11. A personalidade do psicopata na dosimetria.
Longe de apresentar qualquer mácula de inconstitucionalidade por atipia, a avaliação criminal da personalidade já se encontra sedimentada na práxis jurisprudencial, intuitivamente materializada em jargões como “indivíduo tendente ou predisposto à delinquência”, ou ainda “de ação contumaz”, entre outros. Simplesmente o fruto da presença recorrente destes acusados nos meios policiais e judiciários.
Vimos que a potencialidade de ressocialização de um psicopata depende fundamentalmente de sua disposição para refrear os impulsos antissociais pela conveniência mais imediata de manter-se livre da prisão, ainda que despido de avaliação ética sobre as condutas que o levam ao cárcere. E que esta sutil e importante medição analítica deve ser realizada por um profissional habilitado a fazê-la. Mas, retornando ao momento de fixação da pena no processo condenatório, caso precedido de um diagnóstico do transtorno, parece coerente afirmar que esta prova milite a princípio em favor da acusação e de um agravamento circunstancial da pena-base prevista em abstrato, atendendo ao art. 59 do Código Penal. E na fase de execução da pena, evite a progressão, o indulto e o livramento condicional, colocando o psicopata em contato precoce com a sociedade.
Sem embargo, o interesse da perícia psiquiátrica e psicológica pela defesa pode tanto radicar na constatação de alguma doença mental traduzível em inimputabilidade, ou semi-imputabilidade tratável por medida de segurança ou internamento; quanto de algum outro transtorno de personalidade em que a noção de culpa e remorso não esteja inexoravelmente comprometida, geralmente o transtorno narcisista típico. Haveria ainda a hipótese de que o psicopata diagnosticado e submetido a tratamento prévio à condenação possa estar respondendo satisfatoriamente a um processo analítico capaz de discernir um nível desprezível de potencialidade lesiva futura. E que isto se dê a partir de uma detecção de processo consciente que o detento manifeste ao analista, estabelecendo claramente a percepção causal entre uma conduta que afete terceiro e o retorno à prisão, ao longo de um período de consultas capaz de constatar a autenticidade deste aprendizado. No caso de imputados que estejam cumprindo decretação de prisão preventiva, a perícia pode servir do mesmo modo.
12. O ensino da ética como instrumento arrefecedor do psicopata institucional.
Há um aspecto educacional que merece atenção. Se a adequada avaliação entre o certo e o errado, o importante e o desimportante, o bem e o mal, também é uma condição pedagógica, falhas estruturais na educação provavelmente estejam agregando amplitude à ‘histeria coletiva’ de que nos fala Lobaczewski, evitando a adequada identificação, segregação e readequação social dos psicopatas. Olhando um pouco para trás, a disciplina moral e cívica (Organização Social e Política do Brasil, Dec.-Lei 869/69) foi suprimida da rede curricular. O ensino das limitações egocêntricas encontra-se bastante prejudicado no seio familiar. Quem não aprendeu o que é ser ético (e o porquê de respeitar limites) não tem condição de ensiná-lo, muito menos avaliá-lo adequadamente num contexto jurídico-criminológico extremamente complexo e via de regra psicopático, como é o crime organizado.
O ensino da ética ficou muito restrito ao ambiente religioso, quando deveria ser desenvolvido por meio de uma disciplina regular nas escolas, integrando ainda conceitos e instrumentos para o exercício de cidadania, fomentando o sentimento de pertencimento à âmbitos de expressão e relação mais amplos que o individual, como ‘sociedade’ e ‘pátria’. No atual contexto, relegada à fé metafísica, a ética tornou-se “opção” de conduta, não um imperativo categórico de direito-dever. A questão suscita revisões urgentes da estrutura curricular e a reorganização das instituições, a fim de compreender a problemática e alterá-la providencialmente.
13. Filtros institucionais.
Percebe-se que um sistema ressocializador e até mesmo socializador futuro que leve em conta o diagnóstico da psicopatia terá que necessariamente evitar a inserção de seus portadores em funções que ordinariamente exijam avaliações éticas inter-relacionadas, como o Professorado, o Direito, a Administração de Empresas, a Política e a Medicina, reservando-lhes atividades mais modestas e essencialmente mecânicas ou lógicas. Para as cúpulas de governo, Lobaczewski sugeriu um Conselho composto de médicos e psicólogos, competente para filtrar candidatos às eleições, o que de fato evitaria muitos dos transtornos relacionados ao mau uso do poder.
O mesmo foco diagnóstico deveria ser adotado pelos Conselhos de Fiscalização Profissional e OAB, não apenas para a avaliação de habilitação e exclusão dos quadros profissionais, mas de própria assepsia interna.
14. Conclusões.
Embora haja estudos inconclusivos que tenham investigado causas biológicas e genéticas para o distúrbio antissocial, a compreensão do caráter proibitivo, ou pelo dos efeitos prejudiciais que a conduta provoca (imorais), não se vê prejudicada e este é um entendimento praticamente unânime dos especialistas. O senso ético distorcido do psicopata inclusive recomendaria, sob o prisma repressivo e preventivo da ação estatal, maior rigor no cálculo da pena e na aplicação de medidas cautelares voltadas à constrição da liberdade de ir e vir, especialmente se no exercício de uma função que envolva poder, ou a administração de patrimônio alheio, público ou privado.Também é preciso dedicar especial atenção à proteção de vítimas, testemunhas e provas do processo.
Muito ingênuo seria o legislador se, diante da suspeita de ação psicopática, restringisse o poder coercitivo do Estado à conduta criminal pretérita esmiuçadamente comprovada. A antevisão do comportamento delinquente a partir da personalidade, embora não possa figurar como elemento estrutural do delito ou tipo penal de forma isolada, é perfeitamente viável como anteparo complementar indiciário apto a atender a prevenção social da pena e a garantia processual do poder punitivo do Estado. Trata-se de um dos elementos de avaliação dosimétrica da pena (primeira fase), e pode servir para calibrar com maior precisão as medidas cautelares dirigidas à produção probatória do Estado-juiz, especialmente a constrição preventiva da liberdade de um sujeito suspeito ou comprovadamente psicopata, seja ele de atuação isolada ou coordenada em associação criminosa.
Sob o prisma da prevenção social, a periculosidade extremada de alguns destes indivíduos não pode ser negligenciada, mesmo que necessariamente atrelada à elementos indiciários ou probatórios de conduta em curso, já que a rigor não se pode punir/prevenir a mera cogitação criminosa. É preciso ter em mente que alguns psicopatas são responsáveis pelas piores atrocidades físicas e psicológicas praticadas desde os primórdios da sociedade civil organizada. Isto vai de homicidas que destroçam famílias num único ato, a políticos corruptos que durante anos desviam preciosos recursos do erário, prejudicando inúmeros usuários do sistema público de saúde e inibindo uma educação de qualidade aos cidadãos economicamente menos favorecidos.
A incapacidade de avaliação ética do psicopata, potencialmente desbordável a um ato ilícito, é um fato científico. Uma realidade, não uma hipótese como as abandonadas teorias morfológicas dos primórdios da criminologia. Por isto merece tratamento não apenas médico e psicológico, mas jurídico-interpretativo diferenciado.
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