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O direito sucessório homoafetivo após julgamento da ADI 4.277 pelo Supremo Tribunal Federal

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Agenda 13/02/2019 às 08:08

Análise do direito sucessório homoafetivo após o julgamento da ADI 4.277 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

INTRODUÇÃO

O artigo proposto discorrerá sobre o direito sucessório homoafetivo com enfoque nas mudanças que ocorreram devido ao julgamento da ADI 4.277 pelo Supremo Tribunal Federal.

Antes da análise desta temática faz-se necessário abordar conceitos de suma relevância, como o que é família, entidade familiar e união homoafetiva.

Será realizada também uma análise sobre o Direito Sucessório e o Direito Sucessório homoafetivo antes e após o julgamento da ADI 4.277 pelo STF.

Este artigo encontra-se divido em três capítulos, a saber:

No primeiro capítulo será abordado o conceito de família, entidade familiar e união homoafetiva.

No segundo capítulo será desenvolvido um breve relato sobre o Direito Sucessório, seu conceito e sua evolução histórica.

E por fim, e não menos importante, no terceiro capítulo, o Direito Sucessório Homoafetivo, cujos aspectos antes e após o julgamento da ADI 4.277 pelo Supremo Tribunal Federal serão abordados e analisados.

O método de pesquisa utilizado e dedutivo, utilizando-se técnicas de pesquisa indireta bibliográfica, a partir de livros, artigos, textos da internet e fontes documentais como leis e jurisprudência consolidada de Tribunais acerca do tema proposto.


1. CONCEITO DE FAMÍLIA, ENTIDADE FAMILIAR, FAMÍLIA HOMOAFETIVA.

A Declaração Universal dos Direitos dos Homens garantiu aos homens e mulheres, sem distinção de raça, nacionalidade ou religião o direito de fundar uma família.

Em seu artigo 226, caput, a Constituição Federal preceituou que a família é a base da sociedade, cabendo ao Estado oferecer-lhe especial proteção.

Para NEVES[1], “família é aquele grupo que descende de um tronco ancestral comum, bem como, aqueles que estão ligados por laços de afinidades”.

Voltando ao passado, no Brasil, a família matrimonializada imperava no início do século passado amparada pelo código civil de 1916. Este código tinha uma visão extremamente discriminatória com relação à família A dissolução do casamento era vetada, havia distinção entre seus membros, a discriminação, às pessoas unidas sem os laços matrimoniais e aos filhos nascidos destas uniões, era positivada.[2]

A família matrimonial tinha um cunho ligada à moralidade, surgindo em detrimento da imposição da igreja em regular as relações afetivas, juntamente com o Estado, sob a justificativa de manter a ordem social.[3]

A chefia destas famílias era do marido e a esposa e os filhos possuíam posição inferior a dele. A vontade da família se traduzia na vontade do homem que se transformava na vontade da entidade familiar. Contudo, estes poderes se restringiam à família matrimonializada, os filhos, ditos ilegítimos, não possuíam espaço na original família codificada, somente os legítimos é que faziam parte daquela unidade familiar de produção. Acrescenta-se que o desquite era a única maneira de pôr fim ao casamento, tendo em vista que sua indissolubilidade do casamento era regra no Código Civil de 2016.[4]

Quando surgiu o desquite, ele não encerrava o casamento entre os cônjuges, mas tão somente os deveres matrimoniais, posto que não eram considerados mais casados.[5]

O desquite por mútuo consentimento ou litigioso era amplamente utilizado antes do advento da lei do divórcio, em 1977. “A referida lei substituiu a primeira expressão por "Separação Consensual" e a segunda por "Separação Litigiosa". Assim, o antigo Desquite é a atual Separação, e não Divórcio”. [6]

O divórcio só foi admitido a partir de 1977, quando da criação da lei 6.515. Antes da lei do divórcio e mesmo após sua vigência, para aqueles que não alcançavam o tempo previsto de separação judicial era difícil não constituir um novo núcleo de convivência e por este motivo foram surgindo novas famílias, chamadas de famílias informais, sem reconhecimento jurídico, já que somente pelo casamento era possível a constituição de família.[7]

Muitas famílias informais foram surgindo no seio da sociedade brasileira e com elas expressões como concubina e companheira, consideradas sinônimas, mas a distinção foi estabelecida pela jurisprudência, considerando aquela como a mulher com quem o cônjuge adúltero tinha encontros periódicos fora do lar e esta como a mulher com quem o homem separado de fato ou de direito mantinha convivência more uxória. [8]

Foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que houve a ampliação do conceito de entidade familiar, de forma a conceder direitos a relações de companheiros, cuja denominação ficou conhecida como união estável.

Por entidade familiar se deve entender toda e qualquer espécie de união capaz de servir de berço das emoções e das afeições dos seres humanos. O sistema jurídico nacional, ao objetivo de proteger a família legitimamente constituída, sempre adotou posicionamento no sentido de desconhecer as uniões de fato, e por isso mesmo deixava de amparar aqueles que, inobstante o repúdio que sofriam, mantinham relações sem o vínculo do casamento.

Com a Carta Magna em vigor, no entanto, o casamento deixou de ser considerado o único modelo legítimo de união entre o homem e a mulher. A expressão entidade familiar reveste-se do significado constante no artigo 226, §§3º e 4º da Constituição Federal, in verbis:

A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Pode-se identificar como espécies de entidade familiar a família monoparental, a família parental ou anaparental, a família pluriparental ou família mosaico, a família paralela e a família eudemonista.

A família monoparental é aquela constituída por um dos genitores e seus filhos, expressamente aceita no §4º, do artigo 226, da Constituição Federal.

Já família parental ou anaparental, que é constituída pela convivência de parentes ou entre pessoas não parentes, mas que tenham objetivos familiares.

Já quando temos diversos núcleos familiares surgidos a partir do termino de relações anteriores temos as famílias pluriparentais ou família mosaico. São famílias que surgem em razão da união de pessoas que tiveram um casamento anterior ou uma união estável de onde nasceram filhos e são trazidos para a convivência do novo núcleo familiar.

A família paralela evidencia-se por ser formada em paralelo às famílias oriundas do casamento ou da união estável. Por estar em desacordo com o disposto em lei, as famílias paralelas são chamadas usualmente de concubinatos, posto que fogem a ideia de moral que envolve muitas sociedades, porém não se pode negar seus efeitos jurídicos, fato que vem sendo verificado por parte da jurisprudência, mesmo sendo uma minoria é possível que futuramente seja reconhecida em sua plenitude.[9]

Outra espécie de entidade familiar é a eudemonista onde o indivíduo foca sua vida na busca pela felicidade. A Constituição Federal afirma, em seu artigo 226, §8º, que cada componente da família contará individualmente com a assistência por parte do Estado, por isso recebe tal denominação, sendo desprovida de preconceitos.

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Em outras palavras, a família eudemonista é um conceito moderno que se refere à família que busca a realização plena de seus membros, caracterizando-se pela comunhão de afeto recíproco, a consideração e o respeito mútuos entre os membros que a compõe, independente do vínculo biológico.

Observe-se o posicionamento de DIAS:

O modelo familiar hoje é o da família eudemonista, no qual cada indivíduo é importante em sua singularidade, tendo o direito de ser feliz em seu contexto, independentemente de sua orientação sexual. Pautar direitos tendo como parâmetro o sexo a quem é destinado nosso afeto é perverso e injusto. A família é muito mais do que a reunião de pessoas com o mesmo sangue. Família é encontro, afeto, companheirismo, é dividir para somar.[10]

Seguindo este conceito, temos como entidade familiar a família homoafetiva, que pode ser entendida como na união de duas pessoas do mesmo sexo, que contempla perfeitamente todas as características de um relacionamento, ou seja, um convívio público e duradouro, conceito este que muito se assemelha com o da união estável, preceituado no artigo 1.723, do Código Civil.

Com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, houve o reconhecimento dessas relações como entidade familiar, deixando-se de falar em sociedade de fato quando do rompimento do vínculo entre os parceiros. Antes da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, a lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha chegou a reconhecer em seu artigo 5º, II, parágrafo único, a família homoafetiva, pois afirma que no âmbito familiar compreendem-se os indivíduos unidos por laços naturais, por vontade expressa ou afinidade.

Dessa forma, a entidade familiar para ser considerada requer além de afeto o desejo de constituir uma família perante a sociedade, sendo este um dos itens exigidos pela lei para a instituição de uma união estável (PAZINI, 2009).[11]


2. DIREITO SUCESSÓRIO: CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA.

Sucessão significa ato pelo qual uma pessoa assume o lugar de outra, substituindo a titularidade de determinados bens.[12]

Suceder significa acontecer posteriormente; vir em seguida; ser substituto; substituir; ter a posse do que pertencia ao seu antecessor; ser sucessor; assumir direitos do autor sucessionis.[13]

A origem da palavra sucessão vem do latim sucessio e corresponde a transmissão de bens deixados em razão do falecimento de alguém. [14].

A palavra sucessão significa a mudança de titularidade de bens. Isso acontece também em outros ramos do direito, como no Direito das Coisas, quando se dá a tradição, porém, nessa hipótese a sucessão ocorre por ato inter vivos.

A sucessão poderá ocorrer de duas formas, a primeira por vontade das partes e a segunda por causa da morte, onde surgem os direitos de sucessão, que definirá o quinhão de cada herdeiro. No primeiro caso, a sucessão é inter vivos, onde não é aplicado o direito de sucessão.

Em relação aos herdeiros, estes são os sujeitos passivos que fazem parte do rol legal contido no artigo 1.829, do Código Civil, chamados de herdeiros legítimos, que serão convocados quando inexistentes integrantes da classe anterior.

Já o artigo 1.845 preceitua que são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

GONÇALVES conceitua herdeiro necessário como “todo parente em linha reta não excluído da sucessão por indignidade ou deserção, bem como o cônjuge, que passou a desfrutar dessa qualidade”.

Ressalta-se que no direito brasileiro, a sucessão decorre de lei, por isso denomina-se legítima e a testamentária é assim denominada porque decorre de disposições de última vontade.

A origem do direito sucessório surge nas primeiras formações familiares, assim, para compreender o direito sucessório brasileiro, remete-se ao estudo da história da legislação romana.[15]

No início da civilização, havia uma comunhão familiar, ou seja, os bens ficavam com o grupo familiar, já que persistia a comunidade agrária, sendo as terras de propriedade coletiva da gens.[16]

Em momento posterior, associou-se a sucessão à religião e ao parentesco[17] . A família estava intimamente ligada à religião, a relação de parentesco era graduada de acordo com o culto. Por conseguinte, aqueles que adotavam a mesma crença, pertenciam a mesma família.[18]

As primeiras normas do direito sucessório romano pairavam sobre o princípio de que a sucessão e o culto eram institutos inseparáveis, crença e propriedade estavam interligadas, o direito sucessório tinha como base fundamental a religião. Desta forma, não se discutia o destino da propriedade sem falar no culto.[19]

Desta maneira, constatava-se a que propriedade e religião caminhavam inseparáveis e a partir disto surgiram todas as regras de direito sucessório. A primeira regra foi a sucessão hereditária, assim como na religião praticada dentro das casas, de varão para varão, a propriedade também seguia a mesma continuidade, ou seja, o filho, sendo natural, seria o continuador do culto e também o herdeiro dos bens. Observa-se então, a partir do princípio da hereditariedade, que a sucessão não era o resultado de simples convenção entre homens, mas sim advindo de suas crenças e religião.

A transmissão da religião ocorria na linha masculina, não se admitia descendência pela linha feminina. Não se julgava ser parente pela linha materna e sim paterna, pois eram os descendentes varões que davam continuidade à religião familiar. Assim, se um homem morria sem filhos, deveria herdar quem continuasse o seu culto, porém na linha masculina.[20]

Observa-se então que a transmissão da herança caía sobre a linha masculina, quem herdava era o descendente varão. Sucedia dessa forma porque a filha ao se casar, adotaria a religião do marido, deste modo não poderia herdar, eis que a propriedade ficaria dissociada da crença, o que não era admitido.[21]

No direito romano, a filha poderia herdar. No entanto apenas de forma provisória, herdaria como usufruto, desde que fosse solteira.[22]

Importante destacar que o filho varão, ainda que primogênito, poderia ser excluído da sucessão, uma vez que o vínculo intenso entre a religião e a sucessão estabelecia que o filho excluído do culto, seria excluído da sucessão. Em contrapartida, o filho adotado poderia herdar, porém não poderia herdar da sua família de origem, pois não pertencia mais àquela religião.[23] .

RIZZARDO pontua que:

firma-se a propriedade individual, com o arrefecimento dos laços políticos, religiosos e de parentesco. Opera-se a transmissão não aos membros da família, mas aos herdeiros, assim considerados os que estavam submetidos diretamente à potestade do pai, e aos escravos instituídos herdeiros por testamento.[24]

Em Roma, o testamento teve início a partir da Lei das XII Tábuas, podendo o autor da herança, dispor de seus bens livremente. [25]

Poderia ainda o autor da herança falecer sem deixar testamento. Neste caso, a sucessão seguiria a ordem de preferência da época.[26]

Carlos Roberto GONÇAVES[27] assim conceitua as três classes de herdeiros vigentes nessa época:

Os heredi sui et necessarii eram os filhos sob o poder do pater e que se tornavam sui iuris com sua morte: os filhos, os netos, incluindo-se também, nessa qualificação, a esposa. Os agnati eram os parentes mais próximos do falecido. Entende-se por agnado o colateral de origem exclusivamente paterna, como o irmão consangüíneo, o tio que fosse filho do avô paterno, e o sobrinho, filho desse mesmo tio. A herança não era deferida a todos os agnados, mas ao mais próximo no momento da morte (agnatus proximus). Na ausência de membros das classes mencionadas, seriam chamados à sucessão os gentiles, ou membros da gens, que é o grupo familiar em sentido lato.

Com isso, a partir do Código de Justiniano, fundando-se no parentesco natural, “estabeleceu-se a seguinte ordem de vocação hereditária: a) os descendentes; b) os ascendentes, em concurso com os irmãos e irmãs bilaterais; c) os irmãos e irmãs, consangüíneos ou uterinos; e d) outros parentes colaterais.”[28].

Já no século XIII, o Código Civil Francês de 1804, ou Código de Napoleão, adotou o droit de saisine, estabelecendo que a propriedade e a posse da herança passariam aos herdeiros imediatamente, ou seja, com a morte do sucessor. [29]

No Brasil, na Consolidação das Leis Civis em seu art. 978 e no Código Civil de 1916, em seu artigo 1.572, por influência do Código Civil Francês, adotou-se o Princípio da Saisine.[30]

O Código Civil brasileiro de 1916 reconhecia apenas a família constituída do casamento e por conseguinte apenas os filhos advindos do casamento eram reconhecidos.

Maria Berenice DIAS[31] aborda o tema:

Reproduzindo o modelo da sociedade do início do século passado, o Código Civil de 1916 reconhecia como família exclusivamente a constituída através do casamento, que era indissolúvel. Para assegurar a integridade da família e do patrimônio familiar, não era admitido o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento. Chamados de “ilegítimos”, não tinham direitos sucessórios. Essa perversa punição foi se abrandando, até que a Constituição Federal baniu todo e qualquer tratamento discriminatório relativo à filiação (CF 227 §6º).

Cumpre salientar que aos filhos adotivos e ao concubinato estendeu-se essa discriminação pelo fato do reconhecimento da família constituída pelo casamento, tendo em vista que na época ainda não havia o reconhecimento da União Estável, só vindo este instituto a ser reconhecido pela Constituição Federal, em 1988.

No entanto, salienta-se ainda, que o direito sucessório do companheiro somente foi assegurado e regulamentado pela Lei 8.971.28 em 1994.

O Direito Sucessório, atualmente, encontra previsão legal no art. 5º, incisos XXX e XXXI da Constituição Federal de 1998; no art. 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro; nos artigos 982 a 1169 do Código de Processo Civil; nos artigos 1784 a 2027 do Código Civil e na Lei 11.441/2007.


3. DIREITO SUCESSÓRIO HOMOAFETIVO: ANTES E APÓS O JULGAMENTO DA ADI 4.277 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

A ausência de norma positivada que tutelasse as uniões entre pessoas do mesmo sexo acabava por não garantir o direito sucessório aos conviventes homoafetivos. O artigo 223, § 3º da Constituição Federal apenas reconheceu como entidade familiar a união estável entre homem e mulher e, por conseguinte, o artigo 1.723, do Código Civil, seguindo a orientação constitucional, determinou que somente a união entre homem e mulher deveria ser de forma pública, contínua e com objetivo de constituição de família para ser reconhecida como união estável.

As uniões estáveis homoafetivas foram esquecidas pelo legislador constituinte e fez com que surgisse uma demanda ao Judiciário a fim de solucionar as questões sucessórias decorrentes destas uniões.

As lides sucessórias homoafetivas chegavam ao judiciário e eram distribuídas às Varas Cíveis, tendo em vista que a falta de reconhecimento como entidade familiar das uniões homoafetivas impediam que as mesmas fossem distribuídas às Varas de Família.

Conforme DIAS[32] relata,

a jurisprudência aplicava às uniões homoafetivas era o reconhecimento de mera entidade de fato, pautada no artigo 981, do Código Civil de 2002, que afirma celebrarem contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

A partir do julgamento da ADI 4.277, a união entre os casais homoafetivos foi reconhecida como entidade familiar e a esta união foram aplicadas as regras preceituadas as uniões estáveis já consagradas entre casais heterossexuais, preceituadas no artigo 1.723, do Código Civil de 2002. Quanto ao direito sucessório, o artigo 1.790, do mesmo Código, passou a vigorar para os mesmos.

3.1 DIREITO SUCESSÓRIO HOMOAFETIVO: ANTES DO JULGAMENTO DA ADI 4.277 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Às uniões homoafetivas aplicavam-se regras de Direito Empresarial com vistas a garantir algum direito ao companheiro sobrevivente, e com isso, utilizava-se as regras das sociedades de fato para a partilha dos bens, e ainda assim quando fosse possível provar a existência de uma sociedade de fato entre os parceiros homoafetivos.

Quando os direitos sucessórios eram negados, segundo DIAS[33],

entregava-se o acervo hereditário aos parentes, que não são herdeiros necessários, ocasionando o enriquecimento sem causa dos tios, sobrinhos, que normalmente hostilizavam a opção sexual do de cujus, em detrimento de quem dedicou a vida ao companheiro, ajudou a mealhar o patrimônio e se vê sozinho, abandonado e sem nada.

O reconhecimento de tais uniões como sociedade de fato tinha por fim evitar o enriquecimento sem causa de parentes, e resguardar o mínimo de direitos ao parceiro sobrevivente, mas em muitos casos as heranças foram declaradas vacantes por falta de herdeiros dos “de cujus”.

Com o objetivo de evitar a vacância da herança, os casais homoafetivos optaram por fazerem disposições testamentárias, pois tornara-se uma alternativa para que o parceiro sobrevivente tivesse direitos sucessórios sobre a herança do parceiro falecido, assim era possível, respeitando a sucessão legítima, testar e determinar quais bens eram destinados ao parceiro supérstite.

3.2 DIREITO SUCESSÓRIO HOMOAFETIVO: APÓS O JULGAMENTO DA ADI 4.277 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Carta Magna de 1988, tem por atribuição verificar a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal oi estadual que viole os preceitos constitucionais.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é uma ação proposta perante o STF pelos legitimados no artigo 103, da Constituição Federal (CRFB/1988).

Ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), a ADI 4.277, inicialmente tratada como Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 178, tinha por escopo pedir que fosse dada interpretação conforme a CRFB/1988 ao artigo 1,723, do Código Civil de 2002.

Diz o artigo 1.723, do CC/2002:

É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

A ADI sustentava que os princípios elencados na Constituição Federal deveriam ser respeitados, principalmente o princípio da dignidade humana, também considerado fundamento da República e do Estado Democrático de Direito.

Princípios como o da igualdade, da não discriminação, da liberdade e da proteção à segurança jurídica também foram elencados pelo Procurador-Geral da República na ADI 4.277.

Em paralelo à ADI 4.277, o Governador do Estado do Rio de Janeiro, propôs a ADPF 132, na qual solicitava a aplicação do regime jurídico aplicado às uniões estáveis às uniões homoafetivas de funcionários civis. A ADI 4.277 e a ADPF 132 foram julgadas em conjunto.

O julgamento da ADI 4.277 teve como relator o ministro Ayres Brito que votou favoravelmente para que fosse dada interpretação conforme à Constituição Federal ao artigo 1.723 do Código Civil a fim de não criar obstáculos ao reconhecimento da união estáveis entre pessoas do mesmo sexo.

Citando o artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, o relator enfatizou que não se deve discriminar as pessoas em função da sua preferência sexual.

Os demais ministros participantes seguiram o voto do relator, e o STF cumpriu o seu papel de guardião da Constituição Federal, observando princípios que foram esquecidos pelos legisladores e reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar, mudando o conceito de família até então em vigor.

Ressaltando-se que o ativismo judicial do STF não tem força de lei, mas, por se tratar de uma decisão judicial da Suprema Corte em que ocorreu uma interpretação extensiva do artigo 1.723, do Código Civil, deve ser observada em todos os Tribunais brasileiros.

Considerado um julgamento histórico, tendo em vista o reconhecimento de direitos de um grupo que há anos sofre discriminação devido às suas escolhas sexuais, os casais homoafetivos passaram a ser reconhecidos como entidade familiar e receberam do Estado toda a tutela protetiva dada aos casais heterossexuais, com isso, os direitos sucessórios homoafetivos foram equiparados aos direitos sucessórios dos casais heterossexuais que vivem em união estável.

Com isso o disposto no artigo 1.790, do Código Civil, que dispõe sobre direitos sucessórios, passou a reger as uniões homoafetivas.

Diz o artigo 1.790, do Código Civil, in verbis:

A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

A análise do artigo supracitado depreende que o companheiro sobrevivente participará da sucessão do companheiro de cujus no que tangem aos bens adquiridos de forma onerosa durante o tempo do relacionamento homoafetivo, porém havendo descendente, ascendentes ou parentes sucessíveis do falecidos, como ele concorrerá, nesta hipótese aplicando ao caso o artigo 1.823, do Código Civil, que dispõe que os descendentes em grau mais próximo excluem os mais remotos, ressalvando-se o direito de representação.

O artigo 1.790, do Código Civil não dispõe sobre o direito do companheiro sobrevivente quanto aos bem particulares do de cujus, além disso, o regime de bens adotado pela união estável é o da comunhão parcial de bens, ou seja, o companheiro sobrevivente não tem direito aos bens adquiridos anteriormente ao início da união homoafetiva.

Outra questão não tratada pelo artigo 1.790, do CC/2002 é com relação a filiação híbrida, porém a solução dada pela doutrina é considera-los como filhos comuns e com isso, o companheiro sobrevivente teria o direito a receber uma porção equivalente a cada filho comum.

Entretanto, a doutrina também tem considerado reconhecer a filiação híbrida como filhos exclusivos do de cujus e, com isso, o companheiro sobrevivente teria direito a metade do que cada filho receberia, aplicando o inciso II, do artigo 1.790, do CC/2002.

A norma contida no referido inciso II revela diferenças entre direitos dos cônjuges e dos companheiros sobreviventes, sendo que para aqueles há a garantia do quinhão igual ao que couber cada filho exclusivo do de cujus, enquanto para estes a garantia não existe.

O inciso III, do artigo 1.790, do CC/2002 preceitua que o companheiro sobrevivente terá que concorrer os parentes sucessíveis até o quarto grau do de cujus, caso este não tenha deixado descendentes.

Já o inciso IV prevê que o companheiro sobrevivente somente herdará a totalidade dos bens deixado pelo falecido caso não existam parentes sucessíveis, como irmãos, tios, primos, tios-avós, sobrinhos-netos, pois, ao contrário dos cônjuges, os companheiros ocupam a última classe hereditária.

É importante destacar a lição de Maria Berenice DIAS[34],

A discriminação feita aos companheiros estende-se a ordem de vocação hereditária, onde o cônjuge é herdeiro necessário, figurando no terceiro lugar, enquanto o companheiro figura como herdeiro legítimo, obtendo a última posição, depois dos colaterais de quarto grau.

Face ao tratamento diferenciado dado pelo legislador ordinário há muitos debates nos tribunais, pois ora o companheiro foi favorecido, ora teve prejuízos, isso é observado quando concorre com o colateral de segundo grau de cujus, em que fica apenas com um terço da herança, enquanto o irmão fica com dois terços.

Tendo em vista que o companheiro homoafetivo ocupa a última classe hereditária, em que pese divergências sobre o assunto, já há jurisprudência no sentido de permitir a conversão em casamento das uniões homoafetivivas, garantindo ao companheiro sobrevivente a condição de herdeiro necessário.

Sobre a autora
Priscilla Pintor Ribeiro Pinto Deziderio

Servidora pública federal; Especialista em direito material e processual do trabalho pela pontifícia universidade católica de minas gerais - mg; Especialista em direito constitucional, direito civil e direito processual civil pela unesa - rj; Advogada;

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

ARTIGO APRESENTADO À BANCA EXAMINADORA DA UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ COMO CONDIÇÃO PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL.

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