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A INSPEÇÃO DO TRABALHO E A PROIBIÇÃO DO SERVIÇO EXTRAORDINÁRIO EM JORNADAS DO TIPO 12X36

passando a limpo alguns conceitos (nada) banais sobre a duração do trabalho

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Agenda 13/05/2019 às 15:22

Pretende-se analisar, revendo certos conceitos sobre duração do trabalho, a posição atualmente defendida pela Inspeção do Trabalho brasileira, em torno da impossibilidade da prorrogação da jornada de trabalho,quando laborada em regimes do tipo 12 x 36,

Introdução

              Ao interpretar o direito do trabalho como uma unidade composta de um núcleo normativo, encapsulado por uma envoltura protectora (CUEVA, 1965, p. 291), Mario de la Cueva parece aderir à cosmologia heraclitiana, afirmando que o direito não é, senão um eterno vir-a-ser. Quem sabe, então, seguindo a lição monadológica de Jean-Gabriel Tarde, Cueva queira dizer que o direito “deseja” ser, ou melhor, haver (TARDE, 2007). Direito que não , não é direito. A razão do direito é, portanto, tornar-se, haver-se, transmutar-se em realidade vivida. A razão do direito é realizar-se como direito.

              Esse intróito jusfilosófico se presta, tão só, para afirmar que a envoltura protetora do direito do trabalho concentra as instituições e institutos jurídicos que garantem a realização do direito do trabalho como práxis, da qual fariam parte a Inspeção do Trabalho, o direito processual do trabalho e os institutos do direito coletivo do trabalho.

              Para o caso brasileiro, penso, contudo, que não se devem reduzir estes institutos a meros avalizadores da parte nuclear do direito do trabalho (GOMES, 1988), pois constituem, eles mesmos, geratrizes auto e heteronormativas em sentido estrito. Quando abstratas, manifestam-se na forma de convenções e acordos coletivos, portarias e instruções baixadas pelo Ministério do Trabalho, e mesmo de um improvável “código penal-trabalhista: o ‘Ementário’[1]; quando individuais e casuísticas (KELSEN, 1999), temos as sentenças judiciais e as decisões administrativas, incluindo as de cunho punitivo.

              Tomando a Inspeção do Trabalho como recorte, afirma-se que qualquer exame mais cuidadoso do nosso direito do trabalho, ciencia enquanto se hace (KNORR-CETINA, 2005), deve distinguir o Sistema de Inspeção do Trabalho, desde a instância formuladora da política fiscal, até a ação dos chamados Agentes da Inspeção, como uma fonte profícua de proposições jurídicas. Nesse sentido, reduzir a Inspeção do Trabalho a uma mera instância de controle e vigilância significa ignorar sua capacidade criadora e de ressignificação de sentido do próprio direito do trabalho (ASSUMPÇÃO, 2018). Parece indubitável, portanto, que qualquer entendimento em processo de formulação e consolidação, no âmbito da burocracia inspecional, interessa tanto à comunidade do discurso jurídico, quanto aos sujeitos que integram o “mundo do trabalho”.

              Por essa perspectiva, justifica-se o tema deste ensaio; qual seja, a formulação de que, supondo o cumprimento estrito das jornadas de trabalho fixadas em regime de 12 x 36[2], isto é, doze horas de trabalho intercaladas por 36 horas de descanso, o trabalhador a ela submetido não poderia realizar serviço extraordinário (CRFB/88, art. 7º, inc. XVI).

              Diga-se isto, porque a realização de horas extras comprometeria o descanso de 36 horas, que neste caso teria, mutatis mutandis, a mesma função do intervalo interjornadas mínimo de onze horas (CLT, art. 66).

              Não se trata, obviamente, de um óbice absoluto. Na hipótese em que se exija a prática do serviço extraordinário, que assim o seja, desde que se garanta o intervalo (mínimo) de 36 horas entre a jornada expandida e a próxima.

              Na prática, contudo, as jornadas realizadas em regime de compensação de horários, do tipo 12 x 36 se aplicam, no mais das vezes, a formas organizativas de trabalho bastante rígidas, de modo que as flutuações no horário de início da jornada seguinte, na hipótese de prorrogação da anterior, não se afigura como estratégia plausível, no âmbito da gestão e controle organizacional da duração do trabalho.

              Observa-se que mesmo o serviço extraordinário costuma ser evento raro, uma vez que a reprodução contínua do trabalho depende das rendições de turno em intervalos aproximadamente invariáveis e precisos. Nesse sentido, as poucas horas que eventualmente sucedam a jornada completa de doze horas se devem, normalmente, a problemas nas rendições, impondo às empresas a execução de um “plano B”[3], cuja regulamentação se verifica, com frequência, em cláusulas de acordos e convenções coletivas.

              Há amiúde, contudo, o evento da “dobra”, talvez mais corriqueiro que a prorrogação “ordinária”, sobretudo em atividades cuja continuidade se imponha pelo interesse público, como seria o caso do transporte coletivo de passageiros (art. 30, V, CRFB/88). Diz-se “dobrar a escala” quando o trabalhador, por qualquer razão, não é rendido, e segue trabalhando até o final da jornada subsequente, seja mediante o pagamento das horas extras correspondentes, seja para compensação incidental futura.[4]

              Neste caso, não há dúvida; trata-se de flagrante excesso de jornada, haja vista a extrapolação do limite de duas horas para o serviço extraordinário, fixado no art. 59, caput, da CLT.

1. Os intervalos interjornadas

              É possível que se estranhe o uso do plural: “intervalos interjornadas”, sugerindo a existência de mais de um tipo, entre os quais haveria uma distinção quanto à “natureza jurídica”, para além das possíveis variações de duração. Tal sugestão, mais do que isso, é uma constatação, e relativamente óbvia, como se pretende demonstrar.

              Quando se fala em intervalo interjornadas, remete-se ordinariamente ao dispositivo inserto no art. 66 da CLT. Trata-se, em verdade, de um intervalo “mínimo” [de onze horas], abaixo do qual não se concebe idealmente o descanso do empregado, entre duas jornadas de trabalho.

              Trata-se, pois, de um intervalo-garantia, uma regra abstrata (ope legis) de proteção do trabalhador, no que se refere à duração do trabalho. Um marco civilizatório, diriam juristas e sociólogos.

              Há, contudo, um segundo intervalo interjornadas, que se distingue do anterior em razão de sua normatização e de seus efeitos jurídicos. Trata-se do intervalo “contratual”, aquele fixado, expressa ou tacitamente, como uma regra do contrato. Diferente do outro, de natureza garantista[5] e indisponível, regulado por norma imperativa e cogente, o intervalo contratual é fixado por regra dispositiva, pois tendo a mesma natureza do contrato de trabalho, está sujeita a mutações que, nos limites da lei (CLT, 468), dispensam qualquer formalidade. Até certo ponto, tal intervalo vai ao encontro do mantra liberal clássico da liberdade do trabalho, isto é, “the liberty of adult men to work as long or as short a time as they like” (JEVONS, 1882).

              Para um trabalhador que labore oito horas diárias, tem-se como o intervalo-garantia as mesmas onze horas previstas no art. 66, CLT, enquanto o intervalo interjornadas contratual seria de dezesseis horas, período que dista o término de uma jornada (fixada em contrato) e o início da próxima (também fixada em contrato).

               Como já foi dito, a cláusula que dispõe sobre o intervalo interjornadas contratual pode ser tácita, como ocorre com o conjunto de possibilidades de jornadas de trabalho reunidas sob a denominação “jornada normal”[6], ou expressa, como se dá – em regra – no caso das jornadas excêntricas ou extravagantes, que são aquelas ampliadas por meio de mecanismos compensatórios (compensação de horários), tal como previsto no inc. XIII, do art. 7º da CRFB/88. A jornada de 12 x 36 é uma dessas exceções, em que a atipicidade da jornada impede que sua definição se presuma (praesumi non debet), e tal circunstância costuma “contaminar” a fixação do intervalo interjornadas contratual, mormente quando tanto a jurisprudência da Justiça Trabalhista, quanto o Ministério do Trabalho[7] restringem a validade da jornada de doze horas à conjugação de seu correspondente ideal, seu “par perfeito”, o intervalo interjornadas de trinta e seis horas.

              Decerto que é de todo conveniente que, diante de uma jornada contratual (ou legal)[8] extravagante (acima de oito horas), que só é possível através de compensação de horários, e, por isso mesmo, exige fixação expressa, o intervalo interjornadas também o seja. Mas disso não vai muito além, ou seja, de mera conveniência, não se convertendo, pois, em condição (necessária) de validade do regime de jornada extravagante.

              A exigência de fixação da jornada, seja ela normal ou extravagante, advém do mesmo dispositivo celetista (art. 62, I, a contrario sensu). No caso das jornadas extravagantes, a fixação expressa serve ao importante propósito de contornar a regra – o limite constitucional de oito horas diárias – acima do qual se irá presumir a prorrogação da jornada (e não sua compensação futura), e o consequente pagamento de horas extras. Demais disso, o princípio da primazia da realidade nos dá conta de que os contratos de trabalho não se aperfeiçoam com a disposição recíproca de vontades, mas com a sua execução cotidiana. O intervalo interjornadas, seja qual for a duração do trabalho diário, será aquele realizado e reprisado à medida que o contrato se realiza no tempo e no espaço, independentemente de sua disposição expressa.

              Nesse sentido, deve-se fixar às claras a jornada extravagante, porquanto do contrário se presumiria a jornada normal, e o que além desta se trabalhe, seria considerado prorrogação. Contudo, o mesmo não ocorre com o intervalo interjornadas, ainda que diante de uma jornada extravagante.

              A jornada de 12 horas diárias não é (considerada) válida PORQUE o intervalo interjornadas é de 36 horas. Não há uma proporcionalidade ideal ou necessária. Doze horas de jornada não está para trinta e seis de descanso, assim como a jornada de vinte e quatro não está para um descanso necessário de setenta e duas horas. Se assim fosse, e obedecendo tal proporção, teria que se admitir também a regressão: uma jornada de oito horas impõe como intervalo interjornadas “necessário” o período de 24 horas, quando se sabe muito bem que o intervalo-padrão entre duas jornadas de oito horas, sem prorrogação, é de 16 horas. Ao revés, se tomarmos a proporção jornada/descanso de 8/16, o descanso interjornadas padrão, para uma jornada de 12 horas, seria 24 horas, e não 36 horas.

               Pode-se objetar, contudo, que a necessidade de fixação expressa do intervalo de 36 horas, quando da jornada de 12 horas, ocorre porquanto haveria de se tornar um intervalo-garantia, assim como o é o interregno de onze horas, quando das jornadas consideradas “normais”. No entanto, esse argumento também não prospera, visto que tanto a jornada extravagante, quanto o intervalo que as separa são disposições contratuais e, portanto, negociáveis. Por mais rígida que seja tal cláusula, a perspectiva garantista não se aplica ao caso. Não se trata da concessão do intervalo, esta, sim, uma exigência incontornável, mas do seu dimensionamento, limitado, por baixo, às onze horas previstas em lei. Portanto, nesse espaço de atuação, o dimensionamento do intervalo interjornadas não pertenceria ao rol de “derechos inviolables y no negociables, que tienen el valor de leyes del más débil como alternativa a otros límites y vínculos a la ‘libertad salvaje y desenfrenada’” [...]. (FERRAJOLI, 2010, p. 287).

              O que aqui se propõe fica ainda mais evidente, quando se vislumbram outros arranjos possíveis para as jornadas de doze horas, como é o caso dos turnos fixos durante três ou quatro dias consecutivos, seguidos de três ou quatro dias de descanso, também consecutivos, tão comuns no ramo siderúrgico. Em se tratando de turnos fixos, não há muita polêmica em torno de tal possibilidade[9], até porque, à maneira das semanas espanholas[10], a quantidade de horas semanais de trabalho, em média, fica até abaixo do limite de 44 horas, fixado no inc. XIII do art. 7º da CRFB/88. Nesse caso, tem-se que o intervalo entre as jornadas de doze horas, no trecho da semana trabalhada, é fixado, também, em doze horas.

              O intervalo de 36 horas, quando da jornada de trabalho de 12 horas, acabou se tornando uma espécie de “regra de ouro”, dada sua conveniência matemática, porque é o menor interregno possível em que turnos fixos, distados por intervalos fixos, são acomodados no interior da semana, sem que comprometa o limite constitucional de 44 horas semanais, pelo critério das semanas espanholas (média intersemanal), ao tempo que também contempla o direito do patrão de explorar a mão-de-obra contratada, até o limite autorizado pela Constituição.

              Então temos que: 1) o intervalo interjornadas de 36 horas, quando da jornada trabalhada de 12 horas, não tem natureza garantista, ou seja, de intervalo mínimo abstrato, inegociável e independente do dimensionamento da jornada de trabalho; 2) trata-se de um intervalo interjornadas contratual, negociado, sendo certo que o “número mágico” representado pelas 36 horas de descanso é uma contingência da fixação dos turnos e dos intervalos; 3) sendo cláusula contratual, ela pode vir expressa (como normalmente ocorre) ou tacitamente; 4) é nesses termos, quanto à forma, que o intervalo (tácito) de 16 horas, para uma jornada de oito horas, se distingue do intervalo (expresso) de 36 horas, para uma jornada de doze horas.

              Portanto, sob a ótica dos intervalos interjornadas, em muito pouco se distinguem o intervalo expresso de 36 horas e o intervalo tácito de 16, exceto pela maneira com que se aderem ao contrato de trabalho. Em essência, ambos têm a mesma “natureza jurídica”, qual seja de intervalo contratual.

2. O serviço extraordinário e o caráter dispositivo do intervalo interjornadas contratual

               O tópico anterior se encarregou de demonstrar que o intervalo de 36 horas, quando da jornada trabalhada de 12 horas, não tem natureza garantista, visto se tratar de uma regra contratual e, portanto, dispositiva. A diferença, para todas as demais jornadas consideradas normais (até o limite de oito horas diárias) é que ele vem, de regra, expresso. Não por necessidade, decerto, mas por conveniência[11], a fim de completar o sentido da jornada expandida contratualmente, o que se faz, tão só, através de compensação de horários. Portanto, o intervalo de 36 horas completa o sentido da jornada ampliada, isto é, integra o acordo de compensação de horários. Em outros termos, tanto a jornada, quanto o intervalo, são dispositivos do mesmo acordo.

              Nesse sentido, e uma vez mais, diga-se que o intervalo de 36 horas não é o intervalo necessário, para uma jornada de 12 horas, pois é apenas um dentre outros arranjos possíveis, no âmbito da compensação de horários, desde que não comprometa, ainda que pela média, o módulo semanal de 44 horas, a única limitação horária do trabalho realmente intransponível, segundo a Constituição (ASSUMPÇÃO, 2016).

              Se superarmos a tese sedutora de que a Constituição Federal de 1988 vedou a realização de horas extras, como uma possibilidade de aditamento contratual – acordo de prorrogação de jornada (VIANA, 1997) –, então podemos afirmar que a realização de serviços extraordinários, mediante mútuo consenso, é uma regra geral, excepcionada em casos muito particulares, como se dá na hipótese do trabalho de pessoas menores de idade (CLT, 413), de contratos de trabalho a tempo parcial (CLT, 59, § 4º), dos cabineiros de elevador (Lei 3.270/57, art. 1º, parágrafo único) e, para alguns, dos advogados (Lei 8.906/94, art. 20). Em comum, são todas exceções singularizadas ex lege.

              A admissibilidade do acordo de prorrogação supõe, obviamente, a mitigação do intervalo interjornadas contratual. Dito de outro modo, o intervalo interjornadas contratual pode ser flexibilizado através de um acordo de prorrogação. Tal acordo insere um aditamento ao contrato original em duas cláusulas, simultaneamente: a duração da jornada, e a duração do descanso interjornadas.

              Tem-se, pois, uma junção necessária entre o acordo de prorrogação e o intervalo interjornadas, visto que a redução deste será possível em todos os casos em que (também) for possível a prorrogação da jornada.  

              Por essa via, isto é, reconhecendo o intervalo interjornadas contratual como tendo existência autônoma em relação ao intervalo-garantia de onze horas (CLT, 66) e, por conseguinte, tendo natureza dispositiva (a mesma do contrato de trabalho), sua redução será, sempre, uma consequência necessária da realização de serviços extraordinários, desde que autorizada por acordo de prorrogação.

              A possibilidade do aditamento contratual, para o fim de prorrogar a jornada de trabalho, é vista como uma regra geral[12], pois desta forma é tratada na Constituição de 1988 (por omissão), e pela CLT (como uma possibilidade genérica, ainda que condicionada em forma e conteúdo), sendo sua vedação impossível de se presumir, conforme a clássica lição de Maximiliano (1933, p. 125). A contrario sensu, quando quis o legislador nomear uma exceção, seja em razão do sujeito, do tipo contratual, ou de seu objeto, o fez de forma expressa, como nos (raros) exemplos anteriormente citados.

              Portanto, invocar a impossibilidade de realização de horas extras só seria possível se houvesse lei que expressamente a vedasse. Não sendo o caso, a tese de que o intervalo de 36 horas não pode ser mitigado dependeria de se induzir que, por consenso tácito[13], esse interregno também teria se tornado um intervalo-garantia. Seria, decerto, uma contradição performativa, considerar-se o ajuste livre de um acordo de compensação de horários (autorizado constitucionalmente, lembremos) revestido de interesse público, como pela ação de um deus ex machina, de modo que empregado e empregador não pudessem consensualmente aditá-lo. Uma norma de ordem pública nascida da autonomia (da vontade) privada.

              De certa forma, a crítica da interpretação publicista que se sugere na tese da proibição do serviço extraordinário no âmbito das jornadas do tipo 12 x 36 vai ao encontro da ponderação de Amauri Mascaro, quando afirma que: “Sob esse prisma [da constante atualização contextual do direito positivo] não nos parece que compensação de horas deva ser considerada matéria de ordem pública [...]” (NASCIMENTO, 1999, 679).

3. Três teses alternativas

               Até o momento examinou-se a (im)possibilidade de prorrogação das jornadas do tipo 12 x 36, segundo a tese de que o intervalo interjornadas de 36 horas se converteria num intervalo-garantia, isto é, no intervalo mínimo para aquele tipo específico de jornada de trabalho (12 horas), impondo à hipótese os mesmos efeitos do art. 66, CLT.

              Por tudo que se apresentou até aqui, acredita-se que a tese da vedação da sobrejornada nesses casos não se sustenta à custa da mera indução ou integração analógica, todavia, sem o estofo da lei em sua literalidade.

              Mas haveria outras formas, outros caminhos que permitam renovar o debate em torno da proibição relativa da prorrogação da jornada, nas situações em que o trabalho se realize mediante escalas do tipo 12 x 36?

              É o que se irá aventar, abordando três possibilidades, até certo ponto conectadas. Duas delas, de berço doutrinário (SERSON, 1995; DELGADO, 2003). A terceira, constituída e consolidada pela jurisprudência (Súm. Nº 85, TST).

3.1. Dos efeitos da cumulatividade dos acordos de compensação e prorrogação

              Se há algo que nunca faltou a José Serson é talento para unir a expertise teórica, acerca dos institutos do direito do trabalho, com a prática das rotinas trabalhistas. Foi, e ainda é, o autor mais reverenciado pelos profissionais de departamento pessoal, e suas soluções propostas para os chamados hard cases da prática trabalhista ajudaram a perpetuar o prestígio do seu clássico “Curso de Rotinas Trabalhistas”, cuja primeira edição é de 1970.

              No âmbito da duração do trabalho, Serson enxergava um problema sério, quando da cumulação de acordos de prorrogação de jornada e compensação de horários. Para ele, a redação literal do § 2º do art. 59 da CLT criava uma limitação expressa para a realização de trabalho extraordinário.

              Com efeito, o § 2º do art. 59, CLT, antes da alteração proporcionada pela Lei 9.601/98[14], dizia o seguinte:

Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou contrato coletivo, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda o horário normal da semana nem seja ultrapassado o limita máximo de dez horas diárias. (Grifo meu).

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              A redação atual do mesmo dispositivo diz:

Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias. (Grifo meu).

               Baseando-se no texto antigo, Serson formulou que a regra da não extrapolação do “limite normal da semana” (atualmente, somatório das “jornadas semanais” [sic] no período de um ano) correspondia, na prática, a uma proibição da prorrogação da jornada, visto que a superação do módulo semanal, em virtude da realização do serviço extraordinário, “descaracteriza o acordo de compensação de jornada” (cf. Súm. Nº 85, IV, do TST).

              Note-se que Serson não sustentava, claramente, a impossibilidade de cumulação dos acordos de prorrogação e compensação. Defendia, isto sim, que a extrapolação do limite semanal fixado em 44 horas (como regra) obrigava ao pagamento, como horas extras, do plus sobre a jornada normal (isto é, a jornada originalmente contratada), resultante da compensação de horários, à custa da redução da jornada trabalhada noutro dia.

              Por ele próprio:

Podem ser adquiridos nas papelarias especializadas impressos com o título: “Acordo de Compensação e Prorrogação de Horário”. Preenchendo-o e obtendo a assinatura do emprego, a empresa passa a fazer 8 horas normais por dia, acrescentando 48 minutos de compensação pela supressão do trabalho nos sábados, e mais 72 minutos para completar a jornada de 10 horas, do que resulta que só esses últimos 72 minutos são pagos com adicional extra. Outras vezes, feito o acordo de compensação de horário de trabalho, a empresa convida alguns empregados para trabalharem duas ou três horas nos sábados [compensados], e paga essas horas como extras. De uma forma e de outra a empresa infringe a lei. (SERSON, 1995, p. 165).

              Contudo, ao sustentar que o plus sobre a jornada normal deva ser remunerado como extra, na hipótese de o módulo semanal ser excedido (como fatalmente ocorreria no caso de realização de serviço extraordinário mediante acordo de prorrogação simultâneo), Serson quis dizer que todas as horas além da jornada normal, sejam elas “compensáveis”, ou não, seriam consideradas horas extras.

              Transportando para o caso da jornada trabalhada em regime de 12 x 36, implica em dizer que para cada jornada de 12 horas haveria, garantidas, 4 horas extras, bastando que se realize serviço extraordinário em qualquer dia de trabalho.

              Neste sentido, o problema não estaria, necessariamente, na supressão do intervalo intrajornada de 36 horas, mas no excesso de horas extras, para além das duas permitidas pela Lei (CLT, 59, caput).

              Não havendo qualquer ajuste para que, ao final, a prorrogação da jornada não leve à superação do limite de 44 horas semanais (uma folga compensatória, talvez, ou uma redução incidental da jornada de trabalho), o efeito prático da tese de Serson será, de fato, a vedação da cumulatividade dos acordos de compensação de horários e prorrogação da jornada.

3.2. Da desqualificação do acordo de compensação 

              A tese de Serson está diretamente conectada com a posição jurisprudencial há algum tempo consolidada na Súmula nº 85, TST, atualmente no inciso IV.

              Seu texto é o seguinte:

IV. A prestação de horas extras habituais descaracteriza o acordo de compensação de jornada. Nesta hipótese, as horas que ultrapassarem a jornada semanal normal deverão ser pagas como horas extraordinárias e, quanto àquelas destinadas à compensação, deverá ser pago a mais apenas o adicional por trabalho extraordinário. (ex-OJ nº 220 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001). (Grifo meu)

              Tal qual linhas atrás foi mencionado, o entendimento jurisprudencial predominante vai ao encontro da redação literal do § 2º do art. 59, da CLT, no trecho em que admite a possibilidade de compensação de horários, “[...] de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas [...]”.

              No trecho destacado da doutrina de Serson, ele deixa claro que a contenção do número de horas trabalhadas na semana, dentro do limite legal, é condição de validade do acordo de compensação. Extrapolando-o, desqualifica-se o referido acordo, de modo que o plus sobre a jornada “normal” deveria ser pago como extra.

              Ele faz uma ressalva, ao final (SERSON, 1995, p. 166), reproduzindo o entendimento do TST[15], no sentido de que somente o “adicional respectivo” deveria ser pago, e não a hora extra acrescida do adicional. É bom ressaltar que a redação da Súmula nº 85, do TST foi sensivelmente alterada e ampliada a partir do início da década passada. Mesmo as Orientações Jurisprudenciais que a ela se incorporaram (OJs nº 182, 220 e 223) foram introduzidas após a última edição do “Curso...”, de modo que José Serson não chegou a conhecê-las[16]. Talvez seja por isso que eu, leitor assíduo de Serson, tenha percebido um certo tom de discordância com o posicionamento do TST.

              Revisitando a Súmula nº 85, percebe-se que o Tribunal Superior do Trabalho manteve a posição estabelecida desde a década de setenta, no sentido de que o desatendimento das exigências legais desqualifica o acordo de prorrogação. Nada mais adequado, decerto.

              Contudo, o inciso III da referida súmula se refere apenas genericamente sobre o tal “não atendimento das exigências legais”, não relacionando entre elas, obviamente, a prorrogação da jornada. A realização de horas extras é mencionada no inciso seguinte (IV), mas sua relevância estaria associada à noção de “habitualidade”. Nesse sentido, para o TST, a prorrogação habitual da jornada levaria à “desqualificação” do acordo de compensação, cuja consequência, ainda segundo o Tribunal, é o pagamento do adicional respectivo, sem a repetição das horas trabalhadas além da jornada “normal”.

              O exame conjugado dos incisos III e IV da Súmula nº 85, do TST nos diz algo: 1) que irregularidades formais (ajuste tácito, por exemplo) do acordo de compensação de horários não descaracteriza o efeito compensatório, caso ele se realize em termos fáticos, e dentro do limite do módulo semanal; 2) que a prorrogação da jornada, por si só, não é considerada uma irregularidade (não atendimento das exigências legais), salvo quando habituais; 3) sendo habituais, a realização de horas extras “desqualifica” o acordo de prorrogação, e o efeito prático é o pagamento do adicional, sem a repetição do pagamento das horas compreendidas no limite semanal.[17]

              Para o TST, portanto, as horas extras que problematizam o acordo de compensação teriam que ser habituais. A ocorrência isolada ou eventual da prorrogação não corresponderia ao descumprimento categórico das “exigências legais”. A introdução da habitualidade desloca a crítica feita por Serson, centrada nas “condições de validade do acordo de compensação”, para o exame do “mérito” do citado acordo. A prorrogação habitual da jornada teria o condão de desvanecer a realidade da compensação, mitigar o seu mérito, sua funcionalidade.

              Portanto, a posição do TST se distancia da de José Serson, no ponto em que ele, na prática, considera inacumulável os dois acordos (prorrogação e compensação). Os efeitos patrimoniais também são distintos. Para o autor, todas as horas trabalhadas além da jornada “normal” deveriam ser pagas como extras. No campo das infrações trabalhistas, a ocorrência provável é a superação do limite diário para a prorrogação da jornada.

              Pelo TST, a questão patrimonial se resolve com o pagamento do adicional devido sobre o plus abrangido pela compensação. No que se refere à infração à lei, o Tribunal não deixa claro se, de fato, ela existe, visto que a prorrogação da jornada não está inscrita no inciso que trata expressamente das hipóteses de “não atendimento das exigências legais” (III), sugerindo que a ocorrência de horas extras, ainda que habituais, não representaria um descumprimento normativo (infração trabalhista), em sentido forte. Sendo assim, resolvida a questão patrimonial, não restaria qualquer irregularidade a merecer punição.

3.3. Da dupla funcionalidade do intervalo interjornadas de 36 horas

               A terceira tese também tem origem doutrinária, e vem de um autor raro; um dos poucos a problematizar certos institutos do direito tutelar do trabalho – para além da replicação das lições clássicas, e da compilação de julgados e jurisprudência consolidada –, que para tantos passariam naturalizados, mesmo diante de evidente ressignificação imposta pelas novas formas de organização do trabalho.

              No que tange ao trabalho realizado em turnos do tipo 12 x 36, Maurício Godinho Delgado fornece algumas pistas do que, para ele, implica numa nítida conexão entre os institutos do intervalo interjornadas e o repouso (ou descanso) semanal remunerado (DELGADO, 2003).

              Pode-se introduzir a lição de Delgado com uma pergunta que nos parece fundamental: de que forma se dá o descanso semanal remunerado (DSR) daquele que trabalha em escala de 12 x 36?

              Para o autor, os interregnos de 36 horas que distam cada uma das jornadas de 12 horas teriam uma dupla funcionalidade: de intervalos interjornadas, propriamente ditos, e de repousos semanais remunerados (DELGADO, 1999, p. 135). Seria assim porque seu dimensionamento (36 horas) contempla o intervalo-garantia de 11 horas (CLT, 66) e o DSR (CLT, 67), os quais, somados, resultam nas 35 horas mínimas exigidas de intervalo entre o término da última jornada de trabalho da semana, e o início da próxima, na semana seguinte.[18]

              Nesse caso, a realização de serviço extraordinário para além das 12 horas implicaria no comprometimento do repouso semanal remunerado[19], sendo certo que, posto que haja satisfação da obrigação do pagamento da hora extraordinária, subsistiria a conduta infratora correspondente à supressão do DSR.

4. A PRIMEIRA CRÍTICA: os princípios informadores do DSR

              De maneira arguta, num pequeno e (aparentemente) despretensioso artigo, Karkles faz a mesma pergunta sugerida linhas atrás: “onde está o repouso semanal remunerado quando um trabalhador vem a trabalhar no regime de 12 x 36 horas”? (KARKLES, 2001, p. 225).

              Examinando as sete laudas nas quais o autor desenvolve sua análise, é possível destacar três momentos importantes:

  1. Ao comparar a situação da escala do tipo 12 x 36 com um hipotético “regime tradicional de trabalho, onde um funcionário trabalha de forma direta, seis horas por dia, durante seis dias por semana, e descansa no domingo”, a que Karkles denomina “regime de 6 x 18”, fica evidente que o que se está comparando são regimes contratuais de jornada/descanso interjornadas. Em passagem anterior, Karkles fizera questão de ressaltar que o intervalo de onze horas “é o mínimo, mas não significa que necessariamente tenha somente que haver um intervalo intrajornada [sic] de 11 horas.” (KARKLES, 2001, p. 226)
  2. Referindo-se ao argumento de que no intervalo interjornadas de 36 horas estaria incluso o DSR, o autor o denomina de “heresia jurídica”, pois levando a efeito tal tese, haveria de se concluir que, no regime de 12 x 36, o trabalhador “gozaria de três repousos semanais remunerados numa semana e na semana seguinte, quatro” (KARKLES, 2001, p. 228).
  3. Tomando como base uma jornada hipotética de 6 horas diárias de trabalho, de segunda a sábado (para o autor, como dito, um regime de 6 x 18), o que corresponde a um módulo semanal de 36 horas de trabalho, a simples duplicação de ambos os termos dessa razão jornada/descanso interjornadas (portanto, 12 x 36), não deveria alterar a proporção entre eles e, obviamente, o total de horas trabalhadas na semana[20]. No entanto, sabe-se que no regime de 12 x 36 o trabalhador labora, em média, 42 horas semanais (36 e 48 horas em semanas alternadas), ou seja, bem mais que as 36 horas do regime de 6 x 18. A explicação, para o autor, é que o regime do tipo 12 x 36 implica na supressão do DSR.

              Em termos esquemáticos, seria assim:

Total de horas da semana "útil"

Jornada de trabalho

Intervalo interjornadas (ref. 12 x 36)

Módulo diário" (jornada + intervalo interjornadas)

Quantidade de “módulos diários" na semana "útil"

Razão jornada/”módulo diário"

Razão jornada/intervalo interjornadas

Total de horas trabalhadas na semana "útil"

144

4

12

16

9

0,25

0,333333333

36

144

6

18

24

6

0,25

0,333333333

36

144

7

21

28

5,142857143

0,25

0,333333333

36

144

8

24

32

4,5

0,25

0,333333333

36

144

10

30

40

3,6

0,25

0,333333333

36

144

12

36

48

3

0,25

0,333333333

36

144

24

72

96

1,5

0,25

0,333333333

36

ESCALA DE 12 X 36

168

12

36

48

3,5

0,25

0,333333333

42

                 

Tabela 1. Quadro elaborado pelo autor.       

              O que se vê acima é o seguinte:

  1. Na primeira coluna temos a “semana útil”, isto é a quantidade de horas semanais destinadas ao trabalho, respeitando-se o DSR (6 dias x 24 horas = 144 horas);
  2. Na segunda coluna testam-se vários dimensionamentos de jornada de trabalho (em horas);
  3. Na terceira coluna temos o intervalo interjornadas que corresponde à jornada da coluna anterior (reproduziu-se a ancoragem de Karkles na proporção de 1/3, isto é, a mesma proporção da escala de 12 x 36);
  4. Na quarta coluna destacamos o “módulo diário”, isto é, o número de horas que corresponde à jornada de trabalho e o intervalo interjornadas que a sucede, isto é, ao total de horas compreendidas entre o início de duas jornadas de trabalho consecutivas;
  5.  Na quinta coluna vemos a quantidade de “módulos diários” compreendidos na “semana útil”.
  6. Na sexta coluna tem-se a razão entre a jornada e o “módulo diário”;
  7. Na sétima coluna fazemos o mesmo, mas entre a jornada e o intervalo interjornadas que a sucede;
  8. Na oitava coluna, temos o total de horas trabalhadas durante a “semana útil”.

              O quadro é autoexplicativo, e nele se percebe que a chave da diferença entre o total de horas de trabalho (semanais) entre todas as variações de jornada (4; 6; 7; 8; 10; 12 e 24), e o total trabalhado sob o regime de escala do tipo 12 x 36, se localiza no pressuposto da “semana de trabalho”, ao que denomino “semana útil”.

              No regime de trabalho do tipo 12 x 36, estende-se a semana de trabalho para todo o septídio que compõe a hebdômada (semana de sete dias). Ao fazê-lo, impõe-se a abstração do DSR, enquanto dia de descanso semanal e, portanto, “não-útil”. Alterando-se a base de cálculo de 144 horas para 168 horas, altera-se também a razão “módulo diário”/”semana útil” (o numerador aumenta e o denominador se mantém), de 3,0 para 3,5. Tem-se, então, um aumento do número de “módulos diários” por semana útil de 16,667%, que aplicado sobre o total semanal (e ideal) de horas de trabalho (36 horas), resulta em 6 horas a mais (36 + 6 = 42).

              Para Karkles, a solução ideal seria aquela em que o empregado trabalha 12 horas na segunda-feira, na quarta-feira e na sexta-feira, voltando a trabalhar somente na próxima segunda-feira, após sessenta horas de descanso (DSR de 24 horas acrescido do intervalo interjornadas de 36 horas).

              Em termos matemáticos, o raciocínio da Karkles é totalmente coerente, pois se baseando na proporção jornada/intervalo interjornadas de 12/36 (ou 1/3), qualquer projeção, para cima ou para baixo, dará o mesmo resultado, desde que se considere a semana de trabalho como tendo 144 horas disponíveis.

              Logo, se a escala de 12 x 36 respeita matematicamente essa proporção, e o resultado não é o mesmo (36 horas de trabalho semanais), é porque o pressuposto do dia-não-útil-dedicado-ao-descanso-semanal não foi respeitado.

              A metodologia utilizada por Karkles, no entanto, introduz um pressuposto não declarado: que a proporção entre a jornada e o intervalo interjornadas contratual de 1/3, encontrada no regime do tipo 12 x 36, em vez de exceção, é a regra.

              Façamos, pois, diferente.  

              O que acontece se a ancoragem for modificada? O que ocorre se adotarmos um padrão proporcional vinculado à jornada que se convencionou chamar de “normal”. Ou seja, uma regra-geral segundo a qual o trabalhador que labora 8 horas diárias, se indispõe para o trabalho nas próximas 16 seguintes, até o início da próxima jornada?

              Vejamos:

Total de horas da semana "útil"

Jornada de trabalho

Intervalo interjornadas (ref. 12 x 36)

Módulo diário" (jornada + intervalo interjornadas)

Quantidade de “módulos diários" na semana "útil"

Razão jornada/”módulo diário

Razão jornada/intervalo interjornadas

Total de horas trabalhadas na semana "útil"

144

8*

16

24

6

0,33333

0,5

48***

144

12

24

36

4

0,22222

0,5

48***

144

7,33333**

16,66667

24

6

0,30556

0,439999971

43,999998

144

12

27,27273

39,27272907

3,666666499

0,30556

0,439999971

43,99999799

Tabela 2. Quadro elaborado pelo autor.

* Jornada normal prevista na Constituição.

** Jornada matemática ou abstrata (distribuição das 44 horas semanais por seis dias úteis).

*** Resultado abstraído do limite constitucional de 44 horas semanais (módulo semanal pré-constitucional).

              O padrão proporcional é definido pelos limites constitucionais para a jornada e o módulo semanal (8 horas e 44 horas, respectivamente). A partir daí tudo se deriva.

              O quadro acima projeta para uma jornada de 12 horas a mesma proporção fixada entre a jornada “normal” (legal-constitucional, de 8 horas, e matemático-abstrata, de 7,33333 horas) e o descanso interjornadas contratual (16 e 16,666667, respectivamente). A conclusão que se chega é que a proporção entre a jornada trabalhada e o descanso interjornadas contratual, cuja definição caracteriza a escala de 12 x 36, é mais vantajosa para o trabalhador, pois resulta num quantum semanal de horas trabalhadas inferior àquele fixado na Constituição (média de 42, em vez de 44 horas).

              Portanto, adotando-se o padrão proporcional e, ao mesmo tempo, a solução de Eliel Valesio Karkles, bastaria que o trabalhador tivesse um intervalo interjornadas contratual de aproximadamente 27 horas e 30 minutos, para que, ao final de seis dias, ele trabalhasse a mesma quantidade de horas de um trabalhador com jornada de 8 horas diárias.  

              Sabe-se, contudo, que a solução do autor não goza de prestígio na jurisprudência, nem da Justiça do Trabalho, com relação aos empregados, nem da Justiça comum, com relação aos servidores públicos[21]. Isto porque a base da construção jurisprudencial, em ambos os cenários, está fundada na regra-geral de distribuição da jornada “normal” de oito horas diárias, por uma semana útil de seis dias, limitada a um módulo de 44 horas semanais.

              No âmbito do discurso, o argumento que vem prevalecendo é o da “vantagem do empregado” (o regime de 12 x 36 confere um número maior de horas de descanso no mês, se comparado com a jornada “normal” de oito horas), o qual, por seu vigor, legitima o argumento da compensação (o intervalo de descanso entre duas jornadas absorve também o DSR). Este último, considerando seus pressupostos, vai ao encontro da tese da dupla funcionalidade, sugerida por Maurício Godinho Delgado.

              A “teoria da vantagem do empregado”, como visto, faz sentido. Olhando de perto, todavia, a tese da dupla funcionalidade não consegue solucionar algumas incongruências que emergem do choque com a jurisprudência dominante.

              Começo por citar o próprio Delgado, quando relaciona o DSR como um exemplo de “intervalo intersemanal” (DELGADO, 1999, p. 134), qual seja aquele que separa uma semana e outra de trabalho, afirmação que, por sua vez, nos remete ao conceito de “semana de trabalho”.

              Mas afinal, o que se considera “semana de trabalho”?

              Faz-se aqui, por certo, uma enorme confusão de conceitos e terminologias, que menos que esclarecer favorece, muitas vezes, conclusões desconcertantes, para dizer o mínimo[22].

              Há muito se diz que o descanso semanal, no Brasil e no “mundo ocidental”, é regido pelos princípios do repouso hebdomadário e dominical (GOTTSCHALK, 1951, p. 190). O primeiro princípio, por sua vez, possui uma dupla feição, que se desenvolveu com o passar do tempo, na medida em que também evoluíam os sistemas de proteção social do trabalho assalariado.

              A primeira está relacionada à tradição judaico-cristã da hebdomăda, expressão de origem latina derivada do grego epta ou hebdomás (εβδόμαδα), originalmente associada ao número sete[23] e, adiante, ao septídio bíblico que compreende a criação do mundo e o descanso de Deus (GÊNESIS, Cap. I), cuja influência sobre o calendário ocidental (de regência marcadamente litúrgica, no caso do Brasil), a partir da chamada “semana santa” (hebdomada paschalis) foi determinante. Hebdomadário equivaleria, numa perspectiva etimológica, ao período de sete dias ou, simplesmente, semana[24].

              Mas o descanso hebdomadário – o descanso do sétimo dia – tornou-se, mormente a partir da Convenção nº 14, aprovada na Conferência de Genebra da OIT (1921)[25], uma referência fortemente consolidada pelos costumes, e reproduzida, segundo Ludovico Barassi, em todas as legislações sobre trabalho no mundo (GOTTSCHALK, 1951, p. 189). Tornara-se a hebdômada uma medida de controle da reprodução cotidiana do trabalho, um período de tempo além do qual o trabalhador não poderia se manter laborando, sem que antes descansasse um dia.

              Associando-se os princípios do descanso hebdomadário e dominical, conclui-se que o trabalhador guardará, para o seu descanso, o último de sete dias (semana) de trabalho, e que esse dia deverá recair no domingo.

              O princípio do descanso dominical se liberta de suas origens religiosas, sendo apropriado pelo Estado laico brasileiro, no plano constitucional, a partir da Carta de 1934. Um marco civilizatório sem o qual o sujeito-trabalhador não consegue realizar sua identidade social, e exercitar sua vida comunitária. É o domingo o dia ideal para se passar com a família, encontrar os amigos e parentes, ver o jogo de futebol na TV.

O trabalho em dias em que os filhos, a esposa e os amigos descansam contribui para a dissolução dos laços gregários, tão importantes para a própria sociedade, e a estabilidade do indivíduo; também repercute sobre a produção, a economia e a criminalidade etc. (CARRION, 2009, p. 127).

              Um dia, enfim, que permite ao trabalhador se integrar ao ritmo da sua rua, da vizinhança, do bairro, da cidade onde mora. Nesse sentido: “Le repos donné un autre jour de la semaine ne présente pas pour lui les mêmes bienfaits”. (CAPITANT; CUCHE, 1930, p. 257).

              A ancoragem dominical do repouso semanal impõe uma conexão necessária com o calendário. Sendo hebdomadário, o descanso dominical é o último dia do septídio semanal. Para todos os efeitos, portanto, a semana de trabalho começa na segunda-feira, e termina no domingo.[26]

              Ainda que se objete tal suposição, admitindo os efeitos mitigatórios das derrogações ex lege dos princípios do repouso dominical e hebdomadário, a ponto de não se poder reconhecê-los, enquanto tais, não há como negar que a semana laboral, e o descanso que lhe corresponde, configuram um septídio. Sendo assim, a Lei nº 605/49, que atualmente regula o DSR, juntamente com seu Decreto (nº 27.048/49), não contradizem – ao contrário, endossam – a primeira regulação “geral” do repouso semanal, o Decreto nº 21.186/32, que em seu art. 1º diz se tratar de um dia de descanso para cada seis de “ocupação efetiva”.

              Neste caso, Delgado teria subestimado as derrogações ex lege (dérogations autorisées) dos princípios do repouso hebdomadário[27] e dominical[28], ao afirmar que o DSR é um tipo de intervalo intersemanal. Tal afirmação não se confirma pelo calendário, nem pela hebdômada, tampouco pelo princípio do repouso dominical, pois o DSR nem sempre irá coincidir com o domingo, e nem sempre será concedido como o último de sete dias.

              A lei autoriza, como sabemos (Arts. 6º a 8º da Lei 605/49 e arts. 6º a 9º do Dec. 27.048/49), que em casos excepcionais seja permitido o trabalho aos domingos, e mesmo nos dias contratualmente dedicados ao repouso (Art. 8º, Dec. 27.048/49), além dos feriados (§ 3º, art. 6º do Dec. 27.048/49). Seja em razão da necessária escala de folgas semanais (§ 2º, art. 6º do Dec. 27.048/49), ou por conta da folga compensatória (§ 3º in fine, art. 6º do Dec. 27.048/49), será eventualmente possível a concessão do DSR no interior da hebdômada, o que implica na concessão das folgas semanais em intervalos inferiores a sete dias[29].

              O problema com a afirmação de Delgado não está no quanto possa estar equivocada, pois como regra, não está. O problema se situa na extensão dos efeitos da subestimação das derrogações ex lege dos princípios hebdomadário e dominical, sobre o caráter categórico dessa funcionalidade – um “separador de semanas” – a qual se atribui ao DSR.

              Levando às últimas consequências o efeito “separador de semanas” conferido ao DSR, teremos que admitir, necessariamente, que após a concessão do DSR uma nova semana de trabalho tem início, cuja duração irá até o próximo DSR.

              A tal “heresia jurídica” mencionada por Karkles tem aí a sua origem, pois ao admitir que o regime de trabalho do tipo 12 x 36 proporciona ao trabalhador três DSR numa semana, e quatro na outra, equivale a dizer que no período de duas semanas do calendário transcorreriam cinco semanas de trabalho, cada qual separada por seu correspondente DSR.

              Tal conclusão, para lá de extravagante[30], ofende, a um só tempo, o calendário, os princípios do repouso hebdomadário e dominical e, por conseguinte, a própria lei (Art. 1º do Dec. 27.048/49): “Todo empregado tem direito a repouso remunerado, num dia de cada semana, preferentemente aos domingos, nos feriados civis e nos religiosos, de acôrdo [sic] com a tradição local, salvo as exceções previstas neste Regulamento” (Grifo meu).

              O repouso semanal remunerado é uma folga singular[31]. Não há outras, senão uma por semana. A Súmula nº 113, do TST, embora dirigida aos bancários, sintetiza em favor de todos os trabalhadores do país que – a priori – outro dia de folga, que não aquele dedicado ao repouso semanal remunerado (seja dominical, ou não), será nada além de “dia útil não trabalhado”.

              Do mesmo modo, ao tratar da compensação de horários (e supondo que o regime de 12 x 36 seja ilustrativo desse modelo) as horas trabalhadas além do limite semanal serão pagas como extras, ou devidos serão os respectivos adicionais, caso o limite semanal não seja extrapolado. Veja-se bem: horas extras (CRFB/88, art. 7º, inc. XVI) e não o pagamento em dobro pela supressão do repouso semanal, como prevê a Lei 605/49. Como, então, admitir-se a dupla funcionalidade do interregno de 36 horas (intervalo interjornadas e DSR), sem considerar a remuneração em dobro, ainda que parcialmente, no caso de supressão?[32]

              Por fim, como levar em conta que o intervalo interjornadas de 36 horas possua o valor de DSR, uma vez que tal regime em nada interfere no divisor aplicável, à maneira do art. 64, CLT, para o cálculo do salário-hora do mensalista?

              A grande discussão em torno do DSR do bancário (v. Súm. 113, do TST) sempre se concentrou no divisor aplicável, para o cálculo do salário-hora, cuja finalidade é mensurar a remuneração do serviço extraordinário, e calcular sua repercussão no próprio DSR. Dessa forma, acha-se uma conexão necessária entre as Súmulas nº 113 e 124, do TST, ambas dedicadas ao bancário. Pela atual jurisprudência, em havendo instrumento normativo que disponha sobre o sábado como repouso semanal remunerado “extranumerário”, o divisor será 150, para aqueles que laboram seis horas diárias, e 200, para os que trabalham oito horas.

              O que é importante reter, aqui, é a associação que a jurisprudência consolidada no TST faz entre o número de repousos semanais remunerados e o divisor para apuração do salário-hora, justamente pela redução do módulo semanal. Tal associação se explica apenas, e neste particular[33], pela mitigação in melius do princípio do descanso hebdomadário, ou seja, pela redução da semana efetivamente trabalhada, admitindo que o repouso seja concedido aquém do septídio.

              Disso se extrai ao menos uma certeza, que a mitigação do princípio do descanso hebdomadário não se presume, como bem sinaliza a Súmula nº 113, em conexão com a Súmula nº 124, do TST. E disso é prova cabal a jurisprudência acerca do divisor aplicável na apuração do salário-hora, que no caso do trabalho em regime de 12 x 36 sequer cogita a possibilidade de os intervalos interjornadas de 36 horas terem a mesma funcionalidade dos DSR. O divisor, segundo o entendimento dominante, é mesmo o 220 típico, aplicável a todos os que trabalham oito horas diárias[34], visto que esse regime é tão só uma forma convencionada de acordo de compensação, o que, por sua vez, não teria o condão de reescrever o módulo semanal de trabalho.

              A única posição alternativa, e, por isso mesmo, minoritária, admite a redução média do número de horas do módulo semanal (42 em vez de 44), o que traria implicações no divisor – que neste caso seria 210 –, visto que a jornada encolheria para 7 horas diárias, caso as 12 horas de “ocupação efetiva” fossem redistribuídas pelos seis dias idealmente reservados ao trabalho, durante a semana (7 x 6 = 42)[35].

5. A SEGUNDA CRÍTICA: discutindo a natureza (jurídica) da prorrogação da jornada e da compensação de horários

              Até o momento, pode-se concluir que o intervalo interjornadas de 36 horas, entre duas “pegadas” de 12 horas de trabalho, não configura um intervalo-garantia, à maneira daquele previsto no art. 66, CLT (onze horas). Da mesma forma, tal interregno não representa um “híbrido” de intervalo interjornadas e DSR, de maneira que, ao “ofendê-lo” com a realização de serviços extraordinários, se estaria suprimindo o repouso semanal remunerado.

              Mas da pergunta que surge natural, nesse contexto (cadê o repouso semanal remunerado?), viu-se que a jurisprudência, motivada pela “teoria da vantagem” atribuída àquele que, laborando em regime de 12 x 36, trabalha menos e descansa mais do que seu próximo, submetido à jornada de 8 horas diárias, com descanso hebdomadário e dominical, não vê problemas em deixá-lo ser “absorvido” (CARRION, 2009, p. 116) pelos intervalos prolongados de 36 horas.

              A rigor, considerando a possibilidade de objetivação, a “teoria da vantagem” do regime de 12 x 36 sobre as jornadas normais de 8 x 16, provavelmente uma tradução meio canhestra do princípio da condição mais benéfica (RODRIGUEZ, 2002), não resolve o problema do sumiço do DSR: um repouso singular, de natureza garantista (portanto, indisponível e irrenunciável), regido pelo princípio do descanso hebdomadário e dominical, cujo trabalho enseja a recompensa patrimonial do pagamento das horas em dobro.

              Nesse sentido, salvá-la (a “teoria da vantagem”) da desconstrução precoce demandaria um socorro constitucional, o emprego de um instituto que, a despeito de sua longevidade normativa, ganhou status magnus pela primeira vez na CRFB/88: a compensação de horários (Art. 7º, inc. XIII).

              É sintomático que a compensação de horários seja mencionada no mesmo dispositivo que limita a jornada de trabalho e o módulo semanal. Supondo que, como afirma Teixeira Filho (2005, p. 1913-1915), a CRFB/88 tenha elevado a negociação coletiva à categoria de direito fundamental social – o meio pelo qual se resolveriam as tensões entre o trabalho e a livre iniciativa, emparelhados na forma de princípios do nosso federalismo –, só se pode imaginar que a compensação de horários, negociada coletivamente[36], foi topologicamente disposta como uma alternativa de flexibilização do limite diário para o trabalho humano assalariado[37].

              O “aumento” da jornada, como uma possibilidade trazida pela compensação de horários, está duplamente condicionado, seja na forma, ou no conteúdo. O condicionamento conteudístico fica por conta do respeito inegociável ao limite de 44 horas para o módulo semanal[38], e o formalístico impõe o acordo como a única maneira de dar validade a tal arranjo.

              Esses condicionantes dialogam com o caráter dúplice da compensação de horários (c.f. Nota 36). Em termos substanciais, a compensação de horários se traduz numa ampliação da jornada “normal” (8 horas). Em termos procedimentais, se lhe impõe uma forma específica (acordo individual ou coletivo), e uma cláusula obrigatória (crivo formal): a redução-supressão da jornada de trabalho noutro(s) dia(s).

              Mas se a compensação de horários representa, substancialmente, um aumento ou ampliação da jornada de trabalho idealmente fixada em oito horas, este aumento ou ampliação teria a mesma “natureza” da prorrogação (da jornada)?

              Sem recorrer à farta doutrina jurídica, tem-se que a própria CLT nos oferece pistas preciosas.

              De início, tome-se o art. 432: “A duração do trabalho do aprendiz não excederá de seis horas diárias, sendo vedadas a prorrogação e a compensação de jornada” (sem grifos, no original), para dele se extrair a constatação, com respaldo na máxima verba cum effectu, sunt accipienda[39] (MAXIMILIANO, 1933, p. 270), de que prorrogação e compensação são institutos distintos.

              Em seguida, tem-se o art. 384: “Em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um descanso de 15 (quinze) minutos no mínimo, antes do início do período extraordinário do trabalho” (sem grifos, no original), que nos permite concluir o seguinte:

  1. Que a prorrogação pressupõe um “horário normal”;
  2. Que o trabalho realizado durante essa prorrogação (do horário normal) será considerado extraordinário;
  3. Conectando-se com o texto constitucional (art. 7º, inc. XVI), tem-se que o trabalho realizado durante essa prorrogação         deverá ser pago como “serviço extraordinário”, ou seja, com adicional de, pelo menos, 50% (sobre a hora normal);
  4. Disso se deduz que o pagamento é necessário porquanto a jornada extrapolou o limite previamente ajustado.

              A jornada normal preexiste à prorrogação. Não se concebe a prorrogação sem que antes se suponha uma jornada normal, delimitada por “horários normais” de início e término. Portanto, quando se fala em prorrogação da jornada, está a se falar em “prorrogação da jornada ‘normal’”.

 

                                                                                         Limite da “normalidade” (ancoragem)

   Jornada de trabalho                                                        Prorrogação

            Início                                                                                              Fim

                 

                                       Jornada normal                          Serviço Extraordinário 

Fig. 1.

              Pressupondo a “jornada normal”, a prorrogação (da jornada) implicará na transposição do “limite da normalidade” (que coincide com o término da jornada normal). Logo, a prorrogação corresponderá ao trecho “anormal” da jornada de trabalho. Se o limite da normalidade estiver “ancorado”, isto significa que ele continuará atuando como referência para a prorrogação (trecho anormal da jornada de trabalho). O pagamento das horas extras se impõe, neste caso, justamente por causa da preservação dessa referência, a qual, por sua vez, decorre da “fixação contratual” (CLT, 62, I).

              Na prorrogação da jornada, as horas extras são pagas porque o limite da normalidade se mantém intacto desde o momento em que o contrato foi originalmente constituído, ou incidentalmente alterado.

              Uma das evidências mais claras da distinção entre prorrogação da jornada e compensação de horários é o fato de que, nesta, não haverá o pagamento de horas extras. E tal não há porque na compensação o excesso de horas trabalhadas em alguns dias é redistribuído por outros dias, da mesma ou de outras(s) semana(s).

              Mas simplesmente descrever o “mecanismo compensatório” não satisfaz à pretensão de identificar o fenômeno jurídico (REALE, 1994) por trás da compensação de horários. Implica, também, em desconsiderar sua feição substantiva (o aumento, propriamente dito, da jornada de trabalho) que lhe confere a Constituição de 1988. Reduzir a compensação de horários a, tão só, o instrumento de redistribuição das horas de trabalho excedente é sinédoque[40], em que se toma a parte pelo todo.

              Pode-se argumentar, contudo, que a compensação também implica na prorrogação da jornada, e que o mecanismo compensatório é a forma alternativa (detalhada no art. 59, CLT) para “devolver” ou, ainda, “pagar” as horas de trabalho excedentes, na forma de “horas ociosas”.

              Mas não é bem assim, e nem se precisa ir muito longe para objetar esse argumento.

              De início, porque dessa forma teríamos que admitir que em ambos os casos dar-se-ia a prorrogação, o que sob o ponto de vista substantivo não distaria do conceito de compensação. Prorrogação de jornada e compensação de horários, nesse sentido, seriam institutos idênticos, o que já se demonstrou inverídico.

              Por outro lado, haveria de se considerar a possibilidade de devolução das horas de trabalho com horas de não-trabalho, o que seria um problema para a ergologia, do conceito de “corpo-si” e os usos de si pelo trabalho[41], ou seja, tratar as horas de “uso de si pelos outros” e o “uso de si por si” com sendo a mesma coisa (HOLZ; BIANCO, 2014, p. 503).

              Não menos problemático é considerar as horas de trabalho e não-trabalho como coisas permutáveis e intercambiáveis, sob o ponto de vista da teoria do valor-trabalho, ou sua tradução marxiana, pelo conceito de mais-valia. São, pois, coisas completamente distintas, visto que o trabalho alienado ao patrão, o único capaz de criar mercadoria – valor de uso para outrem – (MARX, 1983) não pode ser comparado vis-à-vis com o tempo fora do trabalho, ainda que neste tempo o trabalhador se submeta um dado roteiro imposto pelo Estado – a “concessão tutelada do tempo livre” (PEIXOTO, 2007, p. 198) – ou pelo mercado (consumo e descanso, por exemplo) a fim de garantir a reprodução do processo de acumulação (ANTUNES, 1999; JESSOP, 2008).

              O argumento da teoria do valor-trabalho se conecta com o direito laboral, no ponto em que este se distingue dos demais ramos ou disciplinas jurídicas, nomeadamente por um dos principais fundamentos do que Gomes e Gottschalk (2002) e Delgado (2003) chamam de teoria especial das nulidades: a impossibilidade de devolução do trabalho realizado, cuja síntese – “trabalho feito é salário ganho” – é autoexplicativa (GOMES; GOTTSCHALK, 2002, p. 114).

              A tarefa também não é nada fácil, quando se fala em ergonomia, nomeadamente no que tange à reparação da fadiga (física e mental) por horas de não-trabalho. A despeito do relativo sucesso obtido no esforço de construção de relações aproximadamente lineares, entre as valências que designam o conceito de fadiga (consumo de oxigênio, aumento da taxa de batimento do coração, ventilação pulmonar, temperatura do corpo, concentração de ácido lático no sangue etc.), não é possível estabelecer uma equação-geral compensatória da fadiga no trabalho (horas de trabalho x horas de descanso), visto que as características individuais fazem com que cada trabalhador tenha uma curva de fadiga personalíssima e, por certo, um limiar de exaustão diferente, tanto físico quanto psíquico[42] (BARNES, 1977, p. 449).

              Por fim, a própria organização e divisão do trabalho podem produzir ritmos e intensidades de trabalho que, não raro, se distinguem entre setores de uma mesma empresa, o que torna ainda mais remota a possibilidade de se deduzir uma equação-geral compensatória entre o tempo de trabalho e o de não-trabalho.

              Como se vê, não é possível abstrair do abismo ontológico que separa o tempo de trabalho e o tempo de descanso ou não-trabalho. Nesse sentido, em se conservando a substancialidade de cada uma dessas entidades, torna-se implausível estabelecer qualquer critério geral de compensação. Para tal, seria necessário reduzir o tempo de descanso à sua funcionalidade discursivo-formal, tornando-o um termo de troca, uma moeda, portanto, com a qual se “paga” o (tempo de) trabalho excedente com (tempo de) descanso excedente.

              Contudo, se assim for, a “taxa de câmbio” trabalho/descanso não estaria ao par, isto é, de 1/1, mas de, no mínimo, 1/1,5 (CRFB/88, art. 7º, inc. XVI). Ou seja, 1 ½ hora de descanso deveria ser concedida para cada hora de trabalho excedente, por expressa previsão constitucional, o que, certamente, não se verifica na prática, e nem se cogita na jurisprudência, nem na literatura jurídica especializada.

              Ora, se não se sustenta a tese do “pagamento” em descanso do trabalho excedente, nem a compensação stricto sensu entre horas de trabalho e de não-trabalho, como justificar, substantivamente, o aumento da jornada sem o respectivo pagamento pelo serviço extraordinário?

              Simples: não há serviço extraordinário!

              Vimos que a dimensão substantiva da compensação de horários é o aumento da jornada normal de trabalho. Da mesma forma, detectou-se que um importante aspecto da sua dimensão formal, que implica da redistribuição das horas de trabalho excedente em outros dias, na forma de horas de não-trabalho, não configura ressarcimento material de qualquer tipo. Sendo assim, só se pode intuir que, de fato, não há trabalho excedente a ser compensado com descanso ou pagamento.

              Isto ocorre porque o aumento da jornada de trabalho, na hipótese de compensação, implica no deslocamento do “limite da normalidade” para além do ponto anteriormente fixado.  

 

              O fenômeno por trás da compensação de horários é a alteração contratual do tipo “alteração do tempo de prestação do trabalho” (REIS, 1957, p. 123), nomeadamente no que tange à cláusula da duração diária do trabalho. A jornada normal, antes fixada em , é consensualmente alterada (CLT, 468) para , sendo . Da mesma forma, o limite da normalidade, antes “ancorado” em  se desloca para .

              O atributo “normal” ainda se aplica à jornada ampliada, e a compensação de horários (redistribuição das horas de trabalho resultantes da diferença entre  ) torna-se uma condição procedimental a priori, e substancial a posteriori dessa alteração contratual.

              Imediatamente procedimental, porque a ancoragem do módulo semanal em 44 horas se mantém intacta (ainda que mitigada pela “semana espanhola”), determinando a arquitetura formal do modelo compensatório. Mediatamente substancial, porque a não realização fática da compensação (trabalho no dia compensado, por exemplo) compromete sua funcionalidade e a desqualifica ontologicamente (cf. Súm. nº 85, IV, TST).[43]

              Portanto, o que o inciso XIII do art. 7º da CRFB/88 autoriza é a repactuação da jornada de trabalho “normal”, para além das 8 horas diárias, e tal como admite Martins (2002), sem limite expresso no texto constitucional, ficando a cargo do próprio acordo defini-lo.

              Trata-se de um argumento a mais para se refutar a inconciliabilidade entre os acordos de compensação e prorrogação, pois este sempre irá supor a fixação de uma jornada que seja considerada “normal”, independentemente de sua origem: lei, contrato, acordo coletivo etc. A jornada ampliada em virtude da compensação é, pois, uma jornada “normalizada”, e toda sua extensão corresponde à duração normal do trabalho[44].

              Dando crédito à tese de que a compensação, em termos substantivos, implica na repactuação mutuus consensus da jornada normal de trabalho – considerando a limitação constitucional da “semana de trabalho” –, então só se poderia admitir que o “jôgo [sic] das compensações” (GOTTSCHALK, 1951, p. 28) contemplasse apenas dias e horas destinadas ao trabalho, excluindo, portanto, dias e horas destinadas ao não-trabalho.

              É o que afirma Carrion, no seu multirreferenciado decreto: “O descanso semanal remunerado, por ser instituto distinto, não poderá ser absorvido pela compensação”. (CARRION, 2009, p. 116). A esse respeito, lembrava Cesarino Júnior que a Comissão Especial instalada para a criação da CLT sugeriu a inclusão de dois parágrafos a mais no art. 59. O texto sugerido para o § 4º era o seguinte: “A compensação a que se refere o § 2º dêste [sic] artigo [59, CLT] será baseada nos dias úteis, excluindo-se os domingos e feriados” (CESARINO JÚNIOR, 1956, p. 171). Para o autor, a inclusão apenas de dias úteis se mostrava a alternativa natural para o regime de compensação, mas reconhecia a utilidade do dispositivo proposto, pois se tratava de um “esclarecimento de valia”.

              A única saída para a constitucionalidade do regime de 12 x 36 é que se trata, de fato, de uma forma peculiar de compensação de horários. Nesse sentido, tem-se que o conjunto de dias e horas envolvidas deve corresponder, necessariamente, ao tempo destinado ao trabalho, o que excluiria todos os períodos de não-trabalho: intervalos intrajornada, interjornadas e o DSR.

              A preservação dos intervalos interjornadas é decorrência lógica do próprio sistema, pois o interregno de 36 horas também dista duas jornadas consecutivas, e mantém contido, com sobras, o intervalo-garantia de onze horas (CLT, 66). Neste caso, a compensação mútua é processo natural, pois a despeito da origem, ambos os intervalos – celetista e contratual –, são medidas de tempo dotadas da mesma funcionalidade: garantir um período de não-trabalho entre duas jornadas de trabalho. Se dúvida não há, com relação ao intervalo de 36 horas, é que se trata de um intervalo interjornadas.

              Mas o que dizer do intervalo intrajornada e o DSR? O intervalo de 36 horas poderia compensá-los?

              Pode-se antecipar que a jurisprudência trabalhista já militou em favor da absorção do intervalo intrajornada pelo interregno de 36 horas interjornadas[45], o que é sintomático do poder da “teoria da vantagem do empregado”. Contudo, ao menos no que tange aos intervalos intrajornada, e também aos feriados, a posição da jurisprudência consolidada retrocedeu, no sentido de excluí-los dos efeitos da compensação (v. Súmulas nº 437 e 444, do TST). Por outro lado, com relação aos DSR, nada mudou por enquanto, pois o entendimento dominante, como já se mencionou alhures, é o da sua absorção pelo intervalo interjornadas de 36 horas, posição que, desta feita, tem respaldo legal (parágrafo único do art. 59-A, da Lei 13.467/2017).

              Nesse sentido, considerar o regime de 12 x 36 como uma modalidade sui generis de compensação de horários, na forma como se encontra modelada pela jurisprudência dominante, implica em se admitir a possibilidade de absorção do descanso semanal remunerado pelos intervalos interjornadas de 36 horas, o que contraria décadas de entendimento doutrinário em sentido contrário.

              A “teoria da vantagem do empregado” é o grande argumento em favor da manutenção do atual entendimento jurisprudencial, o qual por vezes transcende a questão higiênica[46]. Mas vem daí, pelo “argumento higiênico”[47], o principal foco de resistência à realização de serviço extraordinário, cujo Álamo é reconhecidamente uma das instituições mais proeminentes do complexo institucional brasileiro de proteção do trabalho assalariado: a Inspeção do Trabalho.

              A “teoria da vantagem do empregado” se vale do “argumento higiênico”, mas não se sustenta exclusivamente a sua custa. Como estratégia de defesa contra a realização de serviços extraordinários, contudo, o argumento higiênico retoma o pressuposto da compensação substantiva[48] entre horas de trabalho e não-trabalho – só se admite o trabalho durante doze horas se o trabalhador descansar 36 horas – o qual, como vimos, deve ser refutado.

              Sob o ponto de vista dogmático, tem-se que o regime de 12 x 36 enfrenta o mesmo problema do banco de horas: flerta com a inconstitucionalidade formal, eis que ambos são regulados, sob o ponto de vista infraconstitucional, por um dispositivo celetista (art. 59) que não os suporta. De um lado, o banco de horas introduz o elemento da aleatoriedade (da duração do trabalho e do assalariamento), frontalmente adverso ao contrato de trabalho, e que descaracteriza a compensação de horários, enquanto episódio de alteração contratual certus an et certus quando das condições de trabalho, por mútuo consentimento. Por outro, tem-se que a escala de 12 x 36, ou sua coirmã 24 x 72, sendo consideradas espécies compensatórias, suprimem ou absorvem o DSR, instituto de caráter publicista, garantista e higiênico, e que não se comunica (ao menos em tese) com o regime de compensação.

CONCLUSÕES

              O presente ensaio tem por objetivo não apenas responder à questão central proposta em seu título: sobre a possibilidade de realização de serviço extraordinário por quem, em virtude de acordo coletivo, trabalha sob o regime de escalas do tipo 12 x 36, mas também enfrentar outras questões circunvizinhas, mas que costumam orientar muitos dos entendimentos que se veem na jurisprudência, e que calçam as ações da Inspeção do Trabalho.

               Colhida da experiência da fiscalização trabalhista, a tese de que o intervalo de 36 horas entre duas jornadas de 12 não pode ser reduzido, por força da realização de serviços extraordinários, não se sustenta juridicamente, e assim é porque se estaria comparando institutos distintos: intervalo-garantia ope legis de onze horas (CLT, 66) e o intervalo contratual de 36 horas.

              Insistir que o interregno entre duas jornadas de 12 horas tem status garantista e publicista – uma transgenia, considerando o seu berço privatista – seria admitir que as 36 horas de descanso configuram um número mágico, abaixo do qual não se concebe o descanso ideal de nenhuma pessoa que tenha trabalhado doze horas[49]. Noutros termos, teria que conferir ao sistema de redistribuição diferida do tempo de trabalho excedente uma ontologia compensatória, que se traduz na capacidade real, fática ou categórica de devolver ou pagar o tempo de trabalho excedente na forma de tempo excedente de não-trabalho. Da ergologia à teoria especial das nulidades do direito do trabalho, todas as evidências apontam para uma falácia de composição ou, em termos linguísticos, uma sinédoque.

              Diga-se isto, porque a compensação de horários, em termos substantivos, não possui uma identidade conceitual em si mesma. Trata-se tão só de uma condição imediatamente procedimental, e mediatamente substancial da alteração contratual muutum consensus da qual é consectário, nomeadamente quanto à cláusula da duração do trabalho, sob o beneplácito da própria CRFB/88.

              A jurisprudência consolidada no TST, sensível ao argumento higiênico, introduziu um novo condicionante ao acordo de compensação de horários (Súmula nº 85, inc. VI): a anuência do Estado[50] (a despeito do pacto coletivo) no caso de atividade insalubre. Por outro lado, a Corte Superior Trabalhista segue afirmando que a realização de serviço extraordinário, por si só, não configura transgressão legal, mas que sua habitualidade desqualifica o acordo de compensação enquanto tal, nomeadamente no que tange a sua funcionalidade.

              Percebe-se, então, que o argumento higiênico não é introduzido pela jurisprudência na questão da extrajornada, em regime de compensação de horários, e que a prática habitual do serviço extraordinário impõe uma recompensa salarial em prol do trabalhador, na forma de pagamento do adicional sobre as horas que extrapolem a jornada original (normal, considerando o módulo semanal correspondente).

              A tese da descaracterização ontológica da compensação de horários, quando da realização habitual de serviços extraordinários, ao dialogar com o princípio da primazia da realidade possibilita o reconhecimento ipso facto da nulidade da cláusula de ampliação da jornada.

              Neste caso, admite-se que uma relação direta entre as horas extras habituais e a descaracterização funcional do acordo de compensação se estabeleça, o que poderá resultar, e somente aí, no excesso de serviço extraordinário, caso o somatório das horas destinadas à compensação, e à prorrogação, superem o limite de duas diárias[51]. Neste sentido, o limite celetista para a prorrogação torna-se a referência não porque absorva ambas as possibilidades de aumento do tempo de trabalho – prorrogação de jornada e compensação de horários – mas por considerar todo o excedente à jornada originalmente contratada como prorrogação, em virtude da descaracterização do acordo de compensação.

              No âmbito da Inspeção do Trabalho, o procedimento em harmonia, seja com a tese da alteração contratual resultante da compensação de horários, ou com o entendimento do TST, no que tange à desqualificação do citado acordo, em virtude da realização habitual de horas extras, haveria de impor a exigibilidade do pagamento integral das horas extraordinárias, bem como o levantamento do FGTS correspondente. Desdobramento distinto, pois, da solução pecuniária proposta pela Súm. nº 85, mas próximo daquele sugerido por Serson, embora sob fundamento diverso.

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Sobre o autor
Luiz Felipe Monsores de Assumpção

Economista (UERJ) e bacharel em direito (UNESA). Especialista em direito do trabalho e legislação social (UNESA). Mestre e doutor em direito e sociologia (UFF). Auditor-Fiscal do Trabalho. Professor do Centro Universitário Geraldo di Biase. Pesquisador e membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito (ABraSD), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação Interdisciplinar em Sociais e Humanidades (ANINTER-SH) e da Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED).

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