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O dever de fundamentação das decisões judiciais no âmbito dos juizados especiais: uma análise à luz do novo modelo processual brasileiro

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2 NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO: A MUDANÇA DE PARADIGMA DO (NEO)PROCESSUALISMO

O novo Código de Processo Civil (CPC/15), vigente no país desde 18 de março de 2016, rompeu com diversas características conhecidas do Código de Processo Civil de 1973, e provocou no ordenamento processual brasileiro uma verdadeira mudança de paradigma na maneira de se aplicar, ordenar, interpretar, e até mesmo estudar o direito processual civil.

Entre outras medidas, abandonou-se o formalismo excessivo para dar lugar à flexibilização dos procedimentos, adotou-se o modelo colaborativo e participativo de condução do processo, instituiu-se a faculdade de estabelecimento de convenções procedimentais pelas partes, extinguiu-se alguns incidentes processuais antes existentes concentrando-se a discussão de determinadas matérias e questões processuais em um menor número de atos, promoveu-se o sincretismo processual, reformou-se a carta de procedimentos especiais, enfim, diversas alterações de ordem procedimental, metodológica e interpretativa do processo como um todo foram feitas no Novo Código.

Contudo, a mais importante das mudanças por ele provocadas é a de paradigma, destacada pelo próprio Código no primeiro capítulo de seu primeiro livro, denominado "Das Normas Fundamentais do Processo Civil", e em seu artigo 1o6, mudança esta chamada de constitucionalização do processo.

Denomina-se constitucionalização do processo o fenômeno da ciência jurídica pelo qual se entende que a criação, aplicação e interpretação das normas processuais civis partem, antes da necessidade de regular um procedimento em si, da necessidade de se atender os fins da própria Constituição Federal, de maneira a se pensar o processo como um instrumento concebido para, além de resolver integralmente os litígios sociais, garantir a efetivação dos direitos e garantias fundamentais nela previstos e dela decorrentes, e não como um fim em si mesmo, primando então pela Justiça, pela pacificação social e pela efetividade dos princípios constitucionais processuais e humanísticos.

Amolda-se bem à noção de constitucionalização do processo a lição dos professores Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sergio Arenhart quando estes afirmam que o processo civil é estruturado a partir dos direitos fundamentais e que, em razão disso, o Código de Processo Civil constitui um direito constitucional aplicado (2017, p. 153)

E esta é, inegavelmente, dentre outras, uma das lições primordiais a serem extraídas do texto do artigo 1o do novel Código, que é posicionar a Constituição da República como uma lupa de aumento a ser utilizada pelo operador do direito para interpretar e aplicar as normas processuais, e, ao mesmo tempo, como bússola indicativa da direção correta desta interpretação: o norte constitucional.

A necessidade de constitucionalização do processo funda-se na própria concepção neoconstitucionalista de estatuir a Constituição e os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana como eixo de gravidade de todo o ordenamento jurídico do Estado, de onde devem se irradiar e à luz do qual se deve interpretar todas as demais normas jurídicas.

Estando a Constituição e os direitos e garantias fundamentais no centro do ordenamento jurídico do Estado, certo é que todas as demais normas existentes devem a ela respeito e por ela devem ser filtradas, e as normas posteriores terem nela sua premissa de aplicação e interpretação. É o que acontece com o atual Código, que estabelece um direito processual constitucional, abandona a visão privatística do processo e dá normatividade a este movimento de constitucionalização do processo a partir de uma visão publicística do mesmo (por ser um instrumento que também visa fins públicos, como os direitos e garantias fundamentais), movimento também denominado de neoprocessualismo (CAMBI, 2008, p. 113 – 115) ou de modelo constitucional de direito processual civil (BUENO, 2008, p. 261).


3 A NORMA DO ARTIGO 489, § 1º, DO CPC/15: INSTRUMENTALIZAÇÃO DO DEVER CONSTITUCIONAL DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

Tendo como pedras de toque a constitucionalização do processo civil, o neoprocessualismo e a efetivação dos direitos e garantias fundamentais (materiais e processuais), o novo Código de Processo Civil, no que se refere à fundamentação das decisões judiciais, trouxe na Seção III de seu Capítulo XIII (Da Sentença e da Coisa Julgada), especificamente no § 1o do artigo 489, a maior das novidades sobre o tema em questão, ao prever para todos os provimentos judiciais com conteúdo decisório – decisões interlocutórias, sentenças ou acórdãos – um rol de hipóteses em que os mesmos não serão considerados fundamentados, rol inexistente no Código de Processo Civil de 1973.

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Este dispositivo do CPC/15 deve ser considerado, antes de tudo, como um instrumento de introdução da norma constitucional contida do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, no seio do processo civil do mundo empírico, dos fatos, da realidade forense. Um mecanismo de estruturação, organização e aplicação do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais nos fóruns e tribunais.

Isto porque, anteriormente à vigência do novo Código, tinha-se o postulado do dever de fundamentação das decisões judiciais estampado na Constituição, mas, juntamente, tinha-se o indagamento: em que medida devem ser fundamentadas todas as decisões judiciais de que trata o inciso IX do artigo 93? Até onde vai este dever e quais os parâmetros objetivos para se considerar fundamentada ou não determinado provimento jurisdicional?

Certamente o trabalho de responder a estes questionamentos recaía sobre a doutrina e a jurisprudência, que, por mais louváveis que tenham se mostrado no desempenho desta árdua tarefa, inevitavelmente sempre deixaram margens para posteriores e infindáveis discussões baseadas em estudos e questionamentos de entendimento em sentido diverso. Por se tratar de fonte secundária do Direito, o subjetivismo na doutrina sempre foi inevitável, justamente por se basear em opiniões, obviamente fundamentadas, mas baseadas nos estudos e entendimentos dos respectivos autores.

Sendo assim, com a entrada em vigor do Novo Código e de sua regra do § 1o de seu artigo 489, se pôde então observar a fixação de critérios objetivos para o entendimento do que seria uma decisão devidamente fundamentada, através de uma interpretação contrario sensu (sabendo quando não se considera fundamentada uma decisão judicial, sabe-se quando a mesma o é), conferindo-se concretude ao mandamento constitucional acima referido e garantindo um padrão mínimo de extensão e qualidade da fundamentação dos decisum jurisdicionais.

Ademais, em um segundo momento, o mencionado dispositivo processual pode ser entendido também como uma ferramenta otimizada de controle dos atos jurisdicionais do Estado, pois torna mais tangível e alcançável esta possibilidade de controle (pelos jurisdicionados e pelo próprio Judiciário) ao indicar expressamente alguns exemplos de hipóteses em que as decisões judiciais não se consideram fundamentadas, e, portanto, nulas, preenchendo a lacuna legislativa que dava espaço a inúmeras interpretações divergentes sobre a percepção do que é e do que não é uma decisão fundamentada (e consequentemente uma decisão nula ou válida), na medida em que o texto constitucional afirmava o dever de fundamentação "sob pena de nulidade" (art. 93, inciso IX) mas não fixava objetivamente parâmetros para reconhecimento desta nulidade, decorrente de falta de fundamentação (SILVA, 2013, p. 195).

As hipóteses previstas no § 1o do artigo 489 do Código de Processo Civil são: i) decisão que se limita a indicar, reproduzir ou parafrasear ato normativo, sem explicar sua relação com a causa; ii) decisão que emprega conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso concreto; iii) decisão que invoca motivos que se prestam a justificar qualquer outra decisão; iv) decisão que não enfrenta todos os argumentos deduzidos pelas partes no processo, capazes de infirmar a conclusão adotada pelo juiz; v) decisão que se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula sem identificar seus fundamentos determinantes ou sem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta aos mesmos; vi) decisão que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Deve-se registrar, oportunamente, que o dispositivo em comento apresenta rol exemplificativo, e não taxativo. Afinal, se tais previsões legais visam concretizar o direito fundamental de motivação das decisões judiciais, o rol não poderia, por esta razão, ser considerado taxativo (DIDIER JÚNIOR et al., 2016, p. 335), sob pena de estrangular a eficácia da norma constitucional impositiva do dever de fundamentação.


4 O PROCEDIMENTO ESPECIAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E A PROBLEMÁTICA DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

Previstos originariamente pela Constituição Federal em seu artigo 98, inciso I7, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais foram instituídos no âmbito dos Estados por meio da Lei 9.099/95. Posteriormente, no âmbito da União, foram instituídos os Juizados Especiais Federais e, oito anos depois, foram criados também os Juizados Especiais da Fazenda Pública, no âmbito dos Estados, por meio das Leis 10.259/01 e 12.153/09, respectivamente.

O Juizado Especial Cível, sobre o qual se debruça o presente estudo, é um órgão do Poder Judiciário que compõe o ramo da Justiça Comum Estadual, com competência constitucionalmente prevista para conciliar, julgar e executar as causas cíveis de menor complexidade.

No plano infraconstitucional, o legislador, regulamentando o dispositivo constitucional, definiu no artigo 3o da Lei 9.099/95, como de menor complexidade, as causas: i) cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo, ii) as causas enumeradas no artigo 275, inciso II, do CPC/73, iii) a ação de despejo para uso próprio e iv) as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente a quarenta vezes o salário mínimo. Tem-se aí dois critérios de competência: o material e o em razão do valor da causa.

O parágrafo segundo do artigo 3o8 e os artigos 4o9 e 8o, caput e parágrafo primeiro10, da Lei em comento, estabelecem, ainda, mais três critérios de fixação da competência dos Juizados Cíveis: material negativo, territorial e pessoal negativo, respectivamente. Porém, o que interessa ao presente estudo é a competência material e em razão do valor da causa, especialmente no viés "menor complexidade" explicitado na Constituição e na própria Lei 9.099/95, e o procedimento especial instituído por esta Lei para os processos de sua competência.

O "rito sumaríssimo" dos Juizados Especiais Cíveis, como era chamado anteriormente ao CPC/15, nada mais é do que um procedimento especial de jurisdição contenciosa que, partindo da premissa de atender ao fim de solucionar demandas mais simplórias, corriqueiras e de baixo valor, tem como objetivo, em tese, desafogar as varas cíveis dos fóruns do Poder Judiciário e dar vazão a estas demandas mais simples, fundadas em conflitos rotineiros da vida comum, que, exatamente por esta razão, demandam uma instrução muito mais simples e merecem um julgamento mais célere, muitas vezes desnecessário ante a política de conciliação e solução consensual de conflitos estimulada pelo Poder Público, escoimando de tais demandas a morosidade causada pelo rigor processual a que se sujeitavam as causas do antigo rito ordinário ou sumário (hoje procedimento comum) que tramitam nestas varas comuns.

Ou seja, buscou-se otimizar o esforço intelectual dispendido pelo magistrado na solução de causas complexas ou normais de alto valor, tramitantes nas varas cíveis comuns, e ampliar o acesso à Justiça e a solução consensual dos litígios das demandas comezinhas em maior escala e em tempo compatível com a parca causa de pedir, visando sempre a conciliação.

4.1 A SUPOSTA INCOMPATIBILIDADE ENTRE A LEI 9.099/95 E O CPC/15

Conforme se pôde concluir, o procedimento especial dos Juizados Especiais Cíveis tem como fundamento o atendimento e solução das demandas cíveis de baixa complexidade, e, para tanto, elenca como seus critérios, no artigo 2o da Lei 9.099/95, a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade e busca pela conciliação ou transação. Estes critérios são também reconhecidos pela doutrina como princípios informadores dos Juizados Especiais (AURELLI e PANTALEÃO, 2015, p. 269-270).

E é neste diapasão, tendo como plano de fundo estes princípios regentes do procedimento especial dos Juizados Especiais, é que surge toda a problemática inicialmente explanada, referente à aplicação da norma de fundamentação das decisões judiciais prevista no artigo 489, § 1o, do novo Código de Processo Civil, às decisões proferidas no procedimento especial dos Juizados, especialmente à sentença.

Isto porque parcela de operadores do Direito, incluindo magistrados integrantes de fóruns e congressos jurídicos - que emitem enunciados111213 sobre o tema a fim de uniformizar a atuação da magistratura nestes órgãos -, defendem a não aplicação do novo modelo de fundamentação das decisões judiciais aos processos dos Juizados Especiais, sob a justificativa de que o mesmo é incompatível com os princípios informadores deste órgão jurisdicional, em especial a celeridade e a simplicidade, e que, em razão disso, haveria de se promover uma mitigação dos mandamentos do Código em detrimento da realidade fática dos Juizados, privilegiando a mencionada celeridade processual ao máximo patamar, como se princípio constitucional fosse (ALVES, 2018, p. 10).

Aduzem que esta incompatibilidade entre o novo parâmetro de fundamentação trazido pelo artigo 489, § 1o, do CPC/15 e o procedimento especial dos Juizados Especiais decorre do fato de que aquele traz como regra o modelo de fundamentação exauriente (ou completa) e abandona a concepção de fundamentação suficiente (ou sucinta), que, para esta parcela da doutrina, é a que vigorava e deve vigorar nos Juizados.

Segundo estes juristas, o conceito de fundamentação suficiente pode ser traduzida pela ideia de que (para eles) a Constituição não exige que a decisão seja extensamente fundamentada, mas sim que o juiz dê as razões de seu convencimento14, concluindo que no âmbito dos Juizado Especiais a fundamentação sucinta ou suficiente, ainda que lastreada em única hipótese e que não enfrente todos os argumentos invocados na inicial e na defesa, deve ser entendida como devidamente motivada a respectiva decisão, justificando-se pelos já mencionados princípios informadores (ALVES, 2017, p. 2). Por outro lado, o conceito de fundamentação exauriente seria aquele em que o magistrado, ao decidir, esgota a análise dos fundamentos trazidos pelas partes, aprecia-os e sobre eles decide, e, além disso, observa a incidência ou não e o afastamento ou não dos precedentes judiciais vinculantes no caso concreto, e, ao fundamentar sua decisão, o faz de maneira clara e explicativa de seus fundamentos e da razão de escolha por eles em detrimento do afastamento daqueles aduzidos pela parte que sucumbiu, explicando a relação desta ponderação com a causa.

Ocorre que, conforme corroborado por divergente parcela da doutrina, não há, de fato, incompatibilidade ou conflituosidade alguma entre o microssistema dos Juizados Especiais e seu procedimento especial e o Código de Processo Civil, mas, pelo contrário, uma relação de complementaridade e supletividade da regra geral com a regra especial, devendo a questão ser analisada sempre, como não pode deixar de ser, à luz da Constituição e do princípio da unidade e sistematicidade do ordenamento jurídico, insculpido no artigo 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Sobre os autores
Ricardo Trentin

Advogado no Espírito Santo. Especialista em Direito Processual Civil. Atuação em Direito Administrativo, Penal, Trabalhista, Consumidor e Família.

Julio Cesar Medeiros Ribeiro

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogado especializado em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRENTIN, Ricardo; RIBEIRO, Julio Cesar Medeiros. O dever de fundamentação das decisões judiciais no âmbito dos juizados especiais: uma análise à luz do novo modelo processual brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5792, 11 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72452. Acesso em: 26 dez. 2024.

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