Resumo: O presente trabalho busca expor de forma objetiva os principais posicionamentos da doutrina e da jurisprudência acerca da possibilidade ou não do reconhecimento das novas relações que surgem no decorrer dos tempos. Expõe interpretar essas inovações consoante novos posicionamentos jurídicos trazidos pela Constituição Federal de 1988, bem como análise de decisões jurisprudenciais, baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana bem como no afeto, um dos pilares para as relações familiares, independente da formação. Com a finalidade de buscar propostas para suprir a lacuna legislativa a respeito dos efeitos patrimoniais decorrentes das relações extraconjugais e a aplicação dos princípios basilares do Direito de Famílias, os quais se baseiam na formação da entidade familiar.
Palavras-chave: Famílias, direito moderno, jurisprudência.
1. INTRODUÇÃO
No direito contemporâneo a estrutura familiar tem se mostrado em constante evolução, é perceptível a vivência de novas realidades, ainda que em algumas situações o direito não tenha acompanhado esse progresso. Nesse sentido (DIAS, 2011, p.26) esclarece que: “a realidade sempre antecede o direito, os atos e fatos tornam-se jurídicos a partir do agir das pessoas de modo reiterado”.
Não obstante, com a evolução dos paradigmas sociais, se enquadrou no rol da tolerância, inclinando-se à democratização do pensamento em que as uniões matrimonializadas deixaram de ser o padrão para a base familiar, aceitando-se socialmente novos arranjos de união. Conforme Dias (2010, p.2) “nem mais o convívio sob o mesmo teto é exigido para o reconhecimento de uma entidade familiar, bastando para sua configuração um projeto de vida comum”. Assim, é possível destacar que o conceito de família abrange os modelos de convivência, estando caracterizado especificamente um dos principais elementos centrais, ou seja, o vínculo afetivo. (SANTOS, s.a, s.p).
Assim, a partir desta concepção, o presente trabalho busca se inclinar para observar essa lacuna aberta no ordenamento jurídico brasileiro, onde a formação e existência de duas ou mais famílias simultâneas podem ou não gerar qualquer efeito à outra parte, assim, revestindo-se de total ausência de juridicidade, contudo, não é verdade que devam ser excluídos do âmbito do direito de família, pois carregam em seus conceitos, os princípios basilares da formação familiar. No que se refere ao avanço social, trazendo para o direito das famílias, é importante destacar que novas formas de relacionamentos estão sendo inseridas socialmente e gradativamente está sendo codificada, a exemplo disso temos a simultaneidade familiar que diz respeito à circunstância de alguém se colocar concomitantemente como componente de duas ou mais entidades familiares diversas entre si, é, portanto, uma pluralidade de núcleos diversos que possuem um membro em comum.
Nos tópicos posteriores, apresenta-se a evolução histórica da família, analisando o conceito de famílias simultâneas, bem como a distinção que se observa entre o que é concubinato e as famílias em destaque, trazendo uma análise doutrinária e jurisprudencial acerca da proteção das famílias simultâneas, tendo em vista a aplicação do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, o princípio da dignidade da pessoa humana e a afetividade que ampara estas uniões, e, por conseguinte, analisando a aplicação das normas da união estável para seu reconhecimento. Por fim, analisam-se também as consequências patrimoniais acerca da existência de famílias simultâneas.. (SANTOS, s.a, s.p).
2. UM CONTEXTO HISTÓRICO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS
É certo que a família deixou de ser patriarcal e matrimonializada que predominou no anterior século e na anterior Lei Civil brasileira. A Constituição da República, em 1988, acolheu os anseios da sociedade, no sentido da multiplicação dos modelos familiares, registrando ao menos três, a família formada pelo casamento, a família formada da união estável e a família monoparental.
Ressalta-se que o reconhecimento de outros arranjos como entidades familiares não tem ocorrido com facilidade, sequer rapidez. Temos, por exemplo, que a própria união estável antigamente denominada concubinato puro demorou quase seis décadas de avanços jurisprudenciais para que conseguisse, foi a partir de então que a chancela legislativa, com a Carta Constitucional de 1988 e, depois, com as duas leis da década de 90 que estabeleceram a união estável, seus efeitos sucessórios, entre outros.
É importante destacar que consoante Mateus Rocha em seu artigo cientifico acerca da origem da família, temos: “o termo “família” advém da expressão latina famulus, que significa “escravo doméstico”, que designava os escravos que trabalhavam de forma legalizada na agricultura familiar das tribos ladinas, situadas onde hoje se localiza a Itália.” Assim com o desenvolvimento das sociedades ao redor do mundo, na qual os laços sanguíneos eram mais aceitos pela população, no direito romano a expressão família natural, tratava-se daquele conjuntos formado por um casal e seus filhos. Diferente do que acontecia nos clãs, onde suas formações se davam a partir de relações parentais, tendo como princípio a existência de um ancestral comum, a família natural romana originava-se através de uma relação jurídica, o casamento. (CUNHA, s.a, s.p).
Insta salientar que a entidade familiar reconhecida pelas Ordenações Filipinas era a formada pelo casamento, que poderia se dar de forma solene, realizado na Igreja e atrelado à conjunção carnal entre os nubentes, e o casamento decorrente do trato público, conhecido como casamento com marido conhecido, modalidade não reconhecida pelo direito canônico. No Brasil, temos que a Constituição Federal de 1934 foi a primeira do país a descrever um capítulo à família, garantindo proteção especial do Estado a esta instituição, preceitos repetidos pelas constituições subsequentes. (CUNHA, s.a, s.p).
Com o surgimento da Constituição Federal de 1988 eis que se inclina a um tratamento especial ao Direito de Família, reservando um capítulo destacado apenas para este ramo do Direito (Capítulo VII do Título VIII), que sofreu uma transformação. Em contrapartida ao modelo autoritário e patriarcal definido pelo Código Civil de 1916, o modelo de família depreendido do texto constitucional é estabelecido em preceitos como a igualdade, e do respeito à dignidade da pessoa humana. (CUNHA, s.a, s.p).
Assim, no que diz respeito, propriamente, aos modelos familiares de conjugalidades concomitantes, isto é, a famílias conjugais (por casamento ou por união estável) paralelas ou simultâneas, já se apresentam decisões que têm chancelado a possibilidade de reconhecimento. Esclarece (FACHIN, 1999, p.10) que: “Não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade”.
Muito embora a família contemporânea passasse a ter outras transformações, entre elas evoluiu a afetividade. Assim, quando se fala de afeto, já não se o entende como antes, quer dizer que quando então significava apenas um sentimento e hoje o afeto é considerado como valor jurídico, pois promoveu a família de um status patriarcal para um status nuclear. Se, no anterior tempo, o afeto era presumido em razão de o vínculo jurídico dar a existência de uma família, no espaço atual ele é um dos elementos responsáveis pela visibilidade e continuidade das relações familiais.
2.1 Afetividade como base nas relações familiares
No que se refere ao estudo do tema em tela, no entendimento de (GROENINGA, 2008, p. 28), segue:
O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade.
Percebe-se que no decorrer dos tempos, o ordenamento jurídico reconheceu novos modelos de família, no qual conferiu uma nova ordem jurídica a respeito dos vínculos familiares, atribuindo valor jurídico ao afeto, como uma competência em dar e receber amor.
Assim, como afirma (DIAS, 2010, p. 03) entende-se que: “A flexibilização decorrente da contemporaneidade vem permitindo que os relacionamentos antes clandestinos e marginalizados adquiram visibilidade, o que acabará conduzindo a sociedade à aceitação de todas as formas que as pessoas encontram para viver”.
Destarte, é possível observar que mesmo não existindo a formalidade expressa na Constituição Federal acerca da afetividade, essa pode ser considerada o meio condutor na formação de vínculos familiares. É perceptível de que mesmo a afetividade não estando expressamente prevista na Constituição Federal, ela pode ser considerada o principal condutor na formação de vínculos familiares. Diante disso, busca seu reconhecimento na formação de entidade familiar, um elo primordial para a existência do núcleo familiar. Contudo, a Carta Magna estende à proteção a pessoa independentemente de sua relação, conferindo efeitos jurídicos patrimoniais e extrapatrimoniais. (SANTOS, s.a, s.p).
Ressalta-se que a Constituição representa uma série de possibilidades, onde se destacaquestionamentos sobre e como deve ser vista em seucontexto. A Constituição de 1988 traz consigo valores igualitários, construindo uma nova face do Direito de Família. O art. 226, caput, do texto constitucional, ao estabelecer que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, reconhece a importância do organismo familiar para a formação e manutenção da sociedade, sendo que o modelo unitário da família matrimonial foi ampliado para vários (plurais) modelos de famílias que não se esgotam no rol previsto constitucionalmente.
Diante do contexto, nota-se que o princípio da afetividade, no entanto, não está previsto de forma expressa no ordenamento jurídico, mas a Constituição Federal, ao estabelecer a pluraridade de entidades familiares, reconhece a afetividade. A mesma é considerada como um dos principais elementos formadores da família, sendo ela essencial paraalcançar os anseios dos seres humanos. Segundo (DIAS, 2010, p. 56):
A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família [...] A comunhão de afeto é incompatível com o modelo único, matrimonializado da família. Por isso, a afetividade entrou nas cogitações dos juristas, buscando explicar as relações familiares contemporâneas.
Para (NOGUEIRA, 2001, p.86) que também assegura o seguinte:
Pode-se dizer que existem dois momentos referentes à filiação: um fisiológico, que determina a filiação biológica, e um psicológico, que determina a filiação afetiva, sendo esta decorrente da criança se sentir segura e desejada. Os próprios pais biológicos podem ser os que atendam as necessidades psicológicas, mas, quando estes são ausentes e não estabelecem vínculos com a criança, são para os sentimentos dela, simplesmente estranhos. Um cuidador carinhoso e sensível é a dimensão mais influente da parentalidade durante a infância, além de estimular o funcionamento psicológico saudável durante a época de desenvolvimento, constrói bases para experiências futuras.
É por esse motivo que se diz que o afeto é de suma importância no seio familiar, entre as relações conjugais, vínculos afetivos, é externado com o auxilio do canto, poesia, sabedoria, linguagem, educação, conhecimento, inteligência, saúde, felicidade, liberdade, enfim, afeto é o elemento primordial da vida e o ponto de partida para a construção da personalidade da pessoa humana. Daí a importância da família instituída no afeto.
Em análise a algumas decisões percebe-se o impedimento na configuração de provar a relação de união estável, veremos:
Ementa: apelação cível. união estável. ausência de prova dos requisitos indispensáveis á caracterização da união estável. companheiro casado. impedimento para configuração da união estável. O reconhecimento da união estável depende de prova plena e convincente de que o relacionamento se assemelha, em tudo e perante todos, ao casamento. A existência de relação amorosa entre as partes, sem os requisitos exigidos pela lei, não se caracteriza como união estável. Ausência de prova da coabitação, continuidade, publicidade e objetivo de constituir família, ônus que incumbia à autora. Impossibilidade de reconhecimento de união estável concomitante ao casamento, quando não evidenciada a separação de fato de um dos concubinos. APELAÇÃO PROVIDA. (SEGREDO DE JUSTIÇA). (TJRS, Apelação Cível Nº 70027944925, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz PlanellaVillarinho, Julgado em 16/09/2009).
UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. COMPANHEIRO FALECIDO. SEPARAÇÃO DE FATO. PROVA. INEXISTÊNCIA DE CONCUBINATO. 1. Para o reconhecimento da união estável não é necessário que as partes estejam divorciadas ou separadas judicialmente, bastando que estejam separadas de fato. Inteligência do art. 1.723, §1º, do CCB. 2. Os efeitos da relação não decorrem do estado civil das partes, mas do vínculo afetivo e da natureza da relação, que deve ser duradoura, pública e contínua, com o propósito de constituir uma família. 3. Comprovada a notoriedade e a publicidade, assim como a affectiomaritalis, imperioso é o reconhecimento da união estável havida entre a autora e o de cujus. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70015261407, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 02/08/2006).
3. UMA ABORDAGEM SOBRE FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS
Fazendo uma análise jurídica da família brasileira, pode-se verificar que inicialmente só tínhamos o reconhecimento jurídico da família matrimonializada, gerando o casamento civil, posteriormente outras formas de família foram ganhando destaque e surgindo a respectiva proteção. Assim, verifica-se que na Constituição Federal de 1988 encontramos três espécies distintas de família: a decorrente do casamento civil, a decorrente da união estável e a monoparental. Enquanto que a monoparental é formada por um dos genitores e sua prole, as demais é formada por pessoas, podendo ser mesmo sexo ou não.
Assim, para caracterizarmos uma entidade familiar, segundo (LOBO, 2009, p.58), o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente. basta preencher três características, são elas: afetividade, estabilidade, convivência pública e ostensiva. Destaca-se, então a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a presença do caráter afetivo como sendo a base das relações familiares para caracterizar uma entidade familiar, vejamos:
TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). […]. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas[…]Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. […]. (ADI 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341 RTJ VOL-00219- PP-00212).
Não obstante, apesar de existirem posicionamentos doutrinários no sentido contrário às famílias simultâneas, podemos citar alguns doutrinadores que concordam sobre esse tema. Em seu entendimento (FILHO, 2002, p. 152-153), afirma que: “estamos vivenciando uma crise do sistema monogâmico e que a prostituição não cumpre mais o seu papel de estabilizadora do casamento e por isso está sendo cada vez mais comum nos depararmos com diferentes arranjos familiares que vem sendo aceito no seio da sociedade.” De outra banda, temos a autora (DIAS, 2013, p. 63), afirma que: “excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade que gera comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial simplesmente é chancelar o enriquecimento injustificado, é ser conivente com a injustiça.”
Também nesse sentido se posicionam (GOECKS e OLTRAMARI, 2008, p.402) onde defendem que “no momento em que as uniões paralelas forma constituídas com base no princípio da boa fé faz-se necessário o reconhecimento dessas famílias e ainda que o Estado não pode intervir nessas famílias negando a realidade delas retirando-as do âmbito do direito de família.”
Ressalta-se que o Código Civil de 2002 prevê no art. 1.513 a proibição de qualquer pessoa em interferir na comunhão de vida instituída pela família, in verbis: “Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.” A partir dessa análise pode-se compreender que a simultaneidade entre famílias existe, bem como nunca deixaram de existir, mais ainda estão invisíveis na órbita jurídica. O fato é que, atualmente muitas famílias se vêem desamparadas de proteção legal, após a dissolução desta união paralela ao casamento, mesmo dispondo de total boa-fé, ainda há paradigmas a serem quebrados e garantidos a igualdade e concessão de seus direitos.