Tema gerador de grande celeuma nos meios acadêmicos, o ingresso de policiais de folga armados em estabelecimentos particulares é visto com reservas por alguns operadores do Direito. Isso porque a expressão “folga”, por vezes, é erroneamente interpretada como hábil a retirar a condição de policial do agente, de modo a ceifá-lo, ainda que temporariamente, das suas prerrogativas legais.
Conquanto não seja pacífica, a questão deve ser encarada de modo a preservar o espírito da Lei, a qual, de maneira clara e objetiva, assegura o porte funcional de arma de fogo ao policial em território nacional.
Façamos então uma análise ponto a ponto, a fim de entendermos que essa prerrogativa é de fato legítima e, burlá-la de forma concisa, poderá, salvo entendimentos contrários, gerar futuras responsabilizações aos recalcitrantes no campo penal.
Diz o art. 6º, inciso II, da Lei Federal n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que é proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para os integrantes de órgãos referidos nos incisos do “caput” do art. 144 da Constituição Federal, dentre os quais se enquadram todos os policiais civis (estaduais e federais) e militares brasileiros. O § 1o do mesmo artigo estatui que as pessoas previstas nos incisos I, II (policiais), III, V e VI do “caput” do artigo terão direito de portar arma de fogo de propriedade particular ou fornecida pela respectiva corporação ou instituição, mesmo fora de serviço, nos termos do regulamento da Lei, com validade em âmbito nacional para aquelas constantes dos incisos I, II (policiais), V e VI. Ou seja, é uma regra de abrangência nacional e, através dela, reside o direito do policial, civil ou militar, portar arma de fogo no Brasil.
Disciplinando essa norma geral, o Decreto Federal nº 9.847, de 25 de junho de 2019, prevê, em seu art. 26, que os órgãos, instituições e corporações a que se referem os incisos I, II, III, V, VI, VII e X do caput do art. 6º da Lei nº 10.826, de 2003 (onde estão todas as Policias brasileiras), estabelecerão, em normas próprias, os procedimentos relativos às condições para a utilização das armas de fogo de sua propriedade, ainda que fora do serviço. Ou seja, o porte de arma “fora do serviço” é expressamente garantido pela Lei, recaindo aos Estados, assim, apenas o múnus de disciplinar as condições em que ele será exercido.
Mais adiante, o § 2° do mesmo artigo estabelece que as instituições, órgãos e corporações, nos procedimentos descritos no “caput”, disciplinarão as normas gerais de uso de arma de fogo de sua propriedade, fora do serviço, quando se tratar de locais onde haja aglomeração de pessoas, em decorrência de evento de qualquer natureza, tais como no interior de igrejas, escolas, estádios desportivos, clubes, públicos e privados. Disso concluímos que a Lei, de maneira sábia, entregou aos Estados o dever de disciplinar como o porte de arma será exercido em recintos públicos e privados, ainda que o agente se encontre fora de serviço.
E é essa polêmica expressão, “fora de serviço”, que exige cautela na interpretação. O policial, dada a sua peculiar condição profissional, jamais estará, literalmente, fora de serviço. Ele poderá estar em horário de folga e gozando férias ou licença, mas sem com isso perder a condição de policial e as prerrogativas do seu cargo, afinal, de acordo com o art. 301 do Decreto-Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941, as autoridades policiais e seus agentes deverão, isto é, estão obrigadas a prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito, no momento que for. Note-se que essa regra nada diz sobre como agir em horário de folga, posto não ser dada ao policial, mesmo fora de serviço, a prerrogativa de omitir-se diante da prática de uma infração penal sob essa escusa.
E tanto isso é verdade que, no âmbito da Polícia Civil do Estado de São Paulo, o art. 44 da Lei Complementar Nº 207, de 5 de janeiro de 1979, estabelece que os cargos policiais civis serão exercidos necessariamente em regime especial de trabalho policial, o qual se caracteriza pelo cumprimento de horário irregular, sujeito a plantões noturnos e chamados a qualquer hora. Ora, se um policial, no caso o civil, está sujeito a ser acionado a qualquer hora do dia ou da noite, é patente que ele, mesmo estando de folga, deverá estar em prontas condições de dar a resposta pretendida, fazendo uso de todos os instrumentos que a lei o autoriza o usar, como, no caso, a sua arma de fogo.
De forma mais específica e ainda tomando como exemplo a centenária Polícia Civil paulista, a nossa administração superior, atendendo aos comandos do Decreto Federal nº 5.123, de 1º de julho de 2004, baixou a Portaria DGP-40, de 23 de outubro de 2014, a qual, em seu art. 8º, diz que o policial civil, em razão das suas funções institucionais, é autorizado a portar arma de fogo de propriedade particular, ou fornecida pela Polícia Civil, em serviço ou fora deste, em local público ou privado, mesmo havendo aglomeração de pessoas, em evento de qualquer natureza, tais como no interior de igrejas, escolas públicas, estádios desportivos e clubes, em todo território nacional. Isso espanca, assim, quaisquer dúvidas sobre a legitimidade do porte de arma quando o agente esteja transitoriamente fora de serviço e necessite ingressar armado em locais que estejam sob vigilância privada. Nesses casos o policial civil deverá portar a sua arma de fogo de forma discreta, especialmente nos locais onde haja aglomeração de pessoas, evitando constrangimentos a terceiros, salvo quando em operação policial, trajando vestimenta e/ou distintivo que o identifique. E a comunicação do porte de arma ao responsável pela segurança do local, sempre que solicitado, deverá ser feita de forma discreta, mediante apresentação da carteira funcional.
Não é demais lembrarmos que, por força da Portaria DGP-28, de 19 de outubro de 1994, as autoridades policiais e seus agentes devem portar permanentemente sua cédula de identificação funcional e respectivo distintivo e, em razão de estar permanentemente em serviço, o policial civil deve sempre portar arma e algemas, sendo que o mesmo, ainda que fora do horário normal de trabalho, é obrigado a intervir em qualquer ocorrência de polícia judiciária de que tenha conhecimento, adotando as medidas que o caso exigir.
Entretanto, alguns poderão alegar que se tratam de normas internas da Polícia, sem abrangência ao público externo. Entendemos o contrário. Essas regras administrativas, ao contrário do que se pode parecer, foram editadas em obediência a um mandamento vindo da própria Lei, a qual estabelece que quem disciplina o porte de arma fora do horário de serviço são as próprias administrações das Polícias. E estas, ao editarem regramentos administrativos, estão apenas disciplinando o que a Lei já anteriormente autoriza. Diante disso, eventual burla a esses mandamentos pode configurar desrespeito ao que determina a Lei Federal n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003 e o Decreto Federal nº 5.123, de 1º de julho de 2004 e, desacatá-los, poderá, em tese, configurar crime de desobediência, o qual se constitui não por ato de mera desobediência à Lei, mas por ato de menoscabo à ordem de um funcionário público em atuação da Lei.
A jurisprudência, em casos similares, já entendeu que “o art. 330 do CP não inclui expressamente no seu conteúdo a transgressão a editais ou portarias, mas não impede que se reconheça em tais casos o crime, desde que se prove a inequívoca ciência da norma pelo agente, que obra com dolo genérico, isto é, livre vontade de desobedecer à ordem legal, sabendo-a expedida ou executada por funcionário competente” (TACRIM-SP – AC – Rel. Edmond Acar – RT 427/424). E mais, “sendo estreme de dúvidas a legalidade da portaria baixada pela Polícia, comete o crime quem a desobedece, sem embargo de ter da peça expresso conhecimento” (TACRIM-SP – AC – Rel. Edmond Acar – RT 427/426).
Diante disso, a fim de envergar legitimidade na sua conduta, o policial que se ver impedido de ingressar armado em determinado local sob vigilância privada, deverá, cordialmente, exibir sua cédula de identidade funcional ao responsável e, mais ainda, alertá-lo sobre a existência de normas específicas, tantos as legais como as administrativas, as quais em conjunto legitimam a sua intenção, advertindo-o das possíveis responsabilidades em caso de não acatamento. Em havendo insistência na negativa, o policial, sempre de forma serena, deverá providenciar, pelos meios disponíveis, apoio externo e proceder como de direito, isto é, encaminhar o recalcitrante ao Distrito Policial da área, preso se necessário, a fim de que os fatos sejam analisados pelo Delegado de Polícia que, ao final, adotará as providências de polícia judiciária pertinentes contra o faltoso.
É de bom tom esclarecermos que, no âmbito da Polícia Civil do Estado de São Paulo, o policial civil, nos termos da Portaria DGP-40, de 23 de outubro de 2014, não está obrigado a entregar sua arma ou respectiva munição como condição para ingresso em recinto público ou privado, salvo nas hipóteses de submissão à prisão; durante audiência judicial, a critério da autoridade judiciária; por determinação, ainda que verbal, de Delegado de Polícia superior hierárquico e por determinação da autoridade corregedora, sempre que tal medida se afigurar necessária. Fora isso, entendemos que o policial civil não deverá entregar sua arma de fogo a quem quer que seja, e nem tão pouco deixa-la em cofres particulares, sob pena de responder por eventual mau uso ou inadequada destinação dela.
Ainda no que tange a inspeção preventiva privada em estabelecimentos particulares, já tivemos a oportunidade de lecionar que: “interessante é a questão da inspeção preventiva efetuada por agente particular em casas de show ou estabelecimentos congêneres. Nesses locais a vistoria física deve se basear na concordância do consumidor em submeter-se a ela como condição de entrada. Embora a lei não discipline taxativamente a questão, é certo que os prestadores de serviços têm o dever de fornecer a segurança adequada aos consumidores e, em razão disso, é razoável a adoção de medidas que visem garanti-la, dentre as quais, as inspeções, preliminares e indiretas, em locais onde exista elevada concentração de pessoas. Embora o cidadão não esteja obrigado a ser submetido a ela, tem se entendido que essa relação funciona como uma espécie de “contrato”, pelo que deve prevalecer o acordo mútuo e sensato de vontade. No caso dos profissionais que têm porte funcional de arma de fogo, essa regra particular não se aplica, pois a lei diz que essas próprias instituições estabelecerão, em normativos internos, os procedimentos relativos as condições para a utilização das armas de fogo de sua propriedade, ainda que fora do serviço e em local onde haja aglomeração de pessoas. Ou seja, nesses casos não há a possibilidade de desarme de um policial, salvo as hipóteses administrativamente previstas pelas suas corporações”[1].
Ademais, ressalte-se que, no Brasil, a Lei Federal n° 7.102, de 20 de junho de 1983 (alterada pela Lei Federal n° 8.863, de 28 de março de 1994), estabelece que o profissional habilitado para exercer as funções de segurança privada é o vigilante, que não se confunde com a figura do porteiro, o qual, desarmado, executa apenas o controle de acesso simples, de guarda e zelo, sem contato físico com os usuários do serviço. Isso deve ser levado em conta quando da análise geral da ocorrência, a qual também poderá revelar eventual contravenção de exercício irregular de profissão por pessoas desabilitadas na área específica de segurança privada do estabelecimento, cujo exercício requer o preenchimento de requisitos previstos em Lei e em atos normativos da Polícia Federal.
No que tange ao embarque armado em aeronaves civis, o tema é disciplinado pela Resolução nº 461, de 25 de janeiro de 2018, da Diretoria da Agência Nacional de Aviação Civil, a qual, por força do art. 8º da Lei Federal n° 11.182, de 27 de setembro de 2005, tem a responsabilidade de expedir regras sobre segurança em área aeroportuária e a bordo de aeronaves civis, porte e transporte de cargas perigosas, inclusive o porte ou transporte de armamento, explosivos, material bélico ou de quaisquer outros produtos, substâncias ou objetos que possam pôr em risco os tripulantes ou passageiros, ou a própria aeronave.
Dito isso cremos que o tema, se visto de maneira sensata e formal, não carece de maiores dúvidas quanto a sua interpretação, cabendo aos coadjuvantes do impasse apelarem para a cordialidade e o bom senso, afinal as regras existem e não só podem, mas devem ser aplicadas em caso de desrespeito. O porte de arma do policial é inerente ao seu cargo e, ceifá-lo desse direito é enfraquecer a linha de proteção da sociedade, afinal a arma de fogo é usada, acima de tudo, para protege-la. Embora focado no policial civil estadual, é certo que as demais instituições policiais possuem regras próprias, cuja observância deve ser feita na mesma toada pelos administrados, os quais, no policial, devem ver um amigo e aliado, e jamais um oponente.
NOTA
[1] LESSA, Marcelo de Lima. Busca pessoal processual, busca pessoal preventiva e fiscalização policial: legalidade e diferenças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/61753>. Acesso em: 1 abr. 2019.