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A cultura jusnaturalista escolástica-tomista e o neotomismo no Brasil

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Agenda 09/09/2005 às 00:00

6 ANDRÉ FRANCO MONTORO: UM NEOTOMISTA DO DIREITO

            André Franco Montoro foi um pensador humanista de inspiração cristã que muito contribuiu para a cultura jusnaturalista tomista brasileira. Em seu discurso jurídico, dizia que a política neoliberal, que tem suas raízes na filosofia liberal clássica, não deve prosperar num Estado de Direito [36], por incompatível para com a promoção do bem comum e por atentar contra a dignidade da pessoa humana, já que é fonte de promoção da exclusão social e inimiga dos direitos sociais. É por isso que para os neotomistas os ideais de justiça social, de bem comum e função social, continuam a balançar os setores mais reacionários da sociedade, setores estes que fazem apologia à política neoliberal.

            Franco Montoro, além de político, foi professor de Filosofia do Direito. Entendia que era possível conciliar-se a Ética com o Direito e com a Política. Aos juristas, bem como aos operadores do Direito, recomendava a busca incessante pela concretização do respeito que é devido à pessoa humana, observada uma exigência fundamental de justiça. Foi um dos maiores representantes do pensamento sócio-jurídico católico de linha neotomista. Seu discurso era dirigido em torno de questões tais como, o bem comum, a justiça social, a solidariedade, a luta pelo Direito, o desenvolvimento social e a humanização do Direito.

            Embora fosse considerado, por muitos, como um homem idealista, Montoro [37] tinha os pés-no-chão, tendo em vista que não desprezava a realidade social, e isto está bem demonstrado em sua obra clássica Introdução à Ciência do Direito, a saber:

            A justiça é o valor que deve iluminar todo o campo do direito. Não se trata de contrapor a realidade a um modelo idealista e absoluto que fica longe numa caverna platônica. É na planície em que vivemos, no processo histórico-social da luta entre liberdade e opressão, minorias dominadoras e maiorias sacrificadas, manifestações de violência ou movimentos de solidariedade, que se há de exercer, com espírito crítico e independente, a tarefa de construção dos homens do direito.

            Montoro era um homem preocupado com a formação dos operadores do Direito, e censurava aqueles que limitavam o ensino jurídico ao conhecimento pretensamente neutro da norma. [38]

            É certo que todos os juízes tem passagem pelas faculdades de direito; também é certo que são instruídos para serem escravos da lei, e isto se explica já que o nosso modelo de ensino jurídico atual prioriza a dogmática jurídica, e coloca em segundo plano, a promoção de estudos da Filosofia do Direito, História do Direito, Ética e de Sociologia Jurídica. Infelizmente, a maioria das Faculdades de Direito, fornece ao aluno um estudo da legalidade pela legalidade, o que os tornam, em sua maioria, cépticos, conformados e desprovidos de sensibilidade social.

            Montoro tinha a preocupação de fornecer aos seus alunos de Direito uma visão humanista e humanizadora do fenômeno jurídico, e usando das palavras de Eduardo Couture, professava em aula aos seus discípulos: "Teu dever é lutar pelo Direito, mas, no dia em que encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça!". [39]

            A preocupação para com a justiça enquanto fundamento do Direito também era objeto de estudo de Montoro. Aceitava com reservas a filosofia perennnis, embora não negasse que há princípios eternos, universais e imutáveis que sempre estarão presentes em qualquer tipo de sociedade, espaço geográfico e contexto histórico próprio.

            A idéia de que não se deve prejudicar o próximo ou de que se deve fazer o bem, segundo Montoro, será sempre uma constante nas relações humanas. Tais princípios, tratados como Primeiros Princípios, representa o fundamento do Direito, "pois norma que não possua um conteúdo ético, não é Direito" [40].

            Os Primeiros Princípios são tratados como Direito Natural. Entretanto, Montoro não admite que todas as normas tenham a mesma validade absoluta universal, como quer entender os que professam pela doutrina racionalista ou do Direito Natural abstrato.

            Para Montoro [41]:

            A história mostra, não um direito igual e imutável em todos os povos, mas instituições e regras jurídicas diferentes, acompanhando as diversidades de condições de tempo e de lugar. Até mesmo quando se trata de regulamentar um mesmo princípio – como garantir aos cidadãos meios de defesa contra o arbítrio da autoridade, ou ao Estado o poder de punir, cobrar impostos ou desapropiar – as normas e processos adotados apresentam variação multiforme [...] Além disso, essa doutrina é inaceitável do ponto de vista filosófico. Primeiro, porque desconhece o verdadeiro caráter da natureza humana, que é na realidade profundamente variável. Segundo, porque adota métodos aprioristas e dedutivos, no estudo de matéria que só pode ser conhecida por observação da experiência (...) o direito natural, em lugar de ser um corpo restrito de princípios, a serem utilizados como fundamento no trabalho da elaboração jurídica, passa a constituir um Código completo de regras, que servem de modelo ao direito positivo.

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            A doutrina racionalista do Direito Natural acaba confundindo Direito Natural com o Direito Positivo. E isto é combatido por Montoro, já que o próprio Santo Tomás de Aquino entendia que "O Direito, até mesmo o Natural, não pode ser imutável, por que a natureza humana também não é: natura hominis est mutabilis."

            André Franco Montoro graduou-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento, sendo aluno do lente belga Dr. Leonardo Van Acker. Dizia Van Acker, que a vocação de Montoro não era de advogado, mas de filósofo. [42]

            E Lucy Franco Montoro [43] diz o motivo pelo qual seu marido tinha vocação para a filosofia: "Talvez porque André percebesse rapidamente o cerne das questões, o raciocínio que levava aos valores individuais de cada um e da sociedade no múltiplo e complexo processo da vida individual e social"

            Montoro se destacava em sala de aula devido à sua rápida compreensão dos postulados do primeiro grupo de filósofos estudados na São Bento: Tales de Mileto, Pitágoras, Sócrates, Santo Tomás de Aquino. [44]

            Essa compreensão rápida e profunda, separando o essencial do acidental, fez do André um grande professor e um grande orador. Ele conseguiu falar às pessoas e dizer o que elas gostariam de ouvir, respeitando o valor individual de cada um". [45]

            O método escolástico de Abelardo, tão usado por Santo Tomás de Aquino no século XIII, método este que tinha a preocupação pela busca do significado, alcance e sentido das palavras, encontra-se presente na jusfilosofia de Montoro, tendo em vista que este filósofo do Direito brasileiro tinha a preocupação na investigação dos sentidos do vocábulo Direito, quer o nominal, quer o significado real.

            Conceituar o direito é defini-lo. E há duas espécies de definição: nominal, que consiste em dizer o que uma palavra ou nome significa, e real, que consiste em dizer o que uma coisa ou realidade é. [...] Em obediência à recomendação lógica, é o que vamos fazer em relação ao direito. Estudaremos, primeiramente, a significação da palavra. Examinaremos, em seguida, a realidade ou realidades que constituem o direito. O estudo das palavras e da linguagem em geral é da maior importância. Quando um vocábulo é empregado durante várias gerações para designar uma realidade, ele se apresenta cheio de conteúdo e significação. O nome é a experiência acumulada e constitui, de certa forma, o limiar da ciência. [46]

            Na Introdução à Ciência do Direito, Montoro [47] faz um estudo sobre a origem dos vocábulos direito e jurídico, encontrando suas raízes em quatro idiomas antigos, a saber no sânscrito, védico, grego e no latim. Directum significa aquilo que é conforme à régua ou aquilo que é reto. Jus significa direito. Jussum, particípio passado do verbo jubere, significa mandar ou ordenar. Justum, aquilo que é justo ou conforme à justiça. , do sânscrito, jugo, jungido ou ligado. Yós, do védico, representa bom, santo, divino, de onde parece terem sido originadas as expressões Zeus, no grego, e Jovis ou Júpiter, no latim. E finalmente Diké, que significa indicar.

            No entanto, Montoro [48] não se contentava apenas em demonstrar o sentido nominal de um nome ou sua origem, mas entendia ser necessário buscar o seu significado real; e usando daquele método, identificou as cinco realidades fundamentais do fenômeno jurídico, encontrando uma pluralidade de significados, o que o levou a conceber o Direito como norma, faculdade, justo, ciência e fato social.

            Não podemos nos limitar ao estudo do vocábulo. Devemos passar do plano das palavras para o das realidades. Consideremos as seguintes expressões: 1. O direito não permite o duelo; 2. O Estado tem o direito de legislar; 3. a educação é direito da criança; 4. cabe ao direito estudar a criminalidade; 5. o direito constitui um setor da vida social. [...] Se atentarmos para a significação do vocábulo direito, nessas diversas expressões, verificaremos que, em cada uma, ele significa coisa diferente. Assim, no primeiro caso direito significa a norma, a lei, a regra social obrigatória. Na Segunda expressão direito significa a faculdade, o poder, a prerrogativa que o Estado tem de criar leis. Na terceira expressão direito significa o que é devido por justiça. Na Quarta expressão direito significa ciência, ou, mais exatamente, a ciência do direito. Na última expressão direito é considerado como fenômeno da vida coletiva. Ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos, etc., também o direito é um fato social.

            A concepção tradicional do Direito Natural, particularmente a doutrina tomista, foi objeto de crítica por Miguel Reale. [49]

            Os preceitos apontados como cardeais ou primeiros apresentam-se vazios de conteúdo, como aquele que manda dar a cada um o que é seu, deixando em aberto a determinação do devido a cada qual como próprio segundo proporções estabelecidas pela natureza das coisas. Se toda gente convém em dar a cada um o que é seu, a dificuldade começa tão logo se procure saber precisamente o que é devido a cada um. Na realidade, na concepção ora examinada, ou se perde de vista a experiência concreta, da qual se pretende inicialmente partir para atingirem por indução e abstração conceitos e valores universais de juridicidade, ou então, passam a predominar as determinações ulteriores, pouco significando os limites abstratos admitidos como intransponíveis. Parece-nos, em suma, que o normativismo ético, por sua carência de sentido histórico concreto e por sua distinção abstrata entre o juridicamente lícito e o ilícito, só determinável com referência a uma ordem moral pré-constituída, não logra compreender a realidade jurídica na totalidade autêntica de seus elementos. De certa maneira, o elemento axiológico da norma permanece fora do processo, no qual o fato se ordena normativamente em virtude de valores real e concretamente vividos.

            Franco Montoro não concorda com Miguel Reale [50] afirmando que:

            É certo que os princípios do direito natural, sendo princípios são necessariamente gerais e têm conteúdo limitado a certos preceitos fundamentais. É, aliás, princípio lógico que a compreensão de um conceito é tanto menor quanto maior for sua extensão. Mas não é exato que eles sejam vazios de conteúdo.

            Dabin fez um notável estudo sobre a filosofia da ordem jurídica positiva, e nesta pesquisa, examinou o conteúdo do Direito Natural, através da análise de seus preceitos. Montoro extraiu uma breve síntese do pensamento deste jus-filósofo belga para rebater a crítica de Miguel Reale.

            O conceito de natureza humana não é um conceito vazio porque é comum a todos os homens. Seus traços fundamentais podem ser estabelecidos com segurança. O homem é por natureza solidário e depende da comunidade de homens para seu desenvolvimento material e espiritual. Além da solidariedade humana geral, existem as mais restritas, que se dá na família e na sociedade politicamente organizada. Estes tipos de solidariedade são extraídas da realidade concreta. Portanto, são fatos que se dão na história. A história e a experiência nos mostram que o homem tem esta tendência natural de união. Logo, os preceitos de direito natural são extraídos da realidade concreta observável. [51]

            Há três preceitos de Direito Natural: interindividual, político e familiar. O primeiro preceito acredita que o homem é ser racional e se difere dos animais. Por tal razão, os homens devem respeito uns em relação aos outros. Ademais, há em todo o homem um sentimento de justiça. O segundo versa sobre o dever natural de respeito que deve ter as autoridades públicas em relação aos cidadãos; direito à vida e à honra; direito de atuar para o bem comum e não em benefício individual; dever de encaminhar uma distribuição eqüitativa dos benefícios e encargos sociais; dever de atribuir as funções públicas aos mais capazes. O terceiro preceito diz respeito ao plano familiar. Obrigação de cuidar, alimentar e educar a prole; o dever de respeito e obediência dos filhos em relação aos pais. [52]

            Esses preceitos devem ser determinados concretamente, em cada sociedade, pela consideração objetiva das condições historicamente contingentes e variáveis. [53] Para compreendermos a dimensão histórica daqueles preceitos de Direito Natural, necessária se faz a distinção entre "regras de Direito Natural" e "regras conforme ao Direito Natural". As primeiras são incontestáveis e gerais na medida em que são exigências da natureza humana. As segundas, correspondem à natureza particular e concreta de determinado grupo de homens. [54]

            Ora, não é para a natureza humana genérica que o direito deve formular suas regras, mas para homens concretos, vivendo em determinado momento histórico. [...] Essa realidade é profundamente variável: O direito, até mesmo o natural, não pode ser imutável, por que a natureza humana também não é; natura hominis est mutabilis, diz S. Tomás de Aquino. Por isso, essa matéria deve ser reconhecida principalmente pela experiência. [55]

            Dabin, citado por Montoro, um dos grandes mestres do tomismo contemporâneo, acrescenta que é incontestável que o método adequado exige que se tome como ponto de partida, em toda investigação de filosofia jurídica, não o Direito em si, mas o fato histórico, concreto e tangível do Direito Positivo, tal como ele aparece à observação. [56]

            De acordo com Montoro, o próprio Miguel Reale [57] reconhece, em sua Filosofia do Direito, que com essa concepção "abre-se um campo vastíssimo deixado às determinações do Poder, o que dá à concepção tomista do Direito uma reconhecida plasticidade".

            Não é válida, também, a crítica de que falta à doutrina tradicional do direito natural e, especialmente, ao tomismo o sentido histórico concreto. A afirmação de princípios fundamentais e permanentes não dispensa a consideração histórica da realidade social. Mas, ao contrário, exige essa consideração e lhe dá a base necessária e os critérios fundamentais. Sem a aceitação, explícita ou implícita, do princípio de que se deve dar a cada um o que é seu, e respeitar, assim a dignidade de cada homem, nenhum passo poderá ser dado na vida concreta do direito. [...] Da mesma forma que o sistema solar, é a partir dessa realidade humana fundamental que se irradiam as leis, os costumes, a jurisprudência e as demais fontes formais do direito. [58]

            Ainda, Montoro não aceita a crítica de Miguel Reale no que tange à afirmação de que o elemento axiológico da norma permanece fora da realidade jurídica.

            É claro que o direito de cada época não coincide com a justiça, mas é um esforço para alcançá-la. Os elementos axiológicos, representados pelos valores bem comum, justiça, dignidade humana, estão presentes em todos os momentos e fases da vida do direito, como critério e guia das decisões. Na elaboração da lei, o bem comum é inspiração e a justificativa necessária de todos os projetos e pareceres e discussões. Constitui, aliás, exigência dos Regimentos das Câmaras e Assembléias Legislativas que os projetos de lei sejam sempre acompanhados de sua justificação. São, ainda, a justiça, o bem comum, a dignidade da pessoa humana, valores que devem estar sempre presentes no trabalho de interpretação e aplicação de qualquer norma. Na aplicação da lei o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, determina o art. 5º do Código Civil. [...] Aliás, a doutrina clássica do direito natural, em seu desenvolvimento histórico, revela uma atitude de constante presença na vida social e jurídica de cada época. E é em função dessa experiência que ele se afirma e se desenvolve. Estariam, por acaso fora da vida real de direito, as invocações aos princípios de justiça, dignidade humana, lei natural e outros, feitos por Antígona ao se recusar a cumprir a ordem iníqua do Rei Creon? Por Santo Ambrósio, Arcebispo de Milão, ao proibir ao Imperador Teodósio a entrada na sua Diocese, após o massacre de Tessalônica? Por Vitória, ao apor-se aos conquistadores do Novo Mundo, em sua pretensão de tratar as populações nativas como animais capturados? Por Leão XIII, ao condenar na Encíclica Rerum Novarum, em 1891, a exploração do trabalho humano como simples instrumento de lucro? Por Pio XI, ao repelir na carta Mit Brenneder Sorge em 1938 as medidas racistas e violentas impostas pelo Nazismo, poderoso e triunfante? Por João XXIII e Paulo VI, ao reclamar a urgência de reformas estruturais na sociedade atual, para que a humanidade supere o subdesenvolvimento em termos de justiça? [59]

            Portanto, de acordo com Montoro, os princípios de Direito Natural não são vazios de conteúdo, a doutrina tomista tem sentido histórico concreto e o elemento axiológico da norma permanece dentro do processo ou da realidade jurídica.

Sobre o autor
Renato Toller Bray

Professor da UEMG e do Imesb. Doutor em Direito Político e Econômico. Mackenzie SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAY, Renato Toller. A cultura jusnaturalista escolástica-tomista e o neotomismo no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 798, 9 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7250. Acesso em: 19 nov. 2024.

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