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Aborto: criminalizar ou legalizar?

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Agenda 11/04/2019 às 17:35

Com a aplicação do Código Penal no que tange à criminalização do aborto, analisa-se que o legislador deu prioridade à vida intrauterina que está em desenvolvimento, levando em conta a saúde da mãe somente quando a gravidez afetar sua saúde.

Resumo: A legalização e a criminalização do aborto suscitam diversas reflexões cotidianas relacionadas a questões morais, religiosas e sociais ligadas a esta prática. A interrupção intencional de uma gravidez traz à tona dois conflitos: a interrupção de uma pré-vida intrauterina que não irá mais se desenvolver, e a pós-vida de uma mulher que, por questões econômicas ou pessoais, não deseja ter um filho. Diante disso, cada Estado tratou de incluir em sua legislação a questão do aborto, legalizando-o ou reprimindo, a depender da situação em que a gravidez ocorreu. No Brasil o aborto induzido provocado com ou sem o consentimento da gestante é tipificado no Código Penal em vigência, punindo os agentes causadores da interrupção da gravidez. Porém, a legislação brasileira permite que a gravidez seja interrompida em algumas hipóteses como, por exemplo, quando o feto for anencefálico ou a fecundação ocorrer através de estupro. 

Palavras chave: Direitos fundamentais. Liberdade de escolha. Vida intrauterina. Estado Laico.


INTRODUÇÃO

O direito à vida está previsto Constituição Federal de 1988, garantindo através do seu Artigo 5º a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. Neste viés, o aborto induzido é considerado crime tipificado no Código Penal Brasileiro com a finalidade de proteger a vida humana intrauterina que está se desenvolvendo e, em alguns casos, protege também a vida e a integridade física da gestante.

Considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a consequente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intrauterina. Não faz parte do conceito de aborto a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses). (CAPEZ, 2012, p. 143-144).

Ainda em relação à conceituação de aborto, temos a visão do autor Nolasco (2012), o qual entende por aborto “a interrupção da gestação ocorrida dentro de um lapso de tempo predeterminado”. O tempo da gestação é importante para conceituar o aborto, visto que este autor considera que o aborto ocorre quando há a interrupção da gravidez até a vigésima semana, com expulsão parcial ou total dos produtos da fecundação. Já no âmbito jurídico brasileiro, o tempo de gestação não é considerado quando se trata do crime do aborto.

Diante disso, o presente artigo tem como tema central a criminalização do aborto na defesa da vida intrauterina face à legalização do aborto em virtude da saúde física e psíquica da mulher que tem uma gravidez indesejada.

Neste sentido, busca-se responder a seguinte problemática: Até que ponto o aborto pode ser considerado inconstitucional e criminoso, sem ferir o princípio da dignidade da pessoa humana e do livre desenvolvimento da personalidade e da liberdade da mulher?

Assim, através da metodologia de pesquisa bibliográfica para a elaboração deste artigo, será buscada a opinião dos doutrinadores que tratam do assunto, além do método dedutivo embasado nos artigos, súmulas e jurisprudências sobre o aborto induzido. Além disso, será feita análise documental em relação à legislação vigente no país, principalmente na Constituição Federal de 1988 e o Código Penal de 1940, a fim de comparar as interpretações doutrinárias a respeito das referidas leis.

Este trabalho justifica-se devido à importância do conhecimento deste tema para o acadêmico de direito, posto que seja grande a divergência doutrinária a respeito do aborto; pois, apesar das decisões dos Tribunais serem pautadas no direito fundamental à vida ainda que em desenvolvimento, o legislador não pode ser omisso ao fato de que a liberdade e a assistência à saúde também são direitos constitucionais garantidos a mulher.

Ainda, tem como objetivo geral de obter conhecimento sobre a tratativa da questão do aborto no Brasil e a realidade enfrentada pelas mulheres que desejam interromper uma gravidez indesejada.

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Para tanto, há que se aprofundar mais a respeito do tema em questão. Portanto, o referido artigo busca responder aos seguintes objetivos específicos: Demonstrar as hipóteses legais permissivas ao aborto na legislação brasileira; analisar como o aborto induzido é tratado em outros países; abordar os casos de aborto no Brasil através de números apontados em recentes pesquisas; estudar os conflitos existentes nos direitos constitucionais garantidos à vida intrauterina e a liberdade e saúde da mulher; verificar alguns preceitos religiosos perante a legalização do aborto; comparar as divergências e convergências doutrinárias sobre o tema; pesquisar sobre as autoridades e projetos de leis que defendem que o aborto seja legalizado, ou que lutam pela permanência do aborto induzido como crime.


2 A LEGALIZAÇÃO E A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO 

A interrupção de uma gravidez intencionalmente provocada pela própria gestante ou a seu pedido, é tratada pela maioria das legislações de cada país, de formas distintas. O aborto, na maioria das vezes, é moralmente mal visto pela sociedade e pela Igreja, pois ao interromper-se uma gravidez, impede-se que uma vida seja gerada. De acordo com Mano (2010), “há países que proíbem completamente, como é o caso de algumas nações no mundo islâmico e na América Latina, e outros que abriram certos precedentes, como em casos de anencefalia do feto”.

No Brasil, o aborto é considerado crime pela nossa legislação por ser contrário ao direito à vida, previsto no Art. 5º da Constituição Federal de 1988. De acordo com Capez (2012, p. 147), apesar do óvulo fecundado ainda não ter se fixado na parede uterina e ainda não ter iniciado o seu desenvolvimento, a vida já existe, por já ter sido gerada pela fertilização do óvulo e, desse momento em diante pode haver aborto. Diante desta tratativa, a criminalização do aborto objetiva a proteção à vida intrauterina, e a diminuição dos riscos à saúde da mulher que muitas vezes interrompe a gravidez de maneira arriscada e clandestina. 

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ABORTO NO BRASIL

A prática do aborto nem sempre foi considerada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Conforme Pereira e Silva (2015, p. 18), quando o Brasil ainda era colônia de Portugal o aborto era condenado e repudiado pelos interesses religiosos, políticos, econômicos e sociais da época, buscando sempre atender os preceitos da Igreja Católica.

Como o crime do aborto não era positivado naquela época, não havia um tipo penal punitivo para a sua prática. “Na época associava-se a prática à maternidade e ao casamento, de forma que quem o praticava sofria punições morais e religiosas severas por parte da Igreja, associando à mulher uma vida sexual desregrada e ilegítima”, aponta Pereira e Silva (2015 p. 19-20).

O Código Criminal do Império passou a prever em 1830 o crime do aborto quando cometido por terceiro, porém não previa a interrupção da gravidez quando praticada pela própria gestante. Neste caso, o bem jurídico não era a vida em si, mas a segurança da mulher. De acordo com Pereira e Silva (2015, p. 21), o aborto e a punição para a mulher em relação a sua prática foram incorporados no Direito Penal Brasileiro no século XIX quando o Brasil se tornou República, tipificando inclusive a noção de aborto legal ou necessário com a intensão de salvar a vida da gestante.

Em 1940, foi editado o Código Penal Brasileiro, que tipificou a prática do aborto como crime contra a vida e, seguindo a evolução histórica do aludido crime, previu o auto-aborto, o aborto praticado por terceiro, consentido ou não, além de abarcar a questão de aumento de pena se causar lesão corporal ou a morte da gestante e do aborto legal no caso de risco à vida da gestante e gravidez resultante de violação sexual. (PEREIRA, T.S., SILVA, M.P., 2015, p. 21-22).

Atualmente, o Código Penal Brasileiro em vigência, promulgado através do Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, tipifica o aborto como crime quando este for praticado pela própria gestante, a seu pedido ou com o seu consentimento. Nos artigos 124 a 128 do referido código, o aborto é tratado aplicando-se a tal ato pena de detenção de um a três anos para quem provocar o aborto em si ou consentir que outro lhe provoque. Caso a interrupção da gravidez seja provocada sem o consentimento da gestante (em decorrência de lesão corporal praticada por outrem) a pena é de reclusão de três a dez anos.

Além dessas três tipificações que criminalizam a prática do aborto, o Código Penal em vigência permite este ato de forma legal nas seguintes hipóteses taxadas no Art. 128 da referida legislação: quando o aborto é necessário, se não há outro meio de salvar a vida da gestante; ou quando a gravidez resultar de estupro, e for autorizado pela própria gestante ou por seu representante legal, “nesse caso, autoriza-se o aborto por entender que a mulher não está obrigada a prosseguir a gravidez resultante de violência sexual, além de se levar em conta as más características do estuprador”, apontam Pereira e Silva (2015, p. 27).

Em 2012 o STF, através da ADPF 54/DF, considerou constitucional o aborto quando realizado pelo motivo de o feto possuir anencefalia. Segundo Souza e Gomes (2010, p.111), “a anencefalia é a denominação utilizada para caracterizar uma má formação fetal do cérebro, que na maioria das vezes é ocasionada por ausência ou deficiência de ácido fólico durante o início da gestação”. De acordo com os autores, a característica da anencefalia é “a ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana”. Nestes casos, o feto geralmente não sobrevive por muitas horas após o parto, visto que o cérebro é essencial para as funções vitais do ser humano.

A interrupção da gravidez muitas vezes é realizada por terceiros a pedido da gestante. Existem no Brasil e no mundo, clínicas clandestinas especializadas no aborto, e que ainda estão em funcionamento por, em tese, as autoridades policiais não terem conhecimento das mesmas.

No aborto praticado por terceiro com o consentimento da gestante temos condutas autônomas – a da gestante que querendo interromper a gestação procura a pessoa que realizará o procedimento e se submete voluntariamente a este; e a conduta do terceiro que, com o consentimento da gestante, realiza o procedimento. A conjunção dessas condutas autônomas resulta na morte do nascituro (ROSA, E.M., 2014).

Nestes casos, quando a grávida consente na interrupção da gravidez, o Código Penal em vigência é bem claro em relação à participação de terceiros no crime:

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

2.2 A PREVISÃO DO ABORTO EM OUTROS PAÍSES 

A partir da década de 60 com o processo de emancipação da mulher e o avanço na laicização dos Estados, desencadearam uma tendência em relação à criação de leis que falem sobre o aborto, conforme aponta Sarmento (2005). À medida que os legisladores foram se adaptando, as normas foram se diferenciando de um país para o outro de acordo com os princípios e costumes de cada lugar. É importante ressaltar que inúmeros Estados modificaram nas últimas décadas suas leis em relação ao aborto, posto que o Direito deve acompanhar as mudanças no contexto histórico.

A sexualidade sempre deu base para limitações jurídicas sobre o corpo. Segundo Vianna (2014, p. 01), no passado a fornicação (o relacionamento sexual de uma pessoa solteira) era tratada com rigor pela Igreja, e punida severamente.

O aborto não é crime na maioria esmagadora dos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, se uma mulher desejar interromper uma gravidez por questões socioeconômicas poderá fazê-lo sem maiores riscos para sua saúde em um hospital, de forma plenamente legal. (VIANNA, 2014, p. 34).

Os Estados Unidos é um dos países que não regula diretamente o aborto na sua Constituição, e, segundo Sarmento (2005), seus últimos pareceres foram favoráveis à ideia de que o Estado não deve estar obrigado a realizar abortos na rede pública de saúde ou a arcar com os respectivos custos, mesmo nos casos de mulheres carentes ou incapazes de suportar os prejuízos econômicos relacionados aos procedimentos médicos necessários.

Tal entendimento, é bom que se registre, deve-se não a qualquer problemática específica atinente ao aborto, mas sim à visão dominante nos Estados Unidos, de que os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos são exclusivamente direitos de defesa contra o Estado, que não conferem ao cidadão a possibilidade de reclamar prestações positivas dos poderes públicos em seu favor (SARMENTO, 2005).

A Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de Portugal elaborou parecer em 2006 a respeito das punições aplicadas diferentemente para o Aborto e para o Homicídio:

O fato de não serem punidos nos mesmos termos o aborto e o homicídio [...] significa que para a nossa ordem jurídica não tem o mesmo valor a vida intra-uterina e a vida depois do nascimento, sendo que, por isso, o princípio da inviolabilidade da vida humana pode, no que se refere a primeira, ceder perante outros valores.

Na França, a iniciativa de legalizar o aborto partiu do legislador. Segundo Sarmento (2005) em 1975 o Conselho de Estado deste país adotou o princípio de que a vida já existe antes do nascimento, porém o direito correlativo que a garante não deve ser absoluto. Já em 2001, o autor cita que este país promulgou a Lei 2001-588, a qual ampliou o prazo de interrupção da gravidez de 10 para 12 semanas, tornando facultativo para as mulheres adultas a prévia consulta em estabelecimentos e instituições de aconselhamento. A lei ainda dita que em 12 semanas a gravidez pode ser interrompida quando a gestante se encontrar em situação de angústia, levando em conta a salvaguarda da pessoa humana contra toda forma de degradação (Constituição Francesa), e a liberdade da mulher (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão Francês).

Já na Itália, o entendimento é de nos primeiros 90 dias da gravidez a gestante poder solicitar a realização do aborto. De acordo com Sarmento (2005), esta solicitação só pode ocorrer nas seguintes hipóteses: a) risco à saúde física ou psíquica; b) comprometimento das condições econômicas, sociais ou familiares; c) em razão das circunstâncias em que houve a concepção; d) em casos de má formação do feto. Mesmo assim, o autor ressalta que a Corte Italiana adota a ideia de que antes de realizar o aborto em uma destas situações, as autoridades sanitárias e sociais devem conversar com a gestante e com o pai do feto as possíveis soluções para o conflito que não seja a interrupção da gravidez, além de estabelecer um prazo de 07 dias entre a data da solicitação e a realização do aborto para incentivar a reflexão da gestante (Sarmento, 2005).

Na Alemanha, em 1995, descriminalizou-se o aborto quando gravidez interrompida nas primeiras semanas de gestação, além das hipóteses previstas na legislação alemã, em casos especiais em que a continuidade da gravidez representasse ônus excessivo para a gestante. Conforme Sarmento (2005), “a lei estabeleceu um procedimento pelo qual a mulher que queira praticar o aborto deve recorrer a um serviço de aconselhamento, que tentará convencê-la a levar a termo a gravidez”. Ressalta o autor que, depois disso, há um intervalo de três dias que ela deve esperar para, só então, submeter-se ao aborto através de um procedimento médico.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Victor Hugo Gomes. Aborto: criminalizar ou legalizar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5762, 11 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72272. Acesso em: 22 nov. 2024.

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