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O princípio da insignificância no delito de descaminho

Agenda 28/05/2019 às 17:40

Analisa-se a aplicabilidade do mencionado princípio, norteador de diversas decisões jurisprudenciais, frente ao delito de descaminho, que se consuma na frustração fraudulenta, integral ou parcial, do pagamento de tributo devido pela entrada ou saída de mercadoria do território nacional.

É cristalino que o princípio da insignificância leva à exclusão da tipicidade material da infração penal por conta da baixa ofensividade ao bem jurídico no caso concreto. Em outras palavras, o Direito Criminal se compromete à tutela dos bens jurídicos dispostos na legislação, mas não considera típicas as condutas que resultem em pequenos danos, de pequena importância, que ingressem no campo penal com uma ofensividade mínima.

Isso posto, o presente artigo busca analisar a aplicabilidade do supracitado princípio, norteador de diversas decisões jurisprudenciais, frente ao delito de descaminho, que se consuma na frustração fraudulenta, integral ou parcial, do pagamento de tributo devido pela entrada ou saída de mercadoria do território nacional.


I) O que é descaminho?

Até 2004, o descaminho e o contrabando constituíam o mesmo tipo penal, reunidos no Art. 334 do Código Penal, por isso também hoje é conhecido como contrabando impróprio, embora seja um crime distinto do previsto no Art. 334-A. O descaminho se consuma no ato de iludir - esse é o verbo utilizado - o pagamento de imposto devido na entrada ou saída de mercadoria do território nacional, prescindindo de obtenção de resultado dessa fraude, portanto é crime formal.

A resolver alguns detalhes sobre o crime, cumpre ressaltar que este não admite forma culposa e o elemento subjetivo é o dolo, independemente de qualquer finalidade específica. É crime comum, ou geral, já que pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive funcionário público, desde que este não tenha o papel de impedir o descaminho, caso em que responderá pela figura do Art. 318 do Código Penal, que é o delito de facilitação de descaminho. Com clareza pode se observar que o sujeito passivo desse delito sempre será o Estado, que tem sua arrecadação tributária afetada.

A competência para julgamento do descaminho é da Justiça Federal, já que ofende interesses da União, e cabe à Polícia Federal a tarefa de prevenir e reprimir o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos.

Em breves palavras, levanta-se dois aspectos importantes sobre o delito de descaminho. O primeiro deles é sobre o esgotamento da via administrativa, do qual a ação penal prescinde para a sua existência, visto que o STF e o STJ entendem que o processo judicial não depende da constituição administrativa do débito fiscal. O segundo diz respeito à não extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido. Embora já tenha sido entendimento majoritário que o pagamento integral do tributo antes do recebimento da denúncia conduzia à extinção da punibilidade, hoje é corrente rechaçada pela jurisprudência, por razões questionáveis, mas não questionadas neste foro.

Por fim, é emergente a importância de elencar as figuras equiparadas do crime em questão, já que muitas vezes são as formas mais vistas no cotidiano.

Art. 334.

§ 1o Incorre na mesma pena quem:

I - pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei;

II - pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho;

III - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem;

IV - adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos.


II) O que é e quando aplicamos o princípio da insignificância?

Como aduzem Capez e Prado, o princípio da insignificância, também chamado de princípio da bagatela, foi introduzido no sistema penal por Claus Roxin e funda-se na ideia de que o Direito Penal não deve se preocupar com acontecimentos pequenos, bagatelas, mas com condutas de maior lesividade. É corolário da ideia de intervenção mínima e última ratio do Direito Penal, no sentido de sua aplicação tão somente no crucial, quando as demais áreas não forem capazes de resolver a situação.

Sobre o princípio, reza Rogério Sanches Cunha:

O legislador, ao tratar da incriminação de determinados fatos, ainda que norteado por preceitos que limitam a atuação do Direito Penal, não pode prever todas as situações em que a ofensa ao bem jurídico tutelado dispensa a aplicação de reprimenda em razão de sua insignificância. Assim, sob o aspecto hermenêutica, o princípio da insignificância pode ser entendido como um instrumento de interpretação restritiva do tipo penal sendo formalmente típica a conduta e relevante a lesão, aplica-se a norma penal, ao passo que, havendo somente a subsunção legal, desacompanhada da tipicidade material, deve ela ser afastada, pois que estará o fato atingido pela atipicidade.

Muitas vezes, o princípio é tratado pela doutrina penal no tópico de tipicidade conglobante, termo que se refere à necessidade de análise do comportamento formalmente típico do agente, isto é, se este, ao fim, além de encontrar moldura em alguma das figuras típicas do nosso ordenamento jurídico-penal, é antinormativo e materialmente típico. Nesse teor, analisa-se se está comprovado, no caso concreto, que a conduta contraria a norma penal e que ofende bens de relevo para o Direito Penal.

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Conectando a tipicidade conglobante ao princípio da insignificância, Rogério Greco elucida:

Princípio da insignificância: Analisado em sede de tipicidade material, abrangida pelo conceito de tipicidade conglobante, tem a finalidade de afastar do âmbito do Direito Penal aqueles fatos que, à primeira vista, estariam compreendidos pela figura típica, mas que, dada a sua pouca ou nenhuma importância, não podem merecer a atenção do ramo mais radical do ordenamento jurídico. Os fatos praticados sob o manto da insignificância são reconhecidos como de bagatela.

[...]

A tipicidade material, a seu turno, que integra o conceito de tipicidade conglobante, seria o critério por meio do qual se afere a importância do bem no caso concreto, sendo o lugar apropriado para a análise do chamado princípio da insignificância.

O efeito da aplicação do princípio da insignificância é a exclusão da tipicidade, não levando o Direito Penal ao que foi praticado pelo agente.

Conforme posicionamento pacífico no STF, transitado com tranquilidade pela doutrina, a insignificância incide quando há mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica causada. Os exemplos mais comuns do recaimento do princípio estão no furto, atos infracionais, crimes ambientais, dentre outros, incluindo o descaminho, que será analisado a seguir.


III) Há duas vertentes, mas as duas afirmam que existe descaminho de bagatela

Com base no Art. 20 da Lei 10.522/2002, que dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais, serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00.

Sendo assim, os Tribunais Superiores firmaram a jurisprudência na esteira de que, se não é relevante no âmbito fiscal, não há porque sê-lo no âmbito penal, já que esse deve atuar somente em último caso, conforme o princípio da intervenção mínima, que desemboca na insignificância.

Em sentido mais amplo que a lei supracitada estão as Portarias 75/2012 e 130/2012, que se referem à inscrição de débitos na Dívida Ativa da União e ao ajuizamento de execuções fiscais pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nas quais o limite é ampliado para R$ 20.000,00.

Diante das duas situações, de lugares diferentes, em datas diferentes, formaram-se dois posicionamentos distintos, adotando limites diferentes.

III.A) O que entende o Supremo Tribunal Federal?

O STF, órgão maior do judiciário brasileiro, optou por seguir o limite mais amplo, na casa dos 20 mil reais, já que, no HC 120.620/RS, de 2014, do relator Ministro Ricardo Lewandowski, concluiu-se que, como as Portarias 75/2012 e 130/2012 são normas mais benéficas aos réus, devem ser imediatamente aplicadas. Conforme o julgamento do Habeas Corpus, a aplicação do princípio da bagatela seria possível porque não haveria reiteração criminosa ou introdução, no País, de produto que pudesse causar dano à saúde.

O autor do artigo concorda com o posicionamento, inclusive à luz do princípio da novatio legis in mellius, ou seja, a lei posterior mais benéfica é retroativa e somente é ultrativa a lei anterior mais benéfica, conforme os ensinamentos de Damásio de Jesus.

III.B) O que entende o Superior Tribunal de Justiça?

De modo diverso, infelizmente, o STJ adotou a linha de pensamento de que somente se aplica o princípio da insignificância se o valor atinge até 10 mil reais.

No julgamento do Recurso Especial nº 1.393.317/PR, de 2014 do relator Ministro Rogério Schietti Cruz, a decisão foi pelo afastamento das portarias mencionadas, considerando que a Lei nº 10.522/2012 não conferiu ao Ministro da Fazenda o poder, por meio de portaria, de alteração do valor fixado como parâmetro para arquivamento de execução fiscal, sem baixa de distribuição. Entenderam os julgadores que o referido aumento só poderia ser feito por força de lei, não por portaria, não podendo o judiciário restar condicionado a medidas de política econômica vigentes no país, por meros critérios de eficiência, economicidade, praticidade e as peculiaridades regionais e/ou de débito. Além disso, ponderou a decisão que só seria considerado o caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal quando o atuar do Direito Administrativo anulasse a lesão ao erário, não quando inerte a Administração Pública do seu dever de cobrar judicialmente os tributos devidos.

A posição foi reiterada no Agravo Regimental ao Recurso Especial nº1.402.207/PR, do mesmo ano, da relatora Ministra Assusete Magalhães.

Com todo respeito às decisões, em síntese, entende-se que estão equivocadas as do STJ, pela não ultratividade da lei mais severa, pelo princípio da bagatela e pela necessidade de adequação do Direito Penal às condições econômicas do momento. A título de exemplo, o furto de um copo d’água no deserto do Saara é crime de alta ofensividade, já em um país tropical é de baixíssima ofensividade. Dez mil reais em 2002 equivalem a muito mais que vinte mil reais em 2019. Caberia ao Direito Penal ampliar para até mais de 20 mil reais o limite, em função da necessidade de atualização das normas à sociedade em que vivemos.


REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando; PRADO, Stela. Código penal comentado. 3ª. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, volume único: parte geral. 3ª ed. – Bahia: Juspodivm, 2015.

GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 11ª. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017.

JESUS, Damásio de. Direito penal, volume 1: parte geral. 36ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte especial – vol. 3. 9ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016.

Sobre o autor
Guilherme Schaun

Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Advogado criminalista. Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal na Verbo Jurídico. Aprovado na OAB em Direito Penal e no Trabalho de Conclusão de Curso acerca da imputação de responsabilidade criminal ao advogado pelo recebimento de honorários maculados. Orgulhosamente ex-estagiário do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHAUN, Guilherme. O princípio da insignificância no delito de descaminho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5809, 28 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73073. Acesso em: 21 nov. 2024.

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