Com grande perplexidade foi recebida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral a Lei 13.491/17, oriunda do Projeto de Lei 5.768/16, que alterou o art. 9º do Código Penal Militar.
Inicialmente, destaque-se a excrescência de o Projeto de Lei ter sido concebido como uma lei temporária para incidir nos homicídios praticados contra civis pelos militares federais em atuação nas Olimpíadas no Rio de Janeiro. A norma surgiu no contexto de emprego cada vez mais frequente das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem, para realização de patrulhamento ostensivo (atividade de Polícia Administrativa) tendo em vista a insuficiência do trabalho dos policiais militares (art. 142, in fine da CF, art. 15 da Lei Complementar 97/99 e Decreto 3.897/01). Entretanto, em razão de ajuste político, foi combinado o veto ao dispositivo para abolir o caráter transitório da norma e torná-la permanente, afastando a competência do Tribunal do Júri em relação aos membros das Forças Armadas. Ou seja, o que o Presidente da República fez foi desnaturar a Lei e usurpar competência legislativa.[1]
O único acerto da Lei foi reafirmar (art. 9º, §1º do CPM) a competência do Tribunal do Júri para crimes dolosos contra a vida praticados por militares estaduais contra civis, seguindo o comando constitucional do art. 125, §4º da CF. Logo, persiste tal delito como crime comum, excluído portanto do rol dos crimes militares como entendem os Tribunais Superiores.[2] Que não aleguem setores da caserna que tal crime comum pode ser apurado simultaneamente por inquérito policial militar, violando entendimento da Corte da Cidadania[3] em manifesto bis in idem investigativo.[4] Nem tampouco sustentem os milicianos a existência de um suposto “Tribunal do Júri Militar”, “espectro fantasmagórico jurídico inventado ‘ad hoc’ e ‘a posteriori’ em atividade tipicamente corporativista”[5] e claramente não previsto pelo constituinte.
De outro lado, o Projeto de Lei lamentavelmente atribuiu à Justiça Militar da União a competência para o julgamento dessa categoria de delitos quando praticados por militares federais (das Forças Armadas) contra civis em determinadas situações (atribuições estabelecidas pelo Presidente ou Ministro da Defesa, segurança de instituição militar ou missão militar, atividade militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária).
O que o legislador fez foi verdadeira gambiarra legislativa ao mudar a competência da mesma categoria de delito quando praticado por militares federais contra civis, aproveitando-se do silêncio do art. 124 da CF. Em vez de respeitar a lógica do sistema (julgamento pelo Tribunal do Júri de militares que praticam crimes dolosos contra a vida de civil), estabeleceu uma inexplicável diferenciação no tratamento dos militares agindo em idêntica situação.
A criação de um suposto rol de situações para limitar a competência (art. 9º, §2º do CPM):
apresenta, na verdade, uma amplitude linguística que se presta a qualquer situação de (ab)uso. (...) Isso porque a norma em comento indica a tutela dos mais variados interesses: de governo (inciso I), de vigência institucional militar mesmo fora de guerra declarada (inciso II) ou de segurança interna para a garantia da lei e da ordem (inciso III). A elasticidade dos significantes, definitivamente, não é por acaso. (...) É, no fundo, uma maneira aparentemente legal de afastar a garantia constitucional do juízo natural civil/não militarizado.[6]
O Escritório para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos manifestaram profunda preocupação com a mudança. A ampliação da jurisdição militar representa um grave obstáculo para um julgamento justo e imparcial. Para os países que ainda a mantêm, a jurisdição penal militar deve ter um alcance restritivo e excepcional, relacionada a bens jurídicos específicos de ordem militar.
A competência militar deriva da especial proteção que se confere à instituição militar, exigindo, para sua incidência, que o fato criminoso coloque ao menos em perigo esse bem jurídico. O Estado Democrático de Direito exige que crimes cometidos por militares que não digam respeito a valores militares estritamente militares se submetam à Justiça Comum. Militarização simplesmente não combina com investigação de violações de direitos humanos.[7]
Pra se ter uma ideia do estrago da aventura legislativa, caso essa odiosa mudança não seja reconhecida inconstitucional e/ou inconvencional, acabaria gerando reflexo na competência para julgar civil por crime praticado contra membro das Forças Armadas em atividade anômala de policiamento ostensivo, tendo em conta que o inciso III do art. 9º do CPM faz remissão ao inciso II.
O festival de aberrações não para por aí. Num verdadeiro contrabando legislativo, o Projeto de Lei cujo debate versou unicamente sobre mudança de competência para crime doloso contra a vida praticado por militar federal, acabou alterando sutilmente a redação do art. 9º, II do CPM e dando margem para um terrível absurdo. Ao alterar a expressão “lei penal comum” para “legislação penal”, permitiu o legislador a leitura de que os crimes da legislação penal especial (tais quais tortura, abuso de autoridade e crime organizado) passaram a ser crimes militares quando praticados por milicianos no exercício da função.
A mudança não faz sentido e colide com o próprio Código de Processo Penal Militar, que em seu art. 6º preconiza que suas normas processuais se aplicam aos crimes previstos na “Lei Penal Militar”. Ou seja, a persecução penal militar se restringe aos crimes militares estampados no Código Penal Militar.
Importante sublinhar que a Suprema Corte já rechaçou o julgamento de civis em tempo de paz pela Justiça Militar por conduta praticada em ambiente estranho à Administração Militar, especialmente no contexto da função de policiamento ostensivo, que traduz típica atividade de segurança pública.[8] Nesse sentido, afirmou que:
Não poderia a Constituição permitir (e de fato não permite) a invasão da competência da Justiça Comum e geral pela Justiça Militar que de caráter excepcional se reveste. (...) Se não definiu ela própria o que seja crime militar, nem por isso facultou ao legislador confundir os conceitos científicos distintos de crime comum e crime militar.[9]
Vale lembrar que foi exatamente para combater o corporativismo na investigação e julgamento da violência militar que a Lei 9.299/96 retirou da Justiça Militar essa competência,[10] por recomendação da CIDH, no caso 10.301, conhecido como Caso “Parque São Lucas”, que resultou no Relatório 40/03.[11]
Ademais, militarizar a investigação significaria andar na contramão da história, num contexto em que a desmilitarização não apenas da apuração de crimes, mas do próprio policiamento ostensivo, vem sendo defendida por instituições nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos tais como IBCCRIM, Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Anistia Internacional e Secretaria Nacional de Direitos Humanos.[12]
Daí o aviso da doutrina:
(...) Gravíssimo retrocesso. Não só pela falta de estrutura e condições de investigar e julgar tantos crimes, mas também porque alcança crimes não afetos diretamente às atividades militares. Também cria o risco de efetivo corporativismo, especialmente em relação a crimes como abuso de autoridade e tortura, onde em geral existe uma percepção e valoração por parte dos militares que é completamente distinta da população civil acerca da gravidade e tipificação dessas condutas. [13]
Quanto mais se restringir a competência da Justiça Militar (seja a da União, seja a dos Estados), melhor será para continuarmos lutando por um Estado Democrático de Direito. E quão dura e penosa tem sido esta luta![14]
Exatamente na linha do que afirmamos:
A escuridão da caserna não é lugar adequado para se apurar a retirada da vida de um civil por militar. Afinal, na persecução penal, forma significa garantia, verdadeira condição necessária da confiança dos cidadãos na Justiça.[15]
Na mesma esteira a Corte Interamericana de Direitos Humanos,[16] segundo a qual a jurisdição militar não é aplicável a civis que não podem incorrer em condutas contrárias a deveres militares, violando frontalmente o art. 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em idêntico sentido a Corte Europeia de Direitos Humanos.[17] Aliás, o Brasil já foi especificamente condenado por ter utilizado o foro militar para examinar caso de crime praticado por militar contra civil.[18]
Além de inconvencional, a mudança é inconstitucional por se consubstanciar em jabuti que não constou da justificativa do Projeto de Lei ou tampouco dos pareceres. A nítida intenção com a maliciosa tramitação foi subtrair a questão do debate legislativo e público, providência esta rechaçada pela jurisprudência[19] e pela doutrina.[20] A proposta legislativa não discutiu em momento algum a ampliação da competência da Justiça Militar Estadual para crimes previstos fora do Código Penal Militar, e a consequente transformação de delitos comuns em crimes militares.
Nesse diapasão a colocação doutrinária:
Diante deste contexto absurdo, criado por legislador inconsequente e açodado, sugerimos que entendamos que, para ser crime militar e, por consequência, ser julgado por esta justiça especial, teremos de examinar o bem jurídico violado ou posto em perigo pela conduta praticada em uma daquelas circunstâncias do art.9º.
Destarte, na hipótese do novo inc. II, as “circunstâncias”, previstas no aludido art. 9º, não são elementares do tipo penal, suficientes para a caracterização de um crime militar.
Para a caracterização do crime militar, devemos ter presente também a natureza do bem jurídico tutelado pela norma penal de direito comum. Tudo deve ser conjugado.[21]
Com efeito, face não só à inconstitucionalidade, mas especialmente à inconvencionalidade primo ictu oculi, deve o delegado de polícia aplicar os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário em vez da retrógrada e sorrateira legislação, como deixam claro a Corte Interamericana de Direitos Humanos[22] e a doutrina.[23]
Destarte, como já aduzimos,[24]
Ao detectar uma norma inconvencional, é dever do delegado de polícia tomar decisão fundamentada deixando de aplica-la (...). Na sequência, para garantir o rápido controle judicial, deve a autoridade policial remeter cópia do procedimento (incluindo a decisão motivada) ao juiz em exíguo lapso temporal de 24 horas, por analogia (art. 3º do CPP) com o prazo da remessa de cópia do auto de prisão em flagrante (art. 306, §1º do CPP). (...)
Entender o contrário criaria verdadeira zona de exceção na fase de investigação criminal, como se a etapa pré-processual constituísse bolha imune à incidência dos tratados internacionais de direitos humanos. Equivaleria a inverter o trapézio normativo e subjugar as normas internacionais que o Brasil se obrigou a respeitar.
Bem assim, quando não se tratar de crime previsto no Código Penal Militar, ou seja, em se tratando de crime da legislação penal especial, o policial militar ou o bombeiro militar deve ser investigado normalmente perante a Polícia Judiciária e ser processado perante a Justiça Comum, como já ocorre atualmente, incluindo os crimes dolosos contra a vida de civis.
De mais a mais, não se pode olvidar que, ainda que a mudança no art. 9º, II do CPM fosse constitucional e convencional, o delegado de polícia pode perfeitamente lavrar auto de prisão em flagrante de crime militar cometido em lugar não sujeito à administração militar (art. 250 do CPPM).
Por fim, é sempre válido o alerta do STF:
Essencial que se construa, com estrita observância do que dispõe a Carta Política, um sistema organizado de proteção social contra a violência arbitrária da Polícia Militar (lamentavelmente em processo de contínua expansão) e de imediata reação estatal. (...) É preciso advertir esses setores marginais que atuam criminosamente na periferia das corporações policiais que ninguém, absolutamente ninguém – inclusive a Polícia Militar – está acima das leis. [25]
Notas
[1] Postura que curiosamente condena em sua obra: TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008, p.143-144.
[2] STF, Tribunal Pleno, RE 260.404, Rel. Min. Moreira Alves, DP 21/11/2003; STJ, CC 45.134, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 07/11/2008.
[3] STJ, HC 47.168, Rel. Min. Gilson Dipp, DP 13/03/2006.
[4] STJ, RHC 10763, Rel. Min. Gilson Dipp,DJ 07/06/2001.
[5] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes militares praticados contra civil – Competência de acordo com a Lei 13.491/17. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5223, 19 out. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/61211>. Acesso em: 19 out. 2017.
[6] MACHADO, Leonardo Marcondes. Lei 13.491/2017 reforça militarização da segurança pública e da Justiça Penal. Revista Consultor Jurídico, out. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-out-17/academia-policia-lei-134912017-reforca-militarizacao-seguranca-publica-justica-penal>. Acesso em: 17 out. 2017.
[7] Nesse sentido o art. IX da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (Decreto 8.766/16).
[8] STF, HC 112936, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 05/02/2013.
[9] STF, RE 122.706, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 21/11/1990.
[10] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 256/257.
[11] Disponível em: <https://cidh.oas.org/annualrep/2003port/Brasil.10301.htm>. Acesso em: 27 nov. 2017.
[12] Resolução 8/12, que busca, dentre outras coisas, coibir a investigação de crimes comuns pelo Serviço Reservado da Polícia Militar (P2).
[13] LOPES JÚNIOR, Aury. Lei 13.491/2017 fez muito mais do que retirar os militares do tribunal do júri. Revista Consultor Jurídico, out. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-out-20/limite-penal-lei-134912017-fez-retirar-militares-tribunal-juri>. Acesso em: 20 out. 2017.
[14] MOREIRA, Rômulo de Andrede. A lei que tornou a competência da Justiça Militar da União. Justificando, out. 2017. Disponível em: < http://justificando.cartacapital.com.br/2017/10/19/lei-que-tornou-competencia-da-justica-militar-da-uniao>. Acesso em: 19 out. 2017.
[15] HOFFMANN, Henrique. Investigação de Homicídio Praticado por Policial Militar contra Civil. In: HOFFMANN, Henrique. et. al. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
[16] Corte IDH, Caso Castillo Petruzzi e Outros vs. Perú, Sentença de 30/05/1999; Caso Nadege Dorzema e Outros vs. República Dominicana, Sentença de 24/10/2012; Caso Radilla Pacheco vs. México, Sentença de 23/11/2009; Caso Vélez Restrepo e Familiares vs. Colômbia, Sentença de 03/09/2012; Caso Arguelles e Outros vs. Argentina, Sentença de 20/11/2014.
[17] Corte EDH, Caso Pabla Ky vs. Finlândia, Julgado em 22/06/2004.
[18] Corte IDH, Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, Sentença de 24/09/2010.
[19] STF, ADI 5127, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 15/10/2015.
[20] MARRAFON, Marco Aurélio; ROBL FILHO, Ilton Norberto. Controle de Constitucionalidade no Projeto de Lei de Conversão de Medida Provisória em face dos ‘Contrabandos Legislativos’: Salvaguarda o Estado Democrático de Direito. In: NOVELINO, Marcelo; FELLET, André (Orgs.). Constitucionalismo e Democracia. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 238-239.
[21] JARDIM, Afrânio Silva. O conceito de crime militar e a nova lei. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/o-conceito-de-crime-militar-e-a-nova-lei-nao-nos-esquecamos-do-sistema-constitucional-por-afranio-silva-jardim>. Acesso em: 31 out. 2017.
[22] Corte IDH, Caso Gelman vs. Uruguai, Sentença de 24/02/2011; Corte IDH, Caso dos Trabalhadores Demitidos do Congresso vs. Peru, Sentença de 24/11/2006.
[23] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 4.ed. São Paulo: GEN/Método, 2017, p. 464/469.
[24] HOFFMANN, Henrique; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Delegado pode e deve aferir convencionalidade das leis. Revista Consultor Jurídico, nov. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-nov-07/academia-policia-delegado-aferir-convencionalidade-leis>. Acesso em: 1 nov. 2017.
[25] STF, ADI 1494, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 09/04/1997.