3. ESTUPRO MARITAL
3.1 CONCEITO
O estupro marital, é a violência sexual contra a mulher em uma relação conjugal, no chamado casamento, em que ela na qualidade de esposa é forçada pelo cônjuge a manter relação sexual sem a sua vontade. É uma modalidade dentre várias do estupro, difere-se, pois o cônjuge passa a ser o sujeito ativo do crime e a mulher sujeito passivo obrigatoriamente. “É um direito seu que não desaparece, mesmo quando se dá a uma vida licenciosa, pois, nesse caso, ainda que mercadejando com o corpo, ela conserva a faculdade de aceitar ou recusar o homem que a solicita.” (NORONHA, 2002, p. 68).
3.2 ENTEDIMENTO DOUTRINÁRIO DO ESTUPRO MARITAL
Capez (2008, p. 420) entende que Marido que, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, constrange à mulher a pratica de relações sexuais comete crime de estupro.
Delmanto (2000, p.413), por sua vez, entende que embora a relação sexual voluntária seja lícita ao cônjuge, o constrangimento ilegal empregado para realizar a conjunção carnal à força não constitui exercício regular de direito, mas, sim, abuso de poder, por tanto a lei penal não autoriza o uso de violência física ou coação nas relações sexuais entre os cônjuges.
Mirabete (2001, p. 1245-1246), complementa esse posicionamento afirmando que, embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial.
Guilherme de Souza Nucci (2002, p.655) afirma que tal situação não cria o direito de estuprar a esposa, mas sim o de exigir, se for o caso, o término da sociedade conjugal na esfera civil, por infração a um dos deveres do casamento.
No que concerne a tal discussão, Greco (2010, p. 466) esclarece que Modernamente, perdeu o sentido tal discussão, pois, embora alguns possam querer alegar o seu, credito conjugal, o marido somente poderá relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela.
Autores há que externam que não mais deve existir a expressão débito conjugal. É o caso de Dias (2001, p.235), que entende que não se consegue detectar a origem do quem vem sendo alardeado, até por charges via Internet: que existe no casamento o “débito conjugal” que um cônjuge deve ceder à vontade do outro e atender ao seu desejo sexual. Tal obrigação não está na lei. A previsão de “vida em comum” entre os deveres do casamento (Código Civil de 1916, art. 230, II e Novo Código Civil, art. 1.566, II) não significa imposição de “vida sexual ativa” nem impõe a obrigação de manter “relacionamento sexual”. Essa interpretação infringe até o princípio constitucional do respeito da dignidade da pessoa, além de violar a liberdade e o direito à privacidade, afrontando a inviolabilidade ao próprio corpo. Não existe sequer a obrigação de se submeter a um beijo, afago ou carícia, quanto mais de se sujeitar a práticas sexuais pelo simples fato de estar casado.
Ferraz (2001. p.194-195), em ímpar comentário, explicita que o estupro da mulher casada, praticado pelo marido, não se confunde com a exigência do cumprimento do débito conjugal; este é previsto inclusive no rol dos deveres matrimoniais, se encontra inserido no conteúdo da coabitação, e significa a possibilidade do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar relações sexuais, porém não autoriza o marido ao uso da força para obter relações sexuais com sua esposa. (...) A violência sexual na vida conjugal resulta na violação da integridade física e psíquica e ao direito ao próprio corpo. A possibilidade de reparação constitui para o cônjuge virago uma compensação pelo sofrimento que lhe foi causado.
3.2 LEGISLAÇÃO COMPARADA
Destaca-se no Direito Comparado, o posicionamento dos juristas italianos, franceses e da legislação porto-riquenha. Defende a doutrina italiana, que não há o estupro do marido contra mulher, valendo-se da autoridade do marido no casamento. Esta é a tese defendida por autores como Olfaggiore, Pozzolini, Manfredini e Saniti. Há, porém, uma outra corrente italiana na qual também não se admite o estupro conjugai, entretanto, em caso da mulher ser forçada ao sexo por seu cônjuge, ter-se-á então violência privada. Comungam desta idéia, Carnelutti, Antolisei e Vannini. (DANTAS, 2003)
Em se tratando da legislação porto-riquenha, a lei n° 54 dispõe em seu art. 3.5, especificamente a agressão sexual conjugai, punindo severamente o agressor de acordo com os seguintes preceitos:
Será imposta pena de reclusão, segundo se dispõe mais adiante, a toda pessoa que incorra em uma relação sexual não consentida, com seu cônjuge ou ex-cônjuge, com pessoa com quem coabite ou tenha coabitado, ou com quem sustente ou tenha sustentado uma relação consensual ou a pessoa com quem tenha procriado filho ou filha, em qualquer uma das circunstâncias seguintes: se tenha compelido manter uma conduta sexual mediante emprego de força, violência, intimidação ou ameaça de grave e imediato dano corporal; se tiver anulado ou diminuído substancialmente, sem seu consentimento sua capacidade de resistência através de meios hipnóticos, narcóticos, deprimentes ou estimulantes, substancias ou meios similares.(DANTAS, 2003).
Tem sua origem no Direito Francês, o entendimento de se conferir indenização à vítima; em face deste fato. Quanto a isso, Espínola (1954, p. 209) dispõe que os tribunais franceses têm decidido que a recusa de relações sexuais constitui uma injúria grave, capaz de justificar o divórcio ou separação de corpos, concedendo, além disso, indenização ao cônjuge ofendido.
Dessa maneira, o que se apercebe é o jogo de contrários estabelecido entre estes posicionamentos; sendo o primeiro alicerçado numa visão retrógrada de superioridade masculina e o outro, dotado de notório viés progressista. Como posição intermediária, o francês preferiu a compensação pecuniária.
Apreende-se, dentre os motes abordados, uma visão essencialmente humanista provinda do corpo jurídico porto-riquenho. Este demonstrou uma preocupação social no que tange o respeito aos direitos da mulher.
Já os doutrinadores tradicionais Brasileiros como Hungria; Noronha utilizam em suas argumentações o debitus conjugales, o dever sexual implícito na coabitação (C.C. 1916 art. 231-11), dever este, ao qual a mulher casada, em tese, não poderia se recusar. Tem sua gênese incrustada no Direito Canônico, mais especificadamente no cân. 1.013, § I o , o qual estabelece como fim primeiro do casamento, a procriação e a educação da prole.
Dentro do mesmo raciocínio, Diniz (2000, p.35) acrescenta no que concerne à finalidade do casamento: "a legalização das relações sexuais entre os cônjuges, pois dentro do casamento a satisfação do desejo sexual, que é normal e inerente à natureza humana, apazigua a concupiscência [..]. Noronha, por sua vez, confirmava ao responder - se é admissível o estupro entre cônjuges:
As relações sexuais são pertinentes à vida conjugai, constituindo direito e dever recíproco dos que casaram. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não se pode opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder pelo excesso cometido. [...] mulher que se opõe às relações sexuais com o marido atacado de moléstia venérea, se for obrigada por meio de violências ou ameaças, será vítima de estupro. Sua resistência legítima torna a cópula ilícita. (NORONHA, 2002, p. 70)
Como se vê expressamente na opinião de Noronha, este só admitia o estupro marital se a mulher fundar-se em razões inequivocamente morais e justas, como por exemplo, o fato do marido estar portando doença venérea. Dessa forma, o que tornaria a cópula ilícita não era o constrangimento ao qual a mulher seria exposta, mas sim, a atitude típica prevista no art. 130 do C R do varão transmitir moléstia venérea à varoa. Hungria pacificava também deste pensamento, enfatizando, porém que:
O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito. (HUNGRIA, 1959, p. 126, grifo nosso).
Destarte, vislumbrava-se na visão dos doutrinadores tradicionalistas aqui invocados, reservando o devido respeito a suas contribuições jurídicas, uma nítida noção da mulher objetificada. Reforçando tal realidade, basta mencionar o título ao qual a proteção à sua liberdade sexual e à sua honra é encaixado: Crime contra os costumes - e não contra sua pessoa.
Comprovando este entendimento, o seguinte acórdão manifesta a postura de alguns magistrados:
Inadmissibilidade da prática do crime do marido contra mulher - RT 461/44 TAGB: "Exercício regular de direito. Marido que fere levemente a esposa, ao constrangê-la à prática de conjunção sexual normal. Recusa injusta da mesma, alegando cansaço. Absolvição mantida. [...] (MIRABETE, 1999, p. 1246, grifo do autor).
Ainda, o Código Penal pátrio nos traz mais um dispositivo esclarecedor na medida em que, analisando o art. 23, caput: "não há crime quando o agente pratica o fato: I- em estado de necessidade; II- em legítima defesa; III- em estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito". Se levado em consideração o inciso III do artigo supracitado para justificar um delito, seja ele cometido por quem for, estaremos diante de uma violência institucional. A lei é geral, logo, é para todos. O art.213 do CP. é bastante claro quando não escusa ninguém que cometa a conduta típica de ser devidamente punido. (MIRABETE, 1999).
Assim sendo, quanto à legislação, não existe tipificação específica para punir o estupro marital. Conquanto, também não há nenhum dispositivo legal que obrigue a mulher casada a ceder aos anseios sexuais do marido sem a sua volição. Batista (1976, p. 71) finaliza:
[...] a posição predominante pode assim ser sintetizada: o marido não pode cometer violência contra a mulher, salvo se for para obrigá-la à conjunção carnal. Se isto faz algum sentido, é o sentido de que a bestialidade e o desrespeito só encontram guarida no matrimônio.