3 O ABORTO FACE AOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Com a descriminalização do aborto, busca-se o reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais da mulher, de maneira a garantir-lhe escolher se vai prosseguir ou não com a gravidez sem a interferência do Estado. Segundo Pereira e Silva (2015, p. 37), desta forma, reconhece-se a superioridade dos direitos da mulher em relação à vida intrauterina como forma de exercer sua autonomia e a sua liberdade no que tange ao desenvolvimento de sua personalidade. “Considera que o Estado, ao criminalizar o aborto, viola à dignidade da mulher, sujeitando-a a uma espécie de escravidão”, defende os autores.
Os direitos reprodutivos da mulher devem ser respeitados, pois a mulher é responsável por suas escolhas e as consequências que as mesmas a trazem. Nascimento Filho (2013, p. 49) ressalta que os direitos reprodutivos são aqueles direitos básicos relacionados ao livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, defendendo que somente a mulher é quem arca com as consequências e suporta o ônus da decisão entre a gravidez e a contracepção, devendo o Estado assumir e reconhecer os direitos sexuais e reprodutivos da mulher garantindo sua autonomia, autodeterminação e dignidade.
3.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A LIBERDADE DE ESCOLHA
O direito ao próprio corpo ainda não foi, de certa forma, conquistado e reconhecido como um direito fundamental da pessoa humana, pois as normas que limitam a autonomia dos corpos, à sexualidade, o uso de drogas psicotrópicas, à liberdade de expressão e até mesmo à vida e à morte estão por toda parte. De acordo com Vianna (2014, p. 01), estas normas regulam a utilização dos corpos, mas não evitam que o direito alheio seja lesado, pois somente impõem um modelo de conduta que consideram como adequado.
A atual discussão sobre a criminalização do aborto tem seu impasse no direito ou não da gestante abortar confrontado com o direito ou não de a gestante ter auxílio médico para praticar esse ato. Já a liberdade individual deve ser limitada se o exercício de certa autonomia provocar dano à outra pessoa. Assim, os maiores absolutamente capazes são livres para dispor de seus próprios corpos desde que suas ações não prejudiquem alguém. De acordo com Pereira e Silva (2015, p. 31):
Os que defendem a descriminalização do aborto têm como pilar basilar de sua fundamentação o reconhecimento do direito à liberdade sexual e reprodutiva da mulher, com o objetivo de estabelecer uma forma onde a mulher possa exercer o controle sobre o seu corpo e ter autonomia para decidir se mantem ou não uma gravidez, seja por questões do seu planejamento reprodutivo e familiar, seja por questões econômicas ou pelo feto ter anomalias.
O princípio da dignidade da pessoa humana é constitucional e incorpora ao mundo jurídico valores morais e políticos. Este princípio passa a integrar parte dos direitos fundamentais, sendo essencial para regras que incidam sobre normas concretas, tornando-se um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental, passando a ser adotado de diversas formas na solução de conflitos (PEREIRA E SILVA, 2015, p. 31). O termo mais utilizado desde quando o Código Civil de 2002 entrou em vigência é a “Dignidade da Pessoa Humana”. Abordada por muitos doutrinadores e juristas, a ideia de dignidade da pessoa humana tem sido frequentemente utilizada pelos litisconsortes quando estão em disputa questões controvertidas moralmente, como o aborto, suicídio assistido ou pesquisas de células-tronco embrionárias (BARROSO, 2013, p. 272-273).
Desta forma, o mesmo princípio da dignidade da pessoa humana invocado para legalização do aborto em favor da mulher que tem direito a uma vida digna da forma que a mesma escolher, também pode ser chamado para preservação da vida intrauterina. Segundo Pereira e Silva (2015, p. 32), este princípio deve ser considerado em duas dimensões: a primeira, que se refere aos direitos individuais em relação aos valores de proteção à vida, à liberdade e a igualdade jurídica, protegendo o indivíduo perante o Estado; e na segunda vertente, têm-se os direitos sociais e econômicos no que se refere a prestação de saúde pelo Estado.
Todos eles retomam o fim existencial de cada ser, os valores que lhes são assegurados para existir e viver sua condição de pessoa de forma digna, trazendo para o plano jurídico a observância de três patamares essenciais para existência da dignidade, quais sejam: o valor intrínseco da pessoa humana; a autonomia individual e; como balança do exercício de cada um, o limite imposto pelo valor comunitário. (PEREIRA E SILVA, 2015, p. 32).
Partindo deste princípio, a criminalização do aborto pode ser considerada uma forma de violação da liberdade e da dignidade da mulher, uma vez que a mesma não pode se dispor livremente de sua autonomia para exercer seu direito à vida, à igualdade, à integridade física, moral e psíquica. Souza e Gomes (2010) ressaltam que:
O Estado ao impedir que a gestante interrompa a gestação, nos casos específicos de anencefalia, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, por impor a esta a compulsoriedade de carregar um filho por nove meses em seu ventre, mesmo sendo sabidamente inviável a vida extrauterina do feto, do ponto de vista médico, culminando com o abalo físico e psicológico da mãe, além de trazê-la também o risco de morte. (GOMES, S.P.M.; SOUZA, J.F.S., 2010, p. 113).
3.2 O ABORTO EM RELAÇÃO À RELIGIÃO E AO ESTADO LAICO
A atual Constituição Brasileira de 1988 dá a este Estado caráter laico, garantindo expressamente a liberdade de crença, de cultos e de organização religiosa, conforme disposto em seu Art. 5º, VI. Ainda, estabelece a separação entre estado e religião no seu Art. 19, I:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
VI - e inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; [...]
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
O aborto já é legalizado em alguns países da Europa e dos Estados Americanos, que não sofrem tanto com a influência religiosa em suas legislações. “No Brasil, por uma nítida influência religiosa, criou-se a ficção jurídica de que o embrião não é parte do corpo da mãe, pois já teria direitos a serem reconhecidos a partir da concepção” (VIANNA, 2014, p. 03).
A defesa da provida é composta, em sua grande maioria, por religiosos ou cristãos que defendem a vida como fundamento universal. Pereira e Silva (2015, p. 35) apontam que, a partir desse princípio, entende-se que a vida é um direito fundamental não disponível e sua valoração deve ser preservada em detrimento de outros direitos e princípios fundamentais.
A doutrina da Igreja Católica sistematiza quatro pontos em relação ao aborto [...]: a) a suspensão voluntária da vida é algo ilegítimo e imoral [...]; b) fere de forma grave o mandamento de Deus, “não matarás”; c) a vida deve ser absolutamente respeitada e protegida desta concepção; d) aplica a excomungação de quem defende, pratica e auxilia o aborto. (PEREIRA e SILVA, 2015, p. 35).
Além disso, esta ideia é sustentada e reforçada pelo fato de o Código Civil assegurar em seu Artigo 2º que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, tornando o aborto inconcebível inclusive nas hipóteses consideradas legais pelo Código Penal vigente.
Em 2013 foi realizada pelo Instituto ANIS (Instituto Brasileiro de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) uma Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), com o intuito de identificar a incidência de aborto entre mulheres de diferentes idades, condições sociais e religiões. Conforme apontam Diniz e Medeiros (2013), a respeito do incide de aborto entre mulheres de religiões diferentes:
Não foi observada nenhuma diferença significativa entre grupos religiosos, estando boa parte das variações observadas dentro das margens de erro da pesquisa. Como a PNA reflete a composição religiosa das mulheres urbanas brasileiras, pouco menos de dois terços das mulheres que fizeram aborto são católicas, um quarto é protestantes ou evangélicas, e menos de um vigésimo, de outras religiões. Cerca de um décimo não respondeu ou não possui religião. (DINIZ E MEDEIROS, 2013, p. 963).
Em 2015, a Igreja Católica que sempre repudiou o aborto devido aos preceitos de que a gravidez deve acontecer após o matrimônio, falou sobre o assunto por intermédio do seu líder mundial, Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco). Segundo Ribeiro (2015), o líder católico concedeu através de carta oficial aos padres de todo o mundo, o direito de perdão às mulheres que praticam o ato do aborto alegando conhecer bem as condições que levam muitas a tomar esta decisão, e que as mesmas devem ser acolhidas genuinamente.
3.3 O DIREITO À SAÚDE DA GESTANTE
A saúde é um bem jurídico tutelado e garantido pela Constituição Federal de 88, conforme dispõe o artigo 196: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Quando a interrupção de uma gravidez é realizada de maneira a prejudicar a saúde da gestante, a mesma recorre aos serviços básicos de saúde para tratar das consequências clínicas deste aborto. Nos casos em que desta gravidez resultar um feto anencefálico, ou seja, com má formação no cérebro, a gestante recorria ao judiciário para que o mesmo autorizasse a realização legal da interrupção da gravidez, para que a mesma não precisasse arcar com todas as consequências de uma gravidez arriscada cujo fruto não sobreviveria por muito tempo após o parto.
Neste sentido de resguardar o direito à saúde da gestante garantido constitucionalmente, o Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 12 de abril de 2012 que não pratica crime de aborto (tipificado no nosso Código Penal) a mulher que optar pela “antecipação do parto” em caso de gravidez de feto anencefálico. Conforme aponta Souza e Gomes (2010, p. 113-114):
Levar a gestação de feto anencefálico até o fim é um risco para a saúde da gestante, não só no âmbito físico, mas também psicológico e farmacológico, por aumentar sensivelmente os riscos de polidrâmnio, hipertensão, atonia no pós-parto, hemorragia, riscos de morte, além do sofrimento cruel e desnecessário a que é submetida à mãe durante 09 meses de uma gestação sabidamente inviável, podendo propiciar um quadro depressivo na mãe, o que é muito comum.