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A Reforma da Justiça Militar da União: comentários à Lei nº 13.774, de 19 de dezembro de 2018

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Agenda 18/02/2019 às 18:50

Destacam-se como alterações o deslocamento da competência para o julgamento dos civis pelo juiz federal da justiça militar, a instituição de duplo grau de jurisdição para o julgamento de HC, HD e MS referente a matéria criminal.

Sumário: 1. Introdução; 2. Alteração da nomenclatura do cargo do juiz civil: de Juiz Auditor a Juiz Federal da Justiça Militar; 3. Competência monocrática para julgamento de civis; 4. Competência para julgamento de ex-militar denunciado com base no inciso II do art. 9º do CPM; 5. Competência para o reconhecimento da incompetência dos Conselhos de Justiça nos processos em curso; 6. Competência para julgamento de militares inativos; 7. Alteração na Presidência, na composição e no funcionamento dos Conselhos de Justiça; 8. Competência para julgar habeas corpus, habeas data e mandados de segurança; 9. Corregedoria da Justiça Militar e o Juiz-Corregedor Auxiliar; 10. Conclusões; 11. Referências.

RESUMO - Neste artigo, busca-se analisar algumas das alterações promovidas pela Lei nº 13.774/2018 na Lei de Organização da Justiça Militar da União, Lei nº 8.457, de 04.09.1992.

PALAVRAS-CHAVE – Justiça Militar da União. Lei 13.774/2018. Organização e competência.


1. Introdução

A recém-publicada Lei nº 13.774, de 19/12/2018, que entrou em vigor na data de sua publicação (20.12.2018), trouxe grandes inovações para a Justiça Militar da União (JMU), alterando a Lei Orgânica da Justiça Militar da União (LOJMU), Lei nº 8.457, de 04 de setembro de 1992, de forma a modernizar essa Justiça especializada e conferir maior celeridade no processamento e julgamento de processos penais militares.

Neste estudo, busca-se analisar algumas dessas alterações, procurando estabelecer as primeiras impressões sobre as repercussões advindas da novel lei.


2. Alteração da nomenclatura do cargo do juiz civil: de Juiz Auditor a Juiz Federal da Justiça Militar

Grande parte dos artigos da LOJMU alterados pela Lei nº 13.774 apenas atualizam a nomenclatura do cargo do magistrado civil e concursado atuante na JMU: agora o cargo passa a ser denominado Juiz Federal da Justiça Militar. Foi abandonado o nome “Juiz Auditor”, adotado pelo imperador europeu Carlos V, em 1547[2], que, atualmente, não era autoexplicativo e muitas vezes causava confusões com cargos de outras carreiras não pertencentes ao Poder Judiciário, tais como Auditores fiscais fazendários e Auditores de Tribunais de Contas.

A novel denominação é mais clara: fica evidente agora que se trata de um magistrado federal, togado, civil, que atua perante a Justiça Militar, que só pode ser a da União, visto que o cargo é federal. A alteração não abrange os juízes que atuam nas Justiça Militares dos Estados, denominados Juízes de Direito do Juízo Militar, por força do art. 123, § 5º, da Constituição Federal (CF).

Conforme aponta Ronaldo Roth, “A denominação de Auditoria militar equivale à de Vara Criminal da Justiça Comum, cuja origem decorre do fato de que o seu titular é um Juiz de Direito Togado denominado Auditor”[3], que tem a função de ouvir e dizer o direito, conjuntamente com os juízes militares, no colegiado julgador denominado escabinato.

Poderia, então, a lei ter modificado a atual denominação “Auditoria” (art. 11), para “Vara Federal da Justiça Militar” ou outra designação semelhante, mas isso não foi feito, permanecendo a tradicional nomenclatura “Auditoria” para designar as representações do Poder Judiciário federal militar em determinado território.


3. Competência monocrática para julgamento de civis

Importantíssima alteração diz respeito à atribuição de competência para o Juiz Federal da Justiça Militar julgar monocraticamente o acusado civil.

Conforme o art. 125, § 4º, da CF, civis não podem ser julgados pela Justiça Militar dos Estados, pois só julgam policiais militares e bombeiros militares. Todavia, não há impedimento expresso de julgamento de civis na JMU, de forma que essa possibilidade foi prevista pelo Código Penal Militar (CPM, art. 9º, III).

Anteriormente à Lei nº 13.774, a competência singular do Juiz togado da JMU era plena tão somente na fase pré-processual e na execução penal. As ações penais militares eram julgadas sempre pelos conselhos de justiça. O civil era julgado pelos Conselhos Permanentes de Justiça (art. 16, “b”, LOJMU) e, nos casos em que acusado juntamente com oficial das Forças Armadas estivessem no mesmo processo, o civil era julgado pelos Conselhos Especiais de Justiça (art. 23, § 3º, LOJMU). Sempre defendemos ser inconstitucional e incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos o julgamento de civis por militares da ativa[4].

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A competência da JMU para o julgamento penal de civis tem sido contestada. Com esse objeto, tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF), dentre outras causas, a Arguição de Descumprimento de Preceito fundamental (ADPF) 289, proposta pelo Procurador-Geral da República (PGR) em 15/08/2013, que tem por objetivo conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 9º, incisos, I e III, do CPM, para que seja reconhecida a incompetência da JMU para julgar civis em tempo de paz e para que estes crimes sejam submetidos a julgamento pela justiça comum, federal ou estadual. Na mesma diretriz, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5032, ajuizada em 14/08/2013, também pelo PGR, tem por objetivo a declaração de inconstitucionalidade do § 7º do art. 15 da Lei Complementar nº 97/1999, que considera atividade militar, para fins de determinação de competência da JMU, determinadas atribuições subsidiárias das Forças Armadas, como, por exemplo, as operações para garantia da lei e da ordem.

Com a Lei nº 13.774, a força argumentativa dessas demandas restou sensivelmente reduzida, visto que, embora ainda se julgue civil na JMU, esse julgamento não será feito por militares da ativa, mas por um juiz civil. Com isso, muito mais do que antes da nova lei, torna-se clara a improcedência dos pedidos formulados nessas demandas.

A competência da JMU está prevista no art. 124 da CF de 1988: “À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. Portanto, o foro militar, especificamente o da JMU, está previsto constitucionalmente para julgar crimes militares, cometidos por qualquer pessoa, militar ou civil, e não “crimes dos militares”, não se tratando de uma justiça funcional destinada ao julgamento somente dos crimes propriamente militares perpetrados por militares, como ocorre em muitos países.

Ao invés de partir de um requisito subjetivo, ligado à condição do agente (militar), para a definição da competência da JMU, a Carta Política (art. 124) adota a tipificação do delito, como critério objetivo da atribuição da mesma competência. Embora esse critério não confira, ao legislador ordinário, a franquia de criar, arbitrariamente, figuras de infração penal militar, estranhas ao que se possa conceitualmente admitir como tal, as balizas para tal definição se encontram no art. 142 da Carta, quando esta dispõe sobre a constituição das Forças Armadas brasileiras, principiologia e objetivos, visto que essa justiça especializada se destina ao julgamento de crimes estabelecidos com o fim de proteger, de qualquer modo, bens jurídicos de interesse dessas instituições armadas e, por consequência, do Estado brasileiro.

Desde a sessão plenária de 13/12/1963, o STF tem entendimento sumulado reconhecendo que um civil pode ser julgado criminalmente na JMU. Nesse sentido dispõe o Enunciado nº 298: “O legislador ordinário só pode sujeitar civis à justiça militar, em tempo de paz, nos crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares”.

No supracitado estudo, expus meu entendimento sobre o tema:

Nesse sentido, é necessário manter a competência da JMU para julgamento de civis, mas também é preciso evoluir na regulamentação do tema, entendendo-se que militares da ativa, vinculados ao Poder Executivo, como são os juízes militares membros dos Conselhos de Justiça, não podem participar desse julgamento, sob pena de violação do princípio do juiz natural e da cláusula da imparcialidade objetiva.

A justificativa para a existência do Conselho de Justiça, escabinato consistente em um órgão híbrido, formado pela reunião de um juiz togado civil e quatro militares da ativa, sob a presidência de um destes últimos, é a de que magistrado civil utiliza de seu conhecimento jurídico e os militares de suas vivências de caserna, mormente com os valores éticos que são próprios da sociedade militar, especialmente a hierarquia e disciplina, bens jurídicos basilares protegidos pelo Direito Penal Militar. Entretanto, o civil não está sujeito a hierarquia e a disciplina militares! Não podem estes princípios justificar que, em tempo de paz, possam ser julgados por um conselho majoritariamente militar.

Nesse ponto, embora sob outro fundamento, os precedentes da Corte IDH são inteiramente aplicáveis à JMU. Com efeito, a partir do julgamento do Caso Castillo Petruzzi e outros Vs. Peru, a Corte fixou o entendimento de que militares em serviço ativo não podem ser julgadores de réus acusados da prática de crimes praticados contra as próprias forças armadas de que são membros, porque isso prejudicaria a imparcialidade que deve ter o julgador, a ser objetivamente demostrada, não deixando margem para qualquer dúvida ou desconfiança do jurisdicionado ou da sociedade.

É exatamente esse o pressuposto que atualmente o inciso III do art. 9º do CPM estabelece para definir os casos em que um civil pode praticar um crime militar cuja competência para julgamento é da JMU: o crime deve ser praticado contra as forças armadas, que, constituem, portanto, o sujeito passivo direto ou indireto do crime.[5]

A alteração, portanto, adequou a legislação brasileira à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos[6] e ao disposto na CF, visto que só se pode falar em devido processo legal se o julgador foi imparcial, objetivamente, no julgamento da causa.

Dispõe o novo art. 30, I-B, da Lei nº 8.457/92, com redação da Lei nº 13.774:

“Art. 30. Compete ao juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente:

I-B – processar e julgar civis nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo;

A partir da novel lei, portanto, o Juiz Federal da Justiça Militar terá competência para julgar singularmente determinadas ações penais em que o acusado tenha a condição de civil.

A lei se referiu apenas ao inciso I (“os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial”) e ao inciso III (“os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos”), porque o inciso II é restrito ao caso em que o agente do crime é militar da ativa.

Nos casos de coautoria entre um militar e um civil, sempre e necessariamente o civil deverá ser enquadrado no inciso III, pelo qual o civil só comete crime militar se praticar o fato contra as instituições militares federais. Não haverá, assim, casos em que o civil possa ser enquadrado no inciso II do art. 9º do CPM.

Quanto ao julgamento em segunda instância, indaga-se se os Ministros Militares do Superior Tribunal Militar poderão julgar civis. Em caso negativo, haveria a necessidade de criação de turma de ministros civis no STM para julgar esses casos[7]. O melhor entendimento é o de que não há óbice jurídico ao julgamento do civil pelos Ministros Militares, pois, ao contrário dos juízes militares membros dos conselhos de justiça, os Ministros militares são membros vitalícios do Tribunal, integrados ao Poder Judiciário.

O art. 123 da CF estabelece que os Ministros Militares do STM serão escolhidos dentre oficiais-generais das Forças Armadas, da ativa e do posto mais elevado da carreira. Ao tomarem posse no cargo de Ministro do STM, os Ministros militares permanecem na ativa, em quadros especiais da Marinha, Exército e Aeronáutica, nos termos do § 2° do art. 3º da LOJMU. Essa permanência na ativa tem algumas implicações funcionais, mas, de fato e de direito, tornam-se membros do Poder Judiciário.

Contudo, tal regra da LOJMU cria uma situação sui generis que é objeto de crítica doutrinária, pois são membros do Poder Judiciário e, simbolicamente, do Poder Executivo, o que é incompreensível. À semelhança do que ocorre quando um oficial-general da ativa é escolhido pelo Presidente da República para o cargo de Comandante das Forças Armadas, ocasião em que serão automaticamente transferidos para a reserva[8], o mesmo deveria ocorrer quando referidos militares tomam posse no cargo de Ministro do STM[9].

Informam Jorge Cesar de Assis e Mariana Queiroz Aquino Campos que, sob a égide da autoritária Constituição de 1937, foi inaugurada a inusitada disposição, quando editado o Código de Justiça Militar de 1938[10], o qual dispunha em seu art. 11 que “Os ministros militares continuarão a pertencer aos respectivos quadros ativos do Exército ou da Armada, se lhes não aplicando a legislação sobre transferência para a Reserva”.

Essa regra da LOJMU conflita com a cláusula da separação dos poderes (art. 2º, CF), interferindo na independência e imparcialidade objetiva que deve existir no exercício do poder judicial[11].


4. Competência para julgamento de ex-militar denunciado com base no inciso II do art. 9º do CPM

Controvertida é a situação do militar da ativa, denunciado com base no inciso II do art. 9º, do CPM, e licenciado[12] ou, de outra forma, desvinculado das Forças Armadas antes do recebimento da denúncia ou no curso do processo. Será julgado pelo Conselho de Justiça ou pelo Juiz Federal da Justiça Militar?

Para definir essa questão, toma-se como premissa a constatação de que a intenção do legislador foi afastar, de qualquer modo, o julgamento de civis por militares da ativa integrados ao Poder Executivo e às Forças Armadas, pois os civis não estão submetidos à disciplina e à hierarquia. Essa foi a mens legis desde quando o STM apresentou o projeto de lei na Câmara dos Deputados[13]. Na ocasião, o STM formulou a seguinte justificativa:

Nesse contexto, destaca-se a necessidade do deslocamento da competência do julgamento dos civis, até então submetidos ao escabinato dos Conselhos de Justiça, para o Juiz-Auditor: se por um lado é certo que a Justiça Militar da União não julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei, praticados por civis ou militares; de outro, é certo também que os civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna e, consequentemente, não podem continuar tendo suas condutas julgadas por militares.

Uma vez licenciado após o término do tempo de serviço ou em qualquer caso de interrupção do serviço[14], passará o militar à condição de civil, de forma que haverá uma alteração de competência absoluta, implicando na declinação de competência em favor do Juízo singular, ainda que a situação seja, de início, enquadrada no inciso II do art. 9º do CPM, o qual não foi expressamente indicado no art. 30, I-B, da LOJMU, como hipótese de competência do Juiz Federal da Justiça Militar.

Ressalta-se que a parte final do dispositivo em questão impõe o julgamento monocrático até mesmo de militares da ativa (enquadrados no inciso II do art. 9º do CPM), quando estes forem acusados juntamente com civis no mesmo processo. Então, a fortiori, com muito mais razão se impõe o julgamento monocrático de ex-militares enquadrados no mesmo inciso II. Aplica-se, aqui, o antigo brocardo jurídico: “in eo quod plus est semper inest et minus” (quem pode o mais, pode o menos)[15].

Não há como aplicar, nesse ponto, a teoria da atividade quanto ao tempo do crime (art. 5º, CPM)[16], entendendo-se que o que importa para fixação da competência é a condição de militar, ou não, ao tempo do crime. Trata-se de regra de direito material, diversa das regras processuais de fixação de competência, que tem por fim regular a extra-atividade da lei penal em situações de sucessão de leis penais no tempo[17]. Será aplicada, por essa regra, a lei penal em vigor ao tempo da ação ou omissão. Perceba-se que esse raciocínio não diz respeito à fixação de competência.

Em situações específicas, a condição de militar importa para tipicidade indireta, sendo necessário conjugar o tipo penal com a norma de extensão prevista no inciso II do art. 9º do CPM, que considera a situação do militar em atividade como essencial para tipicidade. Nesses casos, a jurisprudência pacífica do STF[18] e do STM[19] indica que o licenciamento do acusado do serviço ativo é irrelevante para fins de fixação de competência da JMU.

A partir da Lei nº 13.774, contudo, o licenciamento do serviço ativo passará a ser relevante, não para fins de fixação da competência da jurisdição militar - para a qual, realmente, não importa a desvinculação posterior do agente das forças armadas - mas para delimitar a competência de juízo, isto é, do órgão jurisdicional que julgará o caso no âmbito da JMU.

Trata-se de competência material e, portanto, absoluta, a conferida ao juízo singular para julgamento de civis. Aplica-se, aqui, o critério de delimitação de competência material relativo à qualidade da pessoa do réu (ratione personae).[20]

Não se aplica, nesse ponto, a regra da perpetuatio jurisdictionis disposta no art. 43 do CPC[21], pois há alteração da competência absoluta. Dessa forma, essa modificação do estado de fato no curso do processo implica na modificação de competência para o julgamento da causa. O Conselho deverá se reconhecer incompetente, encaminhando os autos para o juiz togado.

Sobre o autor
Luiz Octavio Rabelo Neto

Juiz Federal Substituto da Justiça Militar. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RABELO NETO, Luiz Octavio. A Reforma da Justiça Militar da União: comentários à Lei nº 13.774, de 19 de dezembro de 2018. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5710, 18 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71024. Acesso em: 21 nov. 2024.

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