3. A relação entre as leis e os princípios do governo
Aprofundando sua análise sobre os governos, Montesquieu estabelece uma interessante relação entre as leis, a liberdade e diversas outras temáticas, conforme se verificará a seguir.
3.1. As leis da educação, a forma das leis e os princípios do governo
Inicialmente, o autor realiza uma interessante análise sobre a relação entre as leis da educação e as espécies de governo. As leis da educação preparam os indivíduos para que se tornem cidadãos, preparação que inicia nas famílias e continua na grande família, o Estado. Assim, a educação nas famílias deve adequar-se à espécie de governo vigente no país.
Nas monarquias, a educação tem como objeto a honra, uma vez que esta é cultivada pelos homens da corte que buscam constantemente guiar-se por valores como a polidez, a lealdade, a coragem, a obediência às regras, dentre outros. Segundo o autor, não há nada que as leis, a religião e a honra prescrevam mais que a obediência às vontades do príncipe, embora não deva ele jamais prescrever uma ação que desonre o seu destinatário, porque o torna incapaz de servi-lo.19
No governo despótico a educação é praticamente nula, sendo fundada no temor. Nas famílias aprende-se a ser servil aos que comandam, para que depois se transforme em obediência cega ao tirano, o que facilita o exercício da arte de governar. Nessa espécie de governo, a ignorância está tanto naqueles que obedecem como naquele que comanda.20
O governo republicano é aquele em que mais se precisa do poder da educação, pois a virtude política é uma renúncia a si mesmo, o que é muito difícil. Exige-se que cada um coloque o interesse público acima de seus próprios interesses particulares, o que apenas será possível mediante uma educação familiar focada nessa forma de viver, na qual os pais transmitem a seus filhos valores idênticos aos da república. Da transmissão destes valores depende a probidade da geração seguinte, porque “não é a nova geração que degenera; ela só se perde quando os adultos já estão corrompidos.”21 É que uma boa república e a sua continuidade depende de uma sociedade virtuosa.
Da mesma forma que na educação, as leis criadas pelo legislador devem adequar-se a cada espécie de governo. Se na república a virtude é seu valor mais eminente e ela se caracteriza pelo amor à pátria, porque busca um ideário em que os interesses públicos prevalecem sobre os particulares, é preciso que este modelo esteja presente também nas leis.
Na democracia, esse amor à pátria se materializa na igualdade e na frugalidade. O sentimento de igualdade é um limitador das ambições pessoais e exige que aqueles que possuem mais riquezas contribuam com serviços para a redução das diferenças. A frugalidade requer que cada um não deseje para si mais que o necessário para sua família e para si mesmo.22
A igualdade e a frugalidade só podem ser cultivadas se as leis as traçarem como ideais a serem observados, pois, do contrário, a avareza e a desigualdade serão instaladas na sociedade. Assim, as leis precisam disciplinar as regras sobre a propriedade e a sua transmissão para reduzir as grandes concentrações de riqueza, o mesmo devendo se processar nos demais campos. No Brasil, por exemplo, a distribuição da terra de forma mais justa ainda faz parte de um projeto em construção e tem sido o elemento motivador de invasões e revoltas por parte das classes pobres contra os latifundiários e os governos. Entretanto, a igualdade professada na democracia não é a real, mas a possível, cabendo aos governos implementar políticas que reduzam as diferenças, impondo maiores encargos aos ricos e maior auxílio aos pobres.
A frugalidade não tem na democracia o sentido de desapego aos bens materiais ou de aversão ao lucro. Tem o sentido de zelo pelos bens alheios e respeito pelas coisas do Estado. Este deve ser o sentido porque a democracia convive com ideais de liberdade e o comércio é um de seus vértices. Embora pareça um paradoxo, o comércio traz consigo o espírito de frugalidade, bem como de economia, de moderação, de trabalho, de sabedoria, de ordem e de respeito às regras. Aquele que pratica o comércio deve comprometer-se em obter o lucro necessário para o funcionamento de seus negócios e sua manutenção e de zelar pelos ganhos de seus funcionários para que possam ter um conforto razoável e proporcional a atividade que desempenham.
Se na democracia a igualdade ocupa lugar de destaque, na aristocracia ela é substituída pela moderação. É que neste governo as riquezas tendem a ser mais desiguais, o que exige que as leis tentem promover, tanto quanto puderem, um equilíbrio entre os que possuem mais e os que possuem menos. Por sua vez, nas monarquias as leis devem relacionar-se à honra. A concentração da renda não é um problema. Assim, os nobres e suas propriedades poderão ter privilégios.
Se o governo despótico tem como princípio o temor, as leis, quando existem, nada mais são que a vontade do príncipe e transmitem sempre essa idéia. Assim, é um governo onde ninguém é cidadão; é um governo convencido da idéia de que o superior não deve nada ao inferior; é um governo onde os homens se vêem apenas ligados a ele pelos castigos. Não bastasse o temor do governo, a religião tem nesses sistemas mais influência do que em qualquer outro, e também impõe princípios fundados num temor religioso. É o que se percebe ainda nos dias atuais nos países do Oriente Médio.
Apesar de todas as perdas que ficam suscetíveis os povos regidos por governos despóticos, é controverso que muitos ainda se contentam em serem assim governados. É que talvez seja muito mais difícil a criação de um governo moderado, porque exige a combinação de inúmeras forças. É quase uma obra-prima que exige capacidade e prudência, tanto dos governantes, como de seu povo. Do contrário, um governo despótico, só necessita um líder que se estabeleça e tenha poder suficiente para exigir de todos a sua obediência.
Ainda, são perceptíveis outras pequenas diferenças entre os diversos governos, como as relacionadas à forma das leis. As leis mais simples leis estão nos governos despóticos ao passo que nos regimes republicanos e monárquicos as leis são complexas e a justiça impõe uma série de formalidades que dificultam o seu acesso pelos cidadãos. Se é certo que a justiça deve ser simplificada, não se pode perder de vista que este é o preço que se paga pela liberdade, pois a aplicação da lei sem qualquer critério de respeito a ampla defesa e ao contraditório seria caminho aberto para um regime autoritário.23
3.2. As leis criminais, o julgamento, a aplicação das penas, a corrupção e os princípios do governo
Nos julgamentos, as penas também possuem diferentes graduações de acordo com a espécie de governo. Assim a severidade das penas é mais conveniente e até necessária aos governos despóticos, porque neles o terror é seu principal combustível, ao passo que nas monarquias e nas repúblicas é aconselhável que não sejam tão severas porque nelas o motor que as impulsiona é a honra e a virtude. É que nestes dois regimes, um bom legislador estará menos preocupado em punir ou aplicar suplícios e mais atento em preveni-los; enquanto que naquele, quanto mais o déspota sente a proximidade de uma revolução, mais as penas são aumentadas.
Diante do exposto, constata-se que, nos povos governados por déspotas, os quais, via de regra, empregam a violência para perpetuarem seu poder, as pessoas são igualmente cruéis nas suas relações privadas. Do contrário, nos governos moderados, as pessoas também assim o agem. Portanto, conclui-se que o espírito do cidadão é marcado pela força das penas, nas quais as brandas, embora se apliquem como ordens de coação, tem mais o sentido de conselhos, enquanto as severas causam agressão e tornam a pessoa potencialmente agressiva e não regenerada. Esse modo de pensar traduz a constatação de que a violência gera violência, visto que corrompe os valores do cidadão.
Desse modo, conclui-se que as leis que sujeitam os infratores a penas devem também estabelecer as regras para se julgar. Não é justo, por exemplo, que um homem seja condenado com base no depoimento de uma única testemunha, porque se esta acusa e o réu nega a acusação, é necessário no mínimo um terceiro a fim de sanar a dúvida. Por sua vez, as penas devem ser aplicadas com maior ou menor rigor, de acordo com o crime. Crimes contra os costumes exigem que se lhes sejam aplicadas penas leves, porque não atentam contra a segurança pública, como o rapto e o estupro. Crimes que ferem a tranquilidade dos cidadãos devem sujeitar-se às penas de prisão e correção para que tragam de volta a ordem estabelecida. Entretanto, os crimes contra a vida devem sujeitar-se a penas mais severas.
Determinadas acusações precisam ser particularmente avaliadas com moderação e prudência para que sejam efetivamente tipificadas como infrações penais. Assim, os crimes de lesa-majestade precisam ser avaliados no contexto em que ocorreram, pois o que assim faz parecer, pode simplesmente ser um ato praticado sem essa intenção. Nestes casos somente deveriam ser aplicadas penas quando o ato foi intencional, e assim sendo, graduadas de acordo com o resultado da ação. É nos Estados despóticos que esta regra não é observada, e onde até os menores atos podem acordar a ira do governante e o fazer aplicar as penas mais degradantes. Ainda hoje, nos países do Oriente Médio, tem-se conhecimento de aplicação de penas degradantes para crimes de pequeno ou nenhum potencial ofensivo.
A corrupção a que se trata nessa análise está relacionada aos valores do cidadão político. Tendo em vista que a abordagem será restrita apenas à corrupção no governo democrático, verifica-se que ela se instala quando o seu ideal maior, o princípio da igualdade, é perdido, ou também quando se adquire uma igualdade extrema, pois, nesses casos, cada um quer ser igual aos que os comandam. Sem hierarquia, não haverá comandante e não haverá comandado. A liberdade é substituída pela libertinagem. Na vida privada, os filhos não obedecerão mais aos pais, os casais não se sujeitarão ao respeito mútuo; enfim cessa o amor à ordem e por fim a virtude.
Quando se instala a corrupção de valores, as eleições destinadas à escolha dos representantes que governarão o país têm seus votos negociados em troca de dinheiro ou favores; o dinheiro público é distribuído como coisa particular; a gestão dos negócios do governo se opera por vias escusas; enfim o tesouro público encerra em si um objetivo particular. Esses relatos, em que pese relativos ao espaço temporal dos escritos de Montesquieu, são percepções ainda presentes na sociedade atual. Esta é a qualidade dos grandes pensadores: fazer com que suas ideias sejam sempre atuais.
Encerra o autor com a observação de que os governos podem realizar adequações conforme o tamanho de seu território. Assim, a república funciona melhor num pequeno território, haja vista que o bem comum é algo mais próximo do cidadão, enquanto num grande território, este é sacrificado em prol de uma proliferação imensa de outras finalidades. Um território grande importaria na dificuldade de vigilância, o que possibilitaria o descumprimento das leis, pois o castigo também seria algo remoto. Assim, na república, estabelecida em pequenos territórios, o bem público é bem sentido e mais conhecido e os abusos são menores. Já um Estado monárquico pode ser de um tamanho médio, vez que, se fosse pequeno, melhor se ajustaria a uma república e, se fosse grande, carregaria o mesmo vício desta. Para os grandes territórios restam os governos despóticos que se fazem sentir por toda a sua abrangência com rapidez e uma rigidez que espalha o temor.
3.3. A descentralização, a teoria da separação dos poderes e a liberdade política
A conclusão de Montesquieu remete sobremaneira aos dias atuais, em que é evidente a impossibilidade do governante manter-se próximo ao cidadão em países de grandes territórios. A alternativa por ele apresentada para as repúblicas, por meio de um modelo federativo, refere-se a alternativas de descentralização dos governos, de forma a estender os braços do poder para mais próximo dos cidadãos, com o intuito de melhor perceber suas necessidades e desejos. O governo presente, ao lado do cidadão, possibilita não apenas atender seus pleitos, mas também acompanhá-lo nas suas ações de forma que não descumpra as normas estabelecidas.
Embora a democracia aparente ser o melhor caminho para representar a voz do cidadão, essa solução nunca se efetivou. O mais próximo que se chegou foi a democracia representativa por meio do sufrágio universal, que é apenas uma participação muito limitada. A solução mais próxima e talvez institucionalmente mais viável é a chamada democracia semidireta, de forma que seja possível aproximar mais o governante do governado, possibilitar a captação dos interesses dos cidadãos, seja através de entidades organizadas que verificam o anseio popular e o façam chegar ao governo, seja através de um novo modelo político partidário.
No Brasil, em razão desse distanciamento, percebe-se claramente que há um conflito entre o Estado e o cidadão, como se este fosse constantemente traído por aquele. O Estado parece algo distante e que não atende os clamores do povo. Isto pode ser explicado em parte pela vertente das receitas, porque as obras e os serviços são prestados ao cidadão como retorno dos tributos pagos pela sociedade. Ocorre, entretanto, que os tributos ficam em sua maioria com o governo federal (64%), restando aos municípios apenas 13%. Os cidadãos residem nos municípios e, popularmente, é nesse local que esperam visualizar uma atuação intensa do governo atuar mais intensamente, ainda que seja natural a necessidade da prestação e realização de serviços públicos de cunho nacional. Se cabe aos governos pensar nacionalmente, é também necessário agir localmente e, para isso, faz-se necessário um novo pacto federativo no tocante à distribuição dos recursos públicos entre os entes estatais.
Se a descentralização horizontal é o caminho para um bom governo, a separação dos poderes, cada um com suas funções, pode melhorar a atuação do Estado, além de propiciar um melhor controle de si mesmo. Se é da essência dos Estados moderados a liberdade política, é preciso que ele próprio possua alguns freios para contrabalançar os poderes dos governantes.
Além disso, Montesquieu idealizou um sistema com três poderes concebido através de um controle de um sobre o outro. Mesmo pautando a análise no contexto iluminista, é nesse momento que são tecidas as principais considerações acerca do modelo de separação dos poderes atualmente vigente, a fim de coibir o exercício do poder de forma ilimitada, arbitrária e abusiva.24 Nesse modelo, a liberdade do cidadão pode ser resguardada contra os perigos de governos autoritários. Porém, a liberdade que se fala nos governos democráticos é a política e consiste em se fazer o que a lei e os costumes permitem e não o que se quer.
Portanto, a proposta para a manutenção da liberdade política sustenta-se na sua máxima tripartição dos poderes, embora nos pareça que não nos moldes como hoje a conhecemos. Assim, há o poder legislativo, em que o príncipe ou o magistrado tem a prerrogativa de criar as leis; o poder executivo trata das coisas que dependem do direito da sociedade, para decidir sobre a paz ou a guerra, a segurança e as questões administrativas; e o poder executivo analisa as questões que dependem do direito civil para julgar os crimes praticados pelos particulares. Se o poder legislativo não for separado do executivo, não existe liberdade, pois este poder pode criar leis tirânicas para depois executá-las; o mesmo ocorrendo se o poder de julgar não for independente daqueles, pois o juiz poderia ser o criador, executor e julgador. Os governos despóticos são estruturados dessa maneira, porque assim um só terá o domínio e controle sobre todas as ações de seu povo.
O legislativo convive com a impossibilidade de conferir a todos os cidadãos o poder de legislar, e o faz então através de representantes escolhidos, os quais devem representar não muitas cidades, para melhor poderem captar as aspirações de seus compatriotas. Este é o grande inconveniente da democracia, haja vista que povo não tem capacidade nem condições de discutir todos os assuntos.
Embora Montesquieu não tenha apresentado uma teoria dos poderes adequada à moldura de hoje, por não vislumbrar, em sua ótica, o poder de julgar independentemente do Executivo, isto em nada diminui a grandeza de sua obra, uma vez que estabeleceu as bases seguras para chegar-se a este novo paradigma.
A liberdade idealizada, segundo esse modelo, não deve apenas estar fundada na distribuição e controle dos poderes, mas deve ser concretizada efetivamente através da segurança que os cidadãos recebem do Estado. Essa segurança opera-se quando os cidadãos sentem que a lei os protege, mesmo que seja para condená-los. Assim, é a aplicação correta das leis criminais, por ocasião dos julgamentos, o fator que determina de forma preponderante a liberdade do cidadão.
3.4. A relação entre a arrecadação de tributos e a liberdade
Noutro enfoque, é fundamental avaliar também os governos sob a ótica da tributação, vez que o atendimento das necessidades dos cidadãos depende diretamente da arrecadação de receitas públicas.
Os tributos podem ser cobrados sobre as pessoas, sobre as terras ou sobre as mercadorias. Ao cobrá-los, o Estado deve fazê-lo com cuidado, pois se as leis fizerem com que alguns cidadãos paguem menos que poderiam contribuir, isto não é bom, mas ainda que indiretamente, as riquezas não arrecadadas auxiliarão o Estado, pelo fluxo natural do dinheiro, visto que, do contrário, se fizer uma parte pagar demais, a ruína e a revolta tomarão conta dos contribuintes. É falho o raciocínio dos governos ao pressupor que, aumentando os tributos, aumentará a arrecadação, já que, quanto maiores, maior será a sonegação.
Para os dias atuais, é falha a proposta de Montesquieu de que a melhor forma de cobrar impostos é a tributação sobre as mercadorias. Se quem recolhe é o vendedor, o povo será mais condescendente com esta técnica, visto que o seu valor estará embutido no preço, não sendo assim sentido com rigor. A tributação sobre mercadorias pode se utilizada, mas de forma moderada, porque esta sistemática faz com que todos paguem um percentual idêntico independentemente da riqueza que possuem. O princípio que rege os tributos na atualidade não é apenas de obter receitas, mas obtê-los de forma a redistribuir a renda. Assim, uma boa maneira de redistribuir é iniciando por retirar menos dos pobres e mais daqueles possuidores de maiores riquezas. Privilegia-se assim o princípio da capacidade contributiva.
Sobre o quantum a ser cobrado, ressalta-se que uma exigência excessiva incentiva a fraude. De nada adianta criar-se penas elevadas, a exemplo do confisco das mercadorias, para garantir-se o cumprimento das leis de impostos, quando o Estado estabelece uma tributação elevada, porque para os fraudadores, o lucro compensa o risco da pena. O estranho é que o Estado age às avessas, de modo que, quanto mais eleva o valor dos impostos, mais incentiva o povo a fraudar e menos a colaborar. Com sabedoria, Montesquieu apresenta um modelo simples: “impostos compatíveis e meios de coerção extraordinários para o órgão arrecadador, do contrário tudo estará perdido.”25
Ao relacionar a tributação às espécies de governos, evidencia-se que, no despotismo, os impostos devem ser suaves, pois o príncipe, via de regra não tem muitos serviços a prestar ao povo, a não ser dar-lhes segurança com seu exército. Do contrário nos governos monárquicos e republicanos devem ser mais elevados, porque neles o dever de atender o bem comum é maior. O que se deduz é que se podem cobrar tributos maiores na proporção da liberdade dos súditos e menores à medida que a servidão aumenta. É que nos Estados moderados o peso dos tributos é compensado pela liberdade e pela busca da igualdade.