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Roubos a banco em contexto de invasão de cidades: crimes em série e composição do concurso delitivo

Agenda 01/05/2019 às 16:44

O artigo tende a discutir as implicações práticas do reconhecimento do concurso de crimes para a dosimetria da pena privativa de liberdade, especialmente nos recentes casos de composição de roubos, a partir da clara compreensão dos institutos.


1.         Considerações iniciais

A lida de acompanhamento de processos judiciais enseja cotidianamente uma série de reflexões acerca da aplicação de regras. A ponderação entre valores constitucionais e a repercussão das decisões são fatores que permeiam essa avaliação.

Em seara de Direito Criminal essa tensão se acentua, na proporção em que se dimensionam as instabilidades psíquico-emocionais que circundam o encarceramento de indivíduos, a falibilidade do sistema e o desdobramento social e familiar desse tipo de medida.

O estudo do crime e das penas, por óbvio, é tema que desperta mais acentuadamente as discursões dessa natureza.

Inserto nessa seara, o concurso de crimes, componente presente em todos os manuais de ciência criminal, tem obtido, por parte da doutrina, uma abordagem didática e tangível, que, entretanto, parece não repercutir na exata compreensão da matéria, o que se deve a uma possível simplificação dos casos tratados, incompatível com a dinâmica atual.

A definição das modalidades e dos elementos componentes dessas espécies de composição de ilícitos constitui apenas o ponto de partida para o discernimento de sua aplicação. Em ambiente de intensa criminalidade – inegável crescimento da prática de crimes contra a vida e o patrimônio por todo o território nacional na última década -, o aprofundamento do tema urge.

A presente abordagem se insere nessa perspectiva de assimilação do assunto em confronto com a realidade. A partir de definições clássicas, extraídas da doutrina especializada, pretende-se desvendar as hipóteses de aplicação ou não das regras de cômputo de penas no concurso de crimes, especialmente do concurso formal e do crime continuado, em que há predominância do sistema de exasperação, em paralelo ao critério de cúmulo, predominante no concurso material.

Culminância do exame, a possibilidade de composição da continuidade delitiva e do concurso ideal para a fixação da sanção penal é a resposta que se apresenta à complexidade de organizações voltadas para o cometimento de crimes, ressalvando-se, porém, nos termos já delineados por uniforme jurisprudência pretoriana, que o crime feito profissão é incompatível com a percentualização do aumento de pena.

A compreensão do quando e do como incidem essas exasperações é o lugar de chegada almejado.

2.         O concurso

A prática delitiva ocorre, via de regra, de forma autônoma: os crimes se compõem de eventos individualizados. Pode até ocorrer de um tipo penal englobar, a exemplo do roubo (art. 157, caput, do CP), condutas que, de per si, configuram fatos típicos isolados. Isso, porém, não enseja a compreensão de que à sua configuração se faz necessária uma conjugação obrigatória de delitos, mas, tão somente, que se trata de evento humano punido pelo legislador a partir da conjugação de dois ou mais núcleos, tais como subtrair e ameaçar gravemente ou violentar.

O fenômeno jurídico do concurso delitivo alude, necessariamente, a essa autonomia que recai sobre a pessoa do sujeito ativo de praticar um ou mais crimes, tenha ou não ocorrido mais de uma conduta. Não se confunde, pois, com a figura do chamado crime plurissubsistente[1], na medida em que prescinde de atos variados, sendo relevante a produção de mais de um resultado. Neste, tem-se a presença indispensável de múltiplos atos num só tipo, ao passo que no concurso de crimes o que importa é a produção de mais de um resultado delitivo, ainda que advindo de uma só ação. À existência do concurso delitivo se faz indispensável a concorrência de crimes, independentemente da diversidade de atos.

É da essência desse instituto, portanto, a presença de diversidade de delitos, tomada esta num sentido específico, não restrito, pois há concurso de crimes de uma só natureza. Em conceito lúdico, pode-se conceber o objeto dessas parcas considerações como sendo um par de crimes, sem perspectiva de restrição de gênero (formal/material, próprio/impróprio, unissubjetivo/plurissubjetivo, unissubsistente/plurisubsistente, instantâneo/permanente etc) ou de número (dois, três, quatro ou mais crimes).

Contudo, para atender a expectativa do leitor e não frustrá-lo, alude-se, a seguir, ao conceito formal de concurso de crimes. Damásio de Jesus (2010, p. 641), dando ênfase à expressão, destaca que quando duas ou mais pessoas praticam um crime surge o “concurso de agentes”(concursus delinquentium). Quando um sujeito, mediante unidade ou pluralidade de ações ou omissões, pratica dois ou mais delitos, surge o concurso de crimes ou de penas (concursus delictorum).

O mestre paulista, de forma singular, chama a atenção para o fato de que o Código Penal Brasileiro aborda a matéria no Capítulo III do Título V, que trata das penas, motivo pelo qual pareça correto falar em concurso de penas. Entretanto, ainda nas palavras do professor Damásio (2010, p. 640), “a questão deveria ser tratada pelo Código na teoria geral do crime, pois são mais relevantes os problemas relacionados com o delito em geral que com a pena em geral”.

  Obviamente que a importância da matéria não se resume à questão do cúmulo punitivo. Há aumento de pena no concurso em decorrência da forma como os delitos são praticados, qual seja em condição múltipla, afinal a punição a ser aplicada a quem pratica mais de um crime não pode ser a mesma que incide sobre o sujeito ativo de um crime só, adverte Cesar Roberto Bitencourt (2012, p. 771).  

  A definição do concurso de crimes compreende, portanto, a razão pela qual reprimendas devem ser cumuladas mesmo em caso de uma única conduta produzir resultados diversos.  

3.         Espécies de Concurso de Delitos

 A codificação estabelece, a partir do art. 69, as modalidades de concursus delictorum, tratando-as como um desdobramento do capítulo da aplicação da pena, pois não há tópico específico a respeito. Vislumbram-se, a princípio, três espécies de concurso: o material, o formal e o crime continuado.

 A classificação se dá a partir da forma como os resultados são produzidos, tendo como elemento definidor a(s) conduta(s) praticada(s) pelo sujeito passivo.

 Assim, tomando-se por base os elementos do crime, em caso de diversidade de resultados típicos vinculados por um nexo de causalidade, a existência de duas ou mais condutas comissivas ou omissas implicará concurso material de crimes. Por sua vez, diante da existência de resultados múltiplos advindos de uma só ação ou omissão têm-se concurso formal de delitos.

 O concurso material, previsto no art. 69 do Código Penal, ocorre quando o agente, mediante mais de uma conduta, produz dois ou mais resultados, idênticos ou não. O vínculo reside na identidade do sujeito ativo, pouco ou nada importando se os fatos ocorreram na mesma ocasião ou em dias diferentes. Neste caso, devem ser aplicadas, cumulativamente, as penas privativas de liberdade cominadas aos crimes por ele cometidos.

 Por sua vez, há incidência do concurso formal, insculpido no art. 70 do Código Penal, quando o agente, mediante uma única conduta, comete dois ou mais crimes.

 Já o crime continuado, preceituado no art. 71 do Código Penal, é aquele no qual o autor, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os quais, pelas semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução e outras, podem ser tidos uns como continuação dos outros.

Apesar da diretriz legal, verifica-se que o concurso de crimes, na verdade, se desdobra em duas modalidades, sendo o crime continuado uma subespécie de concurso material, pois alude à prática de mais de uma ação ou omissão para a produção de dois ou mais crimes da mesma espécie.

De efeito, a continuidade delitiva consiste no concurso material com a peculiar característica de que os crimes levados a efeito são da mesma espécie, tendo sido praticados em circunstâncias de tempo, lugar e maneira de execução que permitem inferir uma unidade de desígnios (PRADO, 2010, p. 477).  

  Depreende-se, noutra vertente, que a pena a ser aplicada irá variar conforme a espécie de concurso. Por isso, deve-se ter uma maior atenção na análise e aplicação de tal instituto, tendo em vista que uma interpretação/aplicação equivocada de seus dispositivos poderá levar à fixação de penas absurdas e até mesmo irrisórias, não desejadas pelo ordenamento jurídico.

4.         Sistemas de aplicação da pena

 A definição de hipóteses taxativas de concurso de crimes tem uma razão de ser: a fixação de critérios de exasperação das penas correspondentes, daí a localização topográfica da matéria no Código Penal Brasileiro.

 É intuitivo que a punição do agente que pratica múltiplos delitos não pode ser a mesma daquele que incide numa exclusiva infração. Os preceitos secundários estabelecidos em cada tipo penal correspondem, naturalmente, a um só crime. A lógica é simples e manifesta: para cada crime, uma pena correspondente.

 Entretanto, essa máxima não corresponde em absoluto à pedagogia dos preceitos legais que regem a matéria. Há, notadamente nos casos de concurso formal e de crime continuado, uma modulação das penas. Tal se deve em razão da existência de variados sistemas de aplicação que abordam a matéria.

 Sobre o tema, encontra-se no escólio de Júlio Fabrini Mirabete (2000, p. 314) a classificação mais completa. Aponta-nos o penalista a existência de, pelo menos, quatro diretrizes teóricas preconizadas pela doutrina especializada para a aplicação da pena no concurso de crimes:

Do que se vê, à exceção do sistema do cúmulo material, os demais ensejam a aplicação de uma pena peculiar, inferior a que de regra seria cominada em decorrência da diversidade de delitos.

Destarte, a opção do legislador pátrio pela aplicação do sistema da exasperação nas hipóteses de concurso formal e de crime continuado enseja um evidente favorecimento à pessoa do sujeito ativo dos crimes, porquanto instala o cômputo de aumento proporcional, tendo por balizas percentuais estabelecidos na própria lei.

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Em que pese, na prática forense, a não absorção dessa ideia por muitos profissionais, a incidência desse percentual, quando comparada à regra de soma do cúmulo material, beneficia significativamente a minoração das reprimendas aplicadas. Ressalvadas as exceções dispostas nos próprios dispositivos legais, em casos de aplicação dos arts. 70 e 71 do CP as penas dificilmente atingirão o patamar vigente para o concurso material.

5.         Considerações acerca do Concurso Formal e do Crime Continuado

            Dentre as modalidades de concurso de crimes previstas no Código Penal, merecem destaque, por consistir em desdobramento do sistema da exasperação, as hipóteses de concurso formal e de crime continuado. Na verdade, como já antes enfatizado, o crime continuado consiste em categoria específica do concurso material, com ênfase para as suas peculiaridades.

            O concurso formal, segundo descrição do caput do art. 70 da codificação, caracteriza-se pela particularidade de exigir uma só ação como base de dois ou mais crimes, ao que se adita a consequência de uma pena aumentada de 1/6 até 1/2.

 Alude-se comumente à classificação do concurso formal em homogêneo/heterogêneo e próprio/impróprio.

 A primeira classe diz respeito à espécie dos crimes, valorizada no âmbito da continuidade delitiva, mas desconsiderada pelo legislador na seara do concurso ideal: “pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não”. Essa distinção, portanto, tem repercussão meramente acadêmica, implicando apenas na desnecessidade prática de escolher a pena mais grave para fixação da dosimetria.

As categorias “próprio” e “impróprio”, por sua vez, tomam por base o preceito legal. O primeiro, também chamado de perfeito, refere-se à primeira parte do art. 70, em que há unidade de desígnios, ao passo em que o impróprio ou imperfeito tem relação com o segundo momento desse dispositivo (os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos), com destaque para a imprescindibilidade do elemento dolo, afinal há intenção (desígnio) em ambos os crimes.

O acréscimo da pena decorrente do concurso formal é compulsório e a escolha do percentual deve ser devidamente justificada pelo juiz, ressalvando-se, quanto ao concurso formal imperfeito, a regra do cúmulo material. Assim, se o sujeito ativo atinge duas vítimas, com intenção de matar apenas a primeira (dolo) e eximir de qualquer risco a segunda (responde por culpa), terá, em consequência desse fato, contra si cominada uma pena de homicídio, aumentada de percentual correspondente ao segundo delito.

Sob angulação diversa, tendo assumido o risco de matar também a segunda vítima (dolo eventual) implicará na fixação de duas penas, sendo uma decorrente do evento morte e a outra da lesão.

No primeiro caso, porém, o aumento de pena decorrente do concurso não pode extrapolar o critério da adição, aplicado no âmbito do concurso material, sob pena de violação ao disposto no parágrafo único do referido preceito.

Vale frisar que, em sede jurisprudencial, cunhou-se o entendimento, hoje prevalecente, de que a incidência do acréscimo encontra correspondência na quantidade de crimes praticados. Dessa forma, apontam-se válidos os seguintes aumentos: 1/6 quando há dois crimes concorrentes; 1/5 em caso de três crimes; 1/4 na hipótese de quatro crimes; 1/3 na ocasião de serem em número de cinco os crimes; 1/2 se o concurso é de seis ou mais crimes.

No que toca ao crime continuado ou continuidade delitiva, por se tratar de especialidade do concurso material (mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes), contém, no bojo de sua definição, uma série de elementos cuja análise é inafastável para a compreensão da matéria. Diz-nos a codificação que há crime continuado quando o agente pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro.

Acerca da natureza jurídica do instituto, há registro de três teorias em sede da doutrina (PRADO, 2010, p. 477/478):

  1. Teoria realista ou da unidade real: as condutas praticadas pelo sujeito ativo compreendem um só crime, pois o que vale é a intenção. Alude PRADO (2010, p. 478) à alegoria de uma corrente, em que as ações são os arcos que integram o todo;
  2. Teoria da ficção jurídica: é indubitável que há vários crimes, sendo a unidade delitiva uma inovação legal. Dessa forma, só é dado falar em continuidade como obra de uma ficção jurídica. Defendida por Noronha, é adotada pelo Código Penal Brasileiro que estabelece um fator de exasperação da pena;
  3. Teoria da unidade jurídica ou mista: defende a existência de uma figura típica própria, um terceiro crime de concurso, que constitui uma realidade jurídica e não uma ficção. A unidade delituosa, portanto, decorre da lei, sendo desnecessária a abordagem unidade/pluralidade de crimes.

O crime continuado, por sua vez, não se confunde com o habitual, por se tratar de modalidade que só se configura com a reiteração de atos que, de per si, não constituem delito, característica essencial para sua distinção do primeiro. Apenas com a pluralidade de atos haverá crime. Também não se mistura com o crime permanente, espécie delitiva cujo resultado se prolonga no tempo, muito embora se consume numa única conduta. O crime permanente pode até integrar um concurso de crimes, mas dele se diferencia por compreender um tipo específico.

Noutro giro, a habitualidade criminosa corresponde à prática reiterada de crimes, o que, em princípio, pode se dar por meio de um concurso, entretanto, a continuidade delitiva não implica habitualidade, haja vista a aludida unidade de desígnios, que naquela inocorre, pois o agente exerce a criminalidade como profissão, fazendo dela um estilo de vida indesejado pela lei penal (NUCCI, 2009, p. 182).

A distinção entre habitualidade criminosa e continuidade delitiva remete à presença de elemento subjetivo neste último, qual seja a unidade entre os eventos delituosos, fato, porém, ensejador de controvérsia na doutrina.

Acerca do assunto, é dado enfatizar a existência de três posições: i) apenas a unidade de propósito caracteriza o crime continuado (aspecto subjetivo); ii) para a configuração da continuidade delitiva, deve se dar, tão somente, o exame de condições objetivas (tempo, lugar, maneira de execução), sem necessidade de averiguar a intenção do agente; iii) o exame do crime continuado requer a convergência de elementos objetivos e subjetivos.

Por ocasião da reforma da parte geral do Código Penal (Lei nº 7.209/84), indicou-se expressamente na exposição de motivos a adoção da teoria objetiva pura, a justificar a referência, no texto legal, apenas de elementos objetivos. Eis a transcrição do item correspondente[2]:

59. O critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva. O Projeto optou pelo critério que mais adequadamente se opõe ao crescimento da criminalidade profissional, organizada e violenta, cujas ações se repetem contra vítimas diferentes, em condições de tempo, lugar, modos de execução e circunstâncias outras, marcadas por evidente semelhança. Estender-lhe o conceito de crime continuado importa em beneficiá-la, pois o delinquente profissional tornar-se-ia passível de tratamento penal menos grave que o dispensado a criminosos ocasionais. De resto, com a extinção, no Projeto, da medida de segurança para o imputável, urge reforçar o sistema destinando penas mais longas aos que estariam sujeitos à imposição de medida de segurança detentiva e que serão beneficiados pela abolição da medida. A Política Criminal atua, neste passo, em sentido inverso, a fim de evitar a libertação prematura de determinadas categorias de agentes, dotados de acentuada periculosidade.

Ocorre que esta não é a posição que vem prevalecendo em sede jurisprudencial, sendo que ambas as turmas do STF entendem pela necessária evidência do elemento subjetivo à caracterização da continuidade[3].

Na verdade, tendo presente a realidade atual, a adoção da teoria objetivo-subjetiva atende à completude do sistema, na medida em que segrega o benefício da continuidade da atuação de associações criminosas voltadas à prática ilimitada de crimes, fundando o entendimento pretoriano de incompatibilidade com a habitualidade delitiva. Ademais, como enfatizado por Luiz Régis Prado, essa posição se coaduna com a diretriz finalista do Código Penal (2010, p. 478).

Em tema de aspectos objetivos, é devido enfatizar a leitura que os tribunais pátrios estão dando à matéria. 

Quanto à expressão crimes da mesma espécie, o STJ e o STF ponderam tratar-se de crimes previstos no mesmo tipo penal, com proteção ao mesmo bem jurídico. A interpretação é de tal forma restritiva que mesmo entre roubo qualificado e latrocínio não se infere possível a continuidade[4].

Para que haja crime continuado, é indispensável que os ilícitos sejam previstos no mesmo dispositivo legal e protejam o mesmo bem jurídico.

No concernente ao tempo, firmou-se posição no sentido de que, para ocorrência da continuidade delitiva, não pode ter se passado um longo período de tempo entre um crime e outro. Para os crimes patrimoniais, a jurisprudência afirma que entre o primeiro e o último delito não pode ter perdurado mais que trinta dias. Se houve período superior a esse, não se aplica mais o crime continuado, havendo, neste caso, concurso material. Contudo, no âmbito da Ação Penal 470, o STF reconheceu a incidência da continuidade em caso de crimes praticados com período de abrangência superior a um ano.

Ainda segundo a jurisprudência, “semelhantes condições de lugar” significa que os delitos devem ser praticados dentro da mesma cidade, ou, no máximo, em cidades contíguas. Ademais, para que haja continuidade delitiva, os crimes devem ter sido praticados com o mesmo modus operandi, ou seja, com a mesma maneira de execução (mesmos comparsas, mesmos instrumentos etc.).

Além das condições referidas no caput do art. 71, o parágrafo primeiro correspondente aponta hipótese de aumento de até o triplo nos casos de crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.  Esses são elementos objetivos próprios do chamado crime continuado específico (contraponto ao delito continuado comum, previsto no caput). A força da expressão utilizada aponta para uma continuidade exclusiva dos crimes dolosos e que abrange até mesmo os casos de crimes contra a vida, a denotar superação da Súmula 605 do STF[5], fato já assentido pela Suprema Corte[6].

  Em matéria de pena, é disseminada a adoção da mesma estratégia de aplicação dos percentuais de aumento, à identidade do que ocorre no concurso formal. Dessa forma, haverá a aumento de 1/6 quando o concurso envolver 2 delitos; 1/5 em caso de 3 crimes em continuidade; 1/4 na ocasião de 4 crimes praticados; 1/3 se ao todo foram cometidos 5 delitos; 1/2 nos concursos envolvendo 6 crimes; 2/3 sendo 7 ou mais os crimes cometidos.

6.         Crime Continuado e Concurso Formal no mesmo contexto fático de crimes contra o patrimônio:

A imprensa escrita e falada tem noticiado, cada vez com mais frequência, a ação de grupos armados em cidades do interior do país promovendo assaltos em série a vários estabelecimentos bancários e comerciais de uma mesma localidade. Essa prática, vulgarmente chamada de “arrastão”, consiste em reiterados crimes de roubo mediante rendição do aparato policial do lugar.

Nos estabelecimentos, os membros da associação criminosa recolhem pertences e valores da empresa, dos proprietários e até mesmo dos clientes, caso dos celulares, carteiras, bolsas e joias. A cena se repete duas, três, quatro ou cinco vezes, inclusive simultaneamente, a depender da organização do grupo armado.

Diante de tais fatos, comumente se indaga acerca do concurso delitivo inegavelmente praticado.

Em um primeiro instante, resta patente a existência de concurso formal, na medida em que a abordagem em cada estabelecimento se reveste de unidade – uma ação armada, com emprego de violência ou grave ameaça – seguida de vários resultados, consistentes na subtração do patrimônio das várias vítimas. 

 A sequência de reprodução dos atos, porém, impele a identificação de novos crimes de roubo reproduzidos em um mesmo contexto de tempo, lugar e maneira de execução, sendo viável extrair, em princípio, uma programação sucessiva de ações (unidade de desígnios), típica do crime continuado.

Resta saber, portanto, se há predominância de concurso formal ou de continuidade delitiva.

 A resposta que melhor se nos apresenta parece ser no sentido de que há configuração de ambos, com possibilidade de duplo aumento da pena.

 Inexiste óbice legal ao reconhecimento de vários concursos em um mesmo contexto fático, de forma que à composição do concurso material pode concorrer um concurso formal de delito. Cumpre reiterar que a continuidade delitiva constitui espécie daquele.

 Demais disso, como já visto, a aplicação das regras de punição previstas para o concurso formal e a continuidade delitiva favorecem o réu, diminuindo a quantidade de pena total, quando comparada ao cúmulo do concurso material. Sob esse prisma, o reconhecimento do benefício deve ser buscado pela própria defesa.

Não há falar, na espécie, em vedação de bis in idem, pois a aplicação do concurso formal contempla apenas as ações deflagradas em cada estabelecimento – a unidade de desígnios refere-se aos crimes praticados num mesmo ambiente físico, mediante emprego de uma só violência ou grave ameaça -, sendo devido afirmar a existência de vários concursos formais, quantos forem as ações perpetradas. Impossível defender a existência de uma só conduta – elementar do concurso ideal – quando evidenciada nova ação criminosa a cada novo estabelecimento invadido e objeto de subtração, ressalvando-se, ainda, a possibilidade de coexistir concurso material em face de delito que não seja da mesma espécie.

  Em matéria de cominação da pena, reputa-se devida a aplicação das mesmas regras, tendo por base a quantidade de concursos formais praticados. Assim, tomando por base a maior pena aplicada, haverá acréscimo dos percentuais de 1/6 a 2/3. Remanescendo crime que não seja da mesma espécie, proceder-se-á conforme o disposto no art. 69 do CP.

   Um exemplo auxiliará a compreensão:

   Imagine-se que quadrilha armada invadiu a companhia policial de pequena cidade do interior, ocasião em que subtraiu as armas e os celulares dos dois policiais que se encontravam no local, assim como a viatura policial e os coletes à prova de bala.

   Tendo neutralizado a ação da polícia, de lá se deslocaram a três estabelecimentos: uma agência dos correios, a agência de um banco privado e uma lotérica. Nas três situações foram recolhidos os numerários depositados e os pertences das vítimas. Por fim, na saída da cidade, o grupo tentou subtrair um veículo pertencente a um policial civil à paisana que trafegava na rodovia, tendo este revidado os tiros e tombado morto.

    Na hipótese, identificam-se os seguintes crimes praticados com os respectivos concursos:

Crime

Vítima(s)

Concurso

Pena

Roubo de armas, coletes, pertences e viatura policial

O Estado e os dois policiais

Concurso formal de 3 crimes de roubo majorado

A mais grave, acrescida do percentual 1/5

Roubo de valores depositados na agência dos Correios e pertences dos clientes e empregados da EBCT

A EBCT, dois funcionários e três clientes que se encontravam no local

Concurso formal de 6 crimes de roubo majorado

A mais grave, acrescida do percentual de ½

Roubo de valores depositados na agência do banco privado e pertences de dois empregados e dois clientes

O banco, dois funcionários e dois clientes

Concurso formal de 5 crimes de roubo majorado

A mais grave, acrescida do percentual de 1/3

Roubo de valores depositados na lotérica e pertences do único atendente e de dois clientes

O proprietário do estabelecimento, o atendente da lotérica e os dois clientes

Concurso formal de 4 crimes de roubo majorado

A mais grave, acrescida do percentual de 1/4

Latrocínio

Policial à paisana

-

-

Ao analisar-se a situação hipotética, identifica-se a existência de uma continuidade delitiva a englobar as quatro ações de roubo (contra o distrito policial, a agência dos Correios, a agência do banco e a lotérica).

Na aplicação da pena concreta, o juiz deverá reconhecer o concurso formal e acrescer o percentual correspondente a cada ação. Ao final, tendo por base a pena mais grave (possivelmente a decorrente do roubo à agência dos Correios, cujo percentual de aumento foi de metade), deverá acrescê-la do percentual de ¼ (correspondente às 4 ações) ou mesmo, em caso de reconhecimento das circunstâncias que ensejam a aplicação do parágrafo primeiro do art. 71 do CP, aumenta-la de até o triplo.

Por derradeiro, será devida a soma dessa pena à equivalente ao latrocínio, uma vez que não é crime da mesma espécie, a inviabilizar o reconhecimento da continuidade, sendo caso de concurso material geral.

A despeito da complexidade da aplicação da pena, não se identifica prejuízo aos réus, pois afastada a possibilidade de composição dos concursos formal e do crime continuado, todas as reprimendas seriam cumuladas, o que redundaria numa punição final vultuosamente diversa.

Por outro lado, advogar a tese da existência de concurso formal, apenas, é defender a impunidade dos delitos subsequentes, ante o fato de que houve ações diversas e não uma única e exclusiva ação.

7.         Considerações finais

O instituto do concurso de crimes, no que toca ao concurso ideal e à continuidade delitiva, tal como previstos no Código Penal, consiste em estratégia de política criminal de fixação de pena, levando em conta certas circunstâncias que denotam unidade de ação ou de desígnio, constituindo autênticos benefícios, pois a sua incidência favorece demasiadamente o réu.

Essa noção basilar, a despeito de simples, não foi assimilada por parte de alguns operadores do direito que não distinguiram o seu caráter alternativo à regra geral do concurso material, razão pela qual muito se refuta, indistintamente, a aplicação desse institutos.

A definição do crime, como cediço, compreende a tipicidade, a antijuridicidade e culpabilidade, de forma que havendo uma ou mais condutas típicas, não admitidas pelo mesmo ordenamento como legítimas – e, portanto, lícitas – praticadas por um sujeito imputável, haverá, necessariamente, como resultado uma pena.

O estudo do concurso de crimes implica, pois, na compreensão de que, regra geral, existindo multiplicidades dessas condutas ditas típicas, as penas serão aplicadas cumulativamente, isto é, mediante um procedimento simples de adição. Veja-se, aliás, que o concurso material de crime dispensa a necessidade de conexão entre os fatos delitivos, de maneira tal que um indivíduo pode ter praticado dois ilícitos em contextos diversos (datas, vítimas, motivação, espécies de crime) e ser denunciado, processado e até condenado conjuntamente por ambos. Mesmo em caso de processos distintos, o concurso material pode ser reconhecido em sede de execução de pena.

Entrementes, o reconhecimento do concurso formal ou do crime continuado traz incutido um axioma atribuído a esse fator unidade, tendo o legislador imputado a tais hipóteses legais a benesse da simplificação da pena. Desde sua origem, essa regulamentação tem natureza humanitária, fato que persiste nos dias atuais.

Ao se afastar a incidência de sua aplicação, obrigatoriamente impele-se a incidência da regra do cúmulo material, salvo a remota hipótese de prova da inexistência de crimes. Com efeito, a defesa, no âmbito do processo penal, deve advogar, em caso de comprovada diversidade de crimes, a tese do concurso ideal ou da continuidade delitiva como alternativas ao cúmulo.

Entretanto, a benesse disseminada com a aplicação do concurso formal e mesmo do crime continuado não deve inviabilizar a possibilidade de composição de ambos, com dupla apenação. Em circunstâncias de crimes praticados com peculiar complexidade, caso de ocorrência ordenada de delitos contra patrimônios diversos, a possibilidade de composição de ambas as modalidades de concursos é indubitável e deve ser vista, ainda, sob o enfoque da minoração da reprimenda, pois, do contrário, ocorrerá adição das penas, nos termos preconizados ao concurso material.

A defesa de aglutinação de um instituto noutro, com punição exclusiva por concurso ideal ou continuidade delitiva constitui promoção e estímulo à impunidade, na medida em que se identifica diversidade de intenções e, portanto, de concursos, devendo ser rechaçada.

Por outro lado, a disseminação de associações criminosas por todo o país, com atuação voltada ao cometimento de delitos, notadamente em face de instituições financeiras e prestadoras de serviço de correspondente bancário, reclama ponderação na aplicação das penas do crime continuado.

Com intenso aparato à base de explosivos, esses grupos têm promovido delitos em série no interior do país, onde a fragilidade de segurança é mais acentuada. Surge, então, na prática forense, um conflito acerca da aplicação do benefício a essas hipóteses de orquestrada afronta à ação do Estado e ao patrimônio das vítimas.

A solução, certamente, reside na interpretação já conferida pela jurisprudência dos tribunais superiores no sentido de que a habitualidade na prática delitiva afasta a incidência da continuidade delitiva, aplicando-se, em hipóteses tais, as disposições do concurso material.

Vale salientar que tal elementar já integra a definição do próprio tipo de associação criminosa (art. 288 do CPP). Porém, por se tratar de crime de perigo abstrato, a prática indefinida de delitos, embora conste do dispositivo como elemento normativo teleológico, não é exigido a título de consumação.

Destarte, a punição da quadrilha voltada à prática de delitos efetivamente já executados, estando evidenciada a habitualidade, inviabilizará a punição desses atos com reconhecimento do favor do crime continuado.

Em tempo de dinâmica criminosa, a análise percuciente da atuação de associações delitivas ditará a incidência ou não das modalidades de concurso de crimes em que há exasperação, de forma que o exame de elementos puramente objetivos - e até mesmo subjetivos, quando assimilados sob aspecto estritamente pessoal – não se afigura suficiente, sendo relevante indagar acerca da frequência delitiva.

Referências:

BITENCOURT, Cezar. Tratado de Direito Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2010.

MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral. Vol. 1. 3 ed. São Paulo: Ed. Método, 2010.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Vol. 1. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2000.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Parte geral e parte especial. 6 ed. São Paulo: RT, 2009.

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 9 ed. São Paulo: RT, 2010.


[1] Na definição de Masson (2010, p. 181), crimes plurissubsistentes são aqueles cuja conduta se exterioriza por meio de dois ou mais atos, os quais devem somar-se para produzir a consumação.

[2] Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=82614. Acesso em 17.06.2016, às 22h35.

[3] Nesse sentido: HABEAS CORPUS. PENAL. PACIENTE CONDENADO POR DOIS CRIMES DE ESTUPRO. ALEGAÇÃO DE CONTINUIDADE DELITIVA. NÃO OCORRÊNCIA DAS CONDIÇÕES OBJETIVAS E SUBJETIVAS. IMPOSSIBILIDADE DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO PROBATÓRIO PARA ESSE FIM. REITERAÇÃO CRIMINOSA. AÇÕES AUTÔNOMAS. ORDEM DENEGADA. I – O decisum ora atacado está em perfeita consonância com o entendimento firmado pelas duas Turmas desta Corte, no sentido de que “não basta que haja similitude entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares). É necessário que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar-se, de plano, terem sido os crimes subsequentes continuação do primeiro”, sendo certo, ainda, que “o entendimento desta Corte é no sentido de que a reiteração criminosa indicadora de delinquência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado” (RHC 93.144/SP, Rel. Min. Menezes Direito). II - A jurisprudência deste Tribunal é pacífica no sentido da impossibilidade de revolvimento do conjunto probatório com o fim de verificar a ocorrência das condições configuradoras da continuidade delitiva. III - Ordem denegada. (HC 114725, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 04/06/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 14-06-2013 PUBLIC 17-06-2013).

[4] EMENTA: AÇÃO PENAL. Delitos de roubo qualificado e de latrocínio. Crime continuado. Reconhecimento. Inadmissibilidade. Tipos de objetividades jurídicas distintas. Inexistência da correlação representada pela lesão do mesmo bem jurídico. Crimes de espécies diferentes. HC denegado. Inaplicabilidade do art. 71 do CP. Não pode reputar-se crime continuado a prática dos delitos de roubo e de latrocínio. (HC 87089, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 02/06/2009, DJe-118 DIVULG 25-06-2009 PUBLIC 26-06-2009 EMENT VOL-02366-02 PP-00222 RTJ VOL-00220-01 PP-00388).

[5] Enunciado da Súmula 605 do STF: “Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida”.

[6] "O Código Penal determina, expressamente, no parágrafo único de seu artigo 71, seja aplicada a continuidade delitiva também nos crimes dolosos contra a vida. Essa norma, resultado da reforma penal de 1984, é posterior à edição da Súmula 605/STF, que vedava o reconhecimento da continuidade delitiva nos crimes contra a vida." (HC 93367, Relator Ministro Eros Grau, Segunda Turma, julgamento em 11.3.2008, DJe de 18.4.2008)

Sobre o autor
Klésio Araújo de Medeiros

Graduado em Direito pela UFRN. Pós-graduado em Processo Civil pela UFRN. Analista Judiciário da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Ex-professor do Curso de Direito da UFRN e FACEP.

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