Entendemos, assim, que o enunciado da Lei 11.107/05, nessa parte, introduziu uma confusão conceitual que, sem necessidade, destoa de nosso ordenamento jurídico.

2.3.Outra confusão conceitual consiste em declarar que a lei estipula normas gerais. Não se trata de normas gerais. A previsão de normas gerais, no texto constitucional, pressupõe uma limitação à competência legiferante da União, para que alguma coisa seja deixada à competência das outras ordens federadas, apenas lhes traçando parâmetros, balizas, de que não se devem afastar, ou que não devem ultrapassar. Implicitamente, é o reconhecimento de que aquela competência prevalecerá sobre outras competências, também incidentes sobre o mesmo assunto, para que estas complementem e suplementem as normas gerais, adaptando-as a suas peculiaridades específicas [14].

Não é o que se quer, na espécie. O que a Lei nº 11.107/05 pretende, em seu conteúdo, é regular a aplicação do texto constitucional por todas as unidades da Federação, com o caráter de lei nacional. Também o fez, por exemplo, a Lei nº 8.429/92, regulando o o § 4º do art. 37 da Constituição, ao dispor sobre os atos de improbidade, em caráter nacional e cogente para todos os entes da Federação.

Isto, é evidente, no que diz respeito à constituição dos consórcios públicos, bem como à celebração de convênios de cooperação entre entes federados.

Como já observamos inicialmente, não se trata, em tais considerações, da decisão sobre a participação das ordens federadas em tais ajustes, da definição dos seus objetivos, do estabelecimento de suas condições, porque, aí sim, segundo o imperativo do art. 18 da Constituição e em obediência ao princípio federativo, tais matérias competem unicamente a cada ente federado, no uso de sua autonomia política, organizacional e administrativa.

Cuida-se, isto sim, substancialmente, de definir como as vontades dos entes federados partícipes se articularão em torno da consecução dos seus objetivos de interesse comum, sem que se quebre, com isso, sua autonomia constitucional. Não é matéria em que caiba complementação ou suplementação de tais normas, para adaptação a peculiaridades específicas de cada ordem federada, como se verifica no caso das normas gerais ; mas, sim, de supraordenamento da composição de competências desses entes da Federação, em plano abrangente e nacional.

Note-se, ainda, que a Lei em comento não se limita a estabelecer coordenadas comuns para a constituição de consórcios públicos. Vai muito mais além, alterando, em seu texto, o Código Civil, o Código Penal, a Lei 8.666/93, e também de certa forma regulando o disposto no art. 37, caput, da Constituição, quando introduz nova forma de entidade da administração indireta, qual seja a associação pública , incluindo-a entre as autarquias (art. 6º, § 1º).

2.4. Vale também observar que, em sua ementa e no artigo 1º, a Lei somente se refere aos consórcios públicos, quando, examinadas detalhadamente suas disposições, verifica-se que também tratam da gestão associada de serviços públicos sob a forma de convênios de cooperação.

A propósito, outro senão da referida Lei consiste em omitir-se na formulação de conceitos, que se tornariam efetivamente necessários, com isso abandonando a orientação do texto original do Projeto de Lei nº 3.384/04.

Com efeito, trata da matéria de consórcios públicos, enfocados sob novos aspectos que mudam radicalmente, como vimos, os conceitos até então enraizados na doutrina e na jurisprudência do País. Trata de convênios de cooperação, espécie nova e diferenciada daquela que até então conhecíamos em nosso direito, uma vez que só abrange um tipo especial, constituído unicamente por entes da Federação [15].

Introduz pelo menos duas novas espécies contratuais, até então não previstas no direito posto, quais sejam o contrato de rateio e o contrato de programa. Sem dúvida a Lei se tornaria bem mais acessível à compreensão dos operadores do direito e dos cidadãos em geral, se tivesse procurado definir tais conceitos.

Lamentamos apontar tais falhas, que decorrem fundamentalmente de haver sido abandonada, nos últimos tempos, a prática salutar, que já se instaurara no País, de submeterem-se a consulta pública os textos de certas leis de grande interesse para a comunidade.

A correção, em tempo, de tais equívocos, em nada diminuiria o valor da legislação em comento, nem dificultaria sua aplicação. Evitaria, sim, conflitos de entendimento e perplexidades que certamente surgirão em sua aplicação prática.

2.5. Cuidou bem a Lei 11.107/05 de preservar a autonomia constitucional dos entes federados, sobretudo nos seguintes aspectos:

Tais matérias requerem, insistimos, como efetivamente se fez, a adoção de uma disciplina abrangente, em caráter nacional, já que dizem respeito à composição do exercício de competências constitucionais específicas e autônomas.

2.6. A nova lei optou por atribuir personalidade jurídica aos consórcios públicos, em seus artigos 1º, § 1o e 6º, o que facilita extremamente a operacionalização de suas atividades.

Tal personalidade jurídica se configura como associação , podendo ser de direito público ou de direito privado.

2.6.1. Quando criado com personalidade de direito público, o consórcio público se apresenta como associação pública, nova pessoa de direito público interno criada por alteração do art. 41, inciso IV, do Código Civil , o qual passa a ter a seguinte redação:

-" Art. 41 – São pessoas jurídicas de direito público interno:

-" I – ommissis

-"II - ommissis

-"III – ommissis

-"IV- as autarquias, inclusive as associações públicas".

- Por que "inclusive"? A única explicação que nos parece plausível é a de que pretendeu o legislador tratar a associação pública como uma sub-espécie de autarquia.

- Decerto, porque o art. 37 da Constituição apenas prevê, como integrantes da administração indireta, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas. Com essa "inclusão" das associações públicas entre as autarquias, evitou-se, ao que parece, a edição de (mais uma) emenda constitucional.

- Note-se que a Lei nº 11.107/05, mais adiante, dispõe que o consórcio público com personalidade de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados.

Ora, o art. 37, inciso XIX, da Constituição, determina que somente por lei específica poderá ser criada autarquia, e, como vimos, a associação pública foi incluída entre as autarquias.

O art. 6º da Lei 11.107/05 resolve o impasse, dispondo que o consórcio adquirirá personalidade jurídica de direito público, como associação pública, mediante a vigência da lei de ratificação do protocolo de intenções.

Se bem entendemos, recapitulando:

1º- os entes federados assinam um protocolo de intenções, através dos seus chefes de Executivo;

2º- o protocolo de intenções é levado ao legislativo de cada ente federado, para que o ratifique;

3º – ao editar lei que ratifica os termos e condições do protocolo de intenções, e se este contiver a previsão de que o consórcio resultante terá personalidade de direito público, cada ente federado estará criando, ao mesmo tempo, em sua própria estrutura administrativa, uma associação pública, de natureza autárquica, que integrará sua administração indireta e a de todos os demais entes partícipes. Essa sub-espécie autárquica será necessariamente de natureza pluripessoal, como doutrinava DIOGO FIGUEIREDO MOREIRA NETO .

O que mais uma vez se pergunta é onde reside a contratulidade de tal procedimento.

Diz o art. 15, da Lei 11.107/05, que, no que não contrariar suas disposições, os consórcios públicos têm sua organização e funcionamento disciplinados pela legislação que rege as associações civis. Trata-se dos artigos 53 a 61 do Código Civil. A propósito, convém lembrar que o parágrafo único do art. 53 do Código enfatiza que, na associação, - pessoa jurídica constituída pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos, - não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocas, o que, mais uma vez, repele a idéia de contratualidade que a Lei 11.107/05 quer emprestar à sua constituição.

2.6.1. Os consórcios criados com personalidade de direito privado.

Contrariamente ao que dispunha o Projeto de Lei nº 3.884/04, que somente previa o consórcio sob a forma de pessoa de direito público, diz a Lei 11.107/05, em seu art. 4º, inciso IV, que o consórcio público será associação pública, ou "pessoa de direito privado sem fins econômicos"; e, no art. 6º, inciso II, que os consórcios com personalidade de direito privado devem atender, para sua constituição, "aos requisitos da legislação civil", que serão, na previsão do art. 15, já citado, para os consórcios públicos em geral, os referentes às associações civis; mas que observarão "as normas de direito público, no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal, que será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT" (art. 6º, § 2º). ( Indaga-se, a propósito: ao que saibamos, a norma de direito público que se aplica à admissão de pessoal contratado pela CLT, como exceção ao seu regime comum, é a da obrigatoriedade de concurso. Será isto o que pretendeu o legislador, para os consórcios públicos dotados de personalidade jurídica de direito privado?).

Não nos parece feliz a inovação da Lei, por vários motivos, antes constituindo um retrocesso à anterior proliferação de consórcios com personalidade de direito privado já existentes sob as mais inusitadas formas, sem nenhuma regra disciplinadora, em milhares de municípios, conforme noticiado pelo IBGE já em 2001.

Compartilhamos as mesmas preocupações que tem manifestado a doutrina, ao longo dos anos, com respeito a entregar-se a administração do consórcio público a uma associação regida pelo direito privado, mesmo com as cautelas introduzidas pelo art. 6º, § 2º. Não nos parece que a personalidade de direito privado seja adequada para reger as relações a serem travadas exclusivamente entre pessoas de direito público interno. Ainda mais, quando a Lei em comento traçou uma série de competências para os consórcios públicos em geral, que veremos a seguir, sem distinguir-lhes a espécie de regime jurídico. Ora, o desempenho de algumas dessas competências efetivamente não se coaduna com um regime de direito privado.

Demais disso, se esses consórcios de direito privado estão sujeitos às limitações do art. 6º, § 2º, já citadas, não atinamos com a utilidade prática da adoção de tal regime.

A esse respeito, fazemos nossas as considerações de CLEBER DEMETRIO OLIVEIRA DA SILVA:

"Nesse passo, pensa-se que o P)L nº3.884/04 oferecia solução mais efetiva e consentânea ao sistema jurídico posto, na medida em que considerava que todos os consórcios constituiriam pessoa jurídica de direito público, pondo fim à atuais divergências doutrinárias e evitando as confusões que poderão advir dessa dupla sujeição de regimes jurídicos."

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"A toda evidência, o hibridismo adotado pela lei não se harmoniza com a sistematização jurídica vigente, pois a tarefa precípua do legislador é a de criar e disciplinar novos institutos, de forma harmonizada ao sistema jurídico posto, pena de criar indissolúveis problemas de hermenêutica, inviabilizando, em certos casos, a aplicação efetiva da novel legislação".

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"Por fim, considerando que praticamente todas as atividades relevantes do consórcio, constituído sob a personalidade de direito privado, serão disciplinadas por normas de direito público (contratação para aquisição de produtos, serviços, obras de engenharia, pessoal e prestação de contas) não se verifica vantagem em instituí-la como pessoa jurídica de direito privado" [16]

Sobre a autora
Alice Gonzalez Borges

advogada e consultora jurídica em Salvador (BA), procuradora do Estado da Bahia aposentada, professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador aposentada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Alice Gonzalez. Os consórcios públicos na sua legislação reguladora. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 755, 29 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7072. Acesso em: 23 nov. 2024.

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