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A história dos direitos sociais

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Agenda 29/10/2005 às 00:00

Os direitos sociais na Sollicitudo Rei Socialis

Vinte anos depois de promulgada a encíclica Populorum Progressio de Paulo VI e dada a sua importância, João Paulo II quis retomar as suas grandes linhas e fazê-las presentes nos tempos atuais.

A Sollicitudo Rei Socialis (A solicitude ou o cuidado da coisa social), de 1987, é um documento caracterizado tanto pela fidelidade do diagnóstico do mundo atual quanto pela profundidade dos princípios e das diretrizes que propõe.

Fazendo um prognóstico do panorama do mundo contemporâneo (nº 11-26), diz que o desenvolvimento dos povos, preconizado com realismo pela carta apostólica de 1967, está muito longe de sua realização (nº 12). "Em linhas gerais... não se pode negar que a situação do mundo atual, sob o ponto de vista do desenvolvimento, nos deixa uma impressão prevalentemente negativa" (nº 13). Os milhões e milhões de homens, mulheres e crianças que atualmente sofrem miséria no mundo inteiro atestam eloqüentemente a distância entre o ideal e a realidade.

Entre os pontos negativos do momento presente, o Santo Padre enumera alguns "índices genéricos, sem excluir outros específicos" (nº 13).

O primeiro é o fosso permanente, e muitas vezes crescente, entre o Norte desenvolvido e o Sul do globo em vias de desenvolvimento. É inegável que acima da linha do Equador, de modo geral, são muito mais fartas as condições de alimentação, higiene, saúde, habitação, trabalho e duração de vida. Ora, é precisamente no hemisfério sul que vive a maior porção do gênero humano. As diferenças entre Norte e Sul vão-se acentuando aceleradamente.

Essas diferenças socioeconômicas envolvem um conteúdo moral, ou seja, responsabilidades e deveres de consciência (nº 14).

O segundo são o analfabetismo e a dificuldade ou impossibilidade de ter acesso aos níveis superiores de instrução. Isso discrimina os membros da sociedade (nº 15).

O terceiro é a sufocação do direito de iniciativa econômica. A pretensa "igualdade" de todos na sociedade destrói o espírito de iniciativa ou a subjetividade criadora do cidadão. Resulta daí um nivelamento por baixo, que monopoliza a totalidade dos meios de produção. Isso acontece também com inteiras nações colocadas na dependência de outras (nº 15).

O quarto é a negação ou a limitação de outros direitos humanos, como o direito à liberdade religiosa, à liberdade de associação, à de constituir sindicatos, o que empobrece a pessoa humana tanto, se não mais, quanto a privação de bens materiais (nº 15).

O quinto é a crise de habitação (alojamento). Milhões de seres humanos estão privados de morada conveniente ou mesmo de qualquer tipo de habitação (nº 17).

O sexto são o desemprego e o subemprego. As fontes de trabalho contraem-se, em detrimento de muitos jovens. A explosão demográfica agrava esse problema. Tal situação contribui para a perda do respeito que cada pessoa, homem ou mulher, deve a si mesma (nº 18).

O sétimo é a dívida internacional. Para pagar seus débitos, os povos subdesenvolvidos são obrigados a exportar os capitais que seriam necessários para melhorar ou, ao menos, para manter o seu nível de vida (nº 19).

O oitavo é a interdependência das nações entre si; fato compreensível, mas que, quando desligado de exigências éticas, provoca efeitos negativos até nos países ricos (nº 17).

O nono é a produção e o comércio de armas, especialmente das atômicas. Isso constitui grave desordem no mundo atual, pois esses recursos deveriam ser utilizados para aliviar a miséria das populações indigentes... "As armas... circulam com liberdade quase absoluta nas várias partes do mundo" (nº 24).

O décimo são os milhões de refugiados que manifestam os desequilíbrios e conflitos do mundo atual. "A tragédia desses resultados reflete-se no rosto arrasado de homens, mulheres e crianças que não conseguem mais encontrar um lar" (nº 24).

O décimo primeiro é o terrorismo, chaga do mundo de hoje. Implica o propósito de matar e destruir homens e bens sem distinção e de criar um clima de insegurança e pavor, não raro recorrendo à captura de reféns (nº 24).

O décimo segundo é o problema demográfico. No hemisfério sul a explosão populacional cria dificuldades ao desenvolvimento, ao passo que na parte setentrional se dá o inverso: há quebra de índices de natalidade biologicamente. "Não está demonstrado que todo o crescimento demográfico é incompatível com um desenvolvimento ordenado" (nº 25).

As campanhas governamentais contra a natalidade são financiadas com freqüência por capitais provenientes do estrangeiro e envolvem desrespeito à liberdade das pessoas interessadas, reiteradamente submetidas a intoleráveis pressões (nº 25).

No diagnóstico internacional do mundo contemporâneo, João Paulo II aponta também os seus pontos positivos.

O primeiro é a crescente consciência da dignidade própria da pessoa humana e, conseqüentemente, dos povos como tais. Em virtude da Declaração dos Direitos Humanos promulgada pela ONU, em 1948 (The Universal Declaration of Human Rights), há certa preocupação com os direitos humanos e com as suas violações (nº 26).

O segundo é que se intensifica também a convicção de que os indivíduos e os povos são naturalmente solidários entre si; os homens estão ligados por uma vocação comum, que há de ser atingida conjuntamente, caso se queira evitar a catástrofe para todos. O bem e a felicidade a que aspira o gênero humano não se podem obter sem o esforço e a aplicação de todos, o que implica a renúncia ao próprio egoísmo (idem).

O terceiro é a verificação do anseio pela paz, com a tomada de consciência de que este é indivisível; ou será algo de todos ou não será de ninguém.

O quarto que menciona é a preocupação ecológica. Os homens vão reconhecendo os limites dos bens disponíveis e a necessidade de respeitar a integridade e os ritmos da natureza, em vez de os sacrificar a concepções demagógicas (idem).

No quinto, vêem-se muitos estadistas, políticos, economistas, cientistas... não raro inspirados pela sua fé religiosa, que se empenham generosamente por encontrar o remédio para os males deste mundo. Para isso contribuem também algumas organizações internacionais ou regionais e certas associações privadas, de caráter mundial (idem).

Em sexto lugar, algumas nações do Terceiro Mundo já conseguem alcançar certa auto-suficiência alimentar ou um grau de industrialização que lhes permite viver dignamente e assegurar fontes de trabalho à população ativa (idem).

Assim, nem tudo é negativo no mundo contemporâneo. A consciência moral ainda está viva, principalmente no tocante aos grandes problemas humanos.

O pontífice indaga: quais as causas do desenvolvimento atual? São muitas e complexas, merecendo relevo as de índole política.

Após a II Guerra Mundial (1939-1945), constituíram-se dois blocos contrapostos (Leste e Oeste), designados como capitalismo liberal e coletivismo marxista. A contraposição ideológica evoluiu no sentido de contraposição militar, dando origem a dois blocos de potências armadas, cada um deles desconfiando e receoso da prevalência do outro. Daí se segue um estado de guerra fria, com ameaça de guerra aberta e total.

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Cada qual dos dois blocos traz no seu âmago a tendência ao imperialismo ou a novas formas de colonialismo, principalmente em relação aos povos recém-emancipados do domínio estrangeiro; muitos deles, receando tornar-se vítimas de um neocolonialismo, agruparam-se no chamado "Movimento internacional dos Países Não-alinhados", que visa a afirmar o direito de cada nação à própria identidade, à independência e à segurança (nº 20-22).

Esboçando o panorama do mundo contemporâneo, o texto da encíclica nos apresenta os traços de um autêntico desenvolvimento humano (nº 27-34).

Inicialmente verifica que ele não é um processo retilíneo, como se caminhasse para uma espécie de progresso indefinido. As duas últimas guerras mundiais, destruindo multidões e valores culturais, dissuadem de um otimismo mecanicista (nº 27).

Também percebe que não se limita ao setor econômico. A felicidade exige também o cultivo dos valores morais. No fenômeno do superdesenvolvimento há "excessiva disponibilidade de bens materiais em favor de algumas camadas sociais; isto torna os homens escravos da posse e do gozo imediato, sem outro horizonte que não seja a multiplicação ou a contínua substituição das coisas que já se possuem por outras mais perfeitas. É a civilização do consumo ou o consumismo, causa de muitos desperdícios e estragos. Um objeto que se possui e já está superado por outro mais perfeito é posto de lado, sem se levar em conta o possível valor permanente que ele tem em si mesmo ou para benefício de outro ser humano mais pobre" (nº 28). Ter bens materiais "não aperfeiçoa o ser humano e não contribui para o enriquecimento do seu ser, ou seja, para a realização da sua vocação humana como tal" (idem). O ter deve estar subordinado ao ser do homem ou à necessidade de tornar-se cada vez mais lúcida a imagem de Deus (Gn 1, 26).

Em seguida acrescenta a tudo isso a dimensão religiosa do autêntico desenvolvimento, que tende a levar o homem a vencer o pecado e encaminhar todas as coisas para a plenitude do Reino de Deus sob a chefia de Jesus Cristo (1 Cor 15, 24). Este, o aspecto teológico do desenvolvimento (nº 30 et seq..). O imperativo de empenhar-se pelo desenvolvimento vale para todos e cada um dos indivíduos humanos e das nações. Assim é que os católicos devem colaborar com outras comunidades religiosas cristãs e não cristãs (nº 32).

Finalmente, o autêntico desenvolvimento compreenderá sempre o respeito aos direitos dos homens e das sociedades dentro de um quadro da solidariedade, que jamais sacrificará o próximo a interesses egoístas ou particulares. É a consciência moral que o pede (nº 33 et seq.).

João Paulo II é enfático, ao afirmar que o desenvolvimento dos povos não se deve apenas a fatores econômicos e políticos, mas a razões de índole moral. Por essa razão, propõe uma análise teológica dos tempos modernos (nº 35).

Um mundo dividido em blocos mantidos por ideologias rígidas, onde dominam diversos fatores de imperialismo, é um mundo submetido a "estruturas de pecado". O plano divino acerca da humanidade é inspirado por justiça e misericórdia, que solicita dos homens o cumprimento dos deveres referentes ao próximo. A sua não observância (Ex 20, 12-17; Dt 5, 16-21) ofende a Deus e prejudica o próximo, introduzindo no mundo obstáculos que interferem no desenvolvimento dos povos (nº 36).

As atitudes que mais causam as estruturas pecaminosas parecem ser duas: a avidez exclusiva do lucro e a sede do poder, sempre a qualquer preço ou de maneira absoluta – uma destas atitudes está indissoluvelmente unida à outra. "Se certas formas modernas de imperialismo se considerassem à luz destes critérios morais, descobrir-se-ia que, por detrás de certas decisões, aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia, da classe e da tecnologia" (nº 37).

Para o pontífice, estamos diante de um mal moral, que produz "estruturas de pecado". O caminho para superá-lo é o da conversão. No campo social, implica a consciência crescente da interdependência entre os homens e as nações, da qual procede a virtude da solidariedade – uma determinação firme de empenhar-se pelo bem comum. Trata-se de perder-se em benefício do próximo, em vez de o explorar e oprimir (nº 38).

Paralelamente, a solidariedade deve unir as nações entre si, a fim de instaurar-se um sistema internacional que se apóie no fundamento da igualdade de todos os povos e seja regido pelo indispensável respeito às suas legítimas diferenças. Quanto mais se chegar perto deste ideal, verificar-se-á que "a paz é o fruto da justiça" (Pio XII) e que "o desenvolvimento é o novo nome da paz" (Paulo VI). Desse modo, a justiça gera a paz e a paz, o desenvolvimento (nº 39).

A solidariedade assim apregoada redunda em caridade (Jo 13, 35). Admiráveis testemunhos se vêem nos santos católicos. S. Pedro Claver pôs-se a serviço dos escravos em Cartagena das Índias; São Maximiliano Maria Kolbe ofereceu a vida em favor de um prisioneiro que lhe era desconhecido, no campo de concentração de Auschwitz (nº 40).

Sua Santidade não tem soluções técnicas para o problema do subdesenvolvimento; interessa-se para que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e promovida. A sua doutrina social é a aplicação das verdades da fé e da tradição eclesial às complexas realidades do homem na sociedade nacional ou no contexto internacional (nº 41).

A opção ou amor preferencial pelos pobres abarca as "imensas multidões de famintos e de mendigos, sem teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor" (nº 42), como, aliás, também os que são privados dos seus direitos fundamentais, como são o direito à liberdade religiosa e o direito à iniciativa econômica.

A preocupação com os pobres deve chegar a uma série de reformas necessárias, como a do sistema internacional de comércio, a do sistema monetário e financeiro mundial, a da estrutura das organizações internacionais existentes no quadro de uma ordem jurídica internacional, a questão dos intercâmbios de tecnologias e do seu uso apropriado (nº 43).

O desenvolvimento requer também espírito de iniciativa da parte dos próprios países que necessitam dele, sem estar à espera de tudo dos países mais favorecidos. É recomendável às nações menos aquinhoadas favorecer a alfabetização e a instrução de cada cidadão, bem como o incremento da produção alimentar. Isso, sem falar na necessidade da reforma de algumas instituições políticas, para substituir regimes corruptos ou ditatoriais por regimes democráticos (nº 44).

Concluindo (nº 46-49), lembra que os povos e indivíduos aspiram à libertação de qualquer forma de escravidão, o que é nobre e válido.

Em síntese, o desenvolvimento meramente econômico acaba por escravizar mais ainda o homem. O autêntico desenvolvimento há de levar em conta as dimensões culturais, transcendentais e religiosas da pessoa humana. O obstáculo principal para chegar-se a tal idéia é o pecado fortalecido pelas estruturas que ele suscita (nº 46).


Os direitos sociais na Centesimus Annus

A encíclica Centesimus Annus, comemorando o centenário da Rerum Novarum, de Leão XIII, foi assinada por João Paulo II, em 1º/05/1991. O texto compreende, além da introdução, seis capítulos, que olham para o passado (as coisas novas do fim do século XIX), para o presente (as coisas novas do fim do século XX) e para o futuro (as coisas novas do terceiro milênio).

Abordando os traços característicos da Rerum Novarum, o papa diz que Leão XIII se voltou para a "questão operária", isto é, para a triste condição dos trabalhadores sujeitos às arbitrariedades dos patrões no tocante a salários, horas e condições de trabalho, repouso etc. Sem dúvida que a revolução industrial, vivida por capitalistas liberais, cujo grande interesse era o lucro, os sacrificava muito. Para solucionar o problema, o socialismo propunha a coletivização dos meios de produção ou a transferência do capital para o Estado, o que mais prejudicaria e despojaria os obreiros.

Após o brado de alerta e as intervenções de clérigos e leigos do século XIX, Leão XIII resolveu propor na encíclica o pensamento católico sobre o assunto: o trabalho não é mercadoria, mas é expressão da pessoa humana, que tem dignidade inconfundível, e, por isso, merece salário justo, suficiente para manter o trabalhador e sua família; merece repouso correspondente à fadiga acarretada; o proletário deve poder associar-se aos seus colegas de luta em organizações posteriormente ditas "sindicatos"; o Estado há de favorecer a classe operária, garantindo o respeito aos seus direitos. "A ninguém escapa a atualidade dessas reflexões. Será conveniente... ter presente que aquilo que serve de linha condutora da encíclica e de toda a doutrina social da Igreja é a correta concepção da pessoa humana e do seu valor único" (nº 11).

Caminhando rumo às "coisas novas" de hoje, o pontífice afirma: "A comemoração da Rerum Novarum não seria adequada se não olhasse também para a situação de hoje" (nº 12).

Leão XIII, de certo modo, já previra os acontecimentos que marcariam os últimos cem anos, entre os quais os dois últimos meses de 1989 e os dois primeiros meses de 1990, quando se deu a queda do socialismo nos países da Europa central e oriental. Mesmo sem conhecer um Estado socialista forte e poderoso, o papa predisse o malogro do socialismo. Por que terá desmoronado?

"O erro fundamental do socialismo é de caráter antropológico... Considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo econômico-social" (nº 13). Essa errônea concepção do homem tem sua causa primeira no ateísmo, e o ateísmo prende-se ao racionalismo ou iluminismo do século XVIII, quando os pensadores conceberam o homem de maneira mecanicista.

Da mesma raiz ateísta deriva-se a escolha dos meios de ação própria do socialismo, que é a luta de classes. Condenável por desrespeitar a dignidade da pessoa humana, ela abstrai de considerações éticas e jurídicas, sem excluir o uso da mentira e o recurso ao terror.

O ateísmo, que levou ao desprezo de Deus e do próximo, atingiu as suas conseqüências extremas no trágico ciclo das duas guerras mundiais de 1914-1918 e 1939-1945. "Foram duas guerras ditadas pelo militarismo e pelo nacionalismo exacerbado e pelas formas de totalitarismo a esses ligadas, e guerras derivadas da luta de classes, guerras civis e ideológicas. Sem a terrível carga de ódio e rancor, acumulada por causa de tanta injustiça..., não seriam possíveis guerras de tamanha ferocidade..., em que não se hesitou em violar os direitos humanos mais sagrados, sendo planificado e executado o extermínio de povos e grupos sociais inteiros. Recorde-se aqui, em particular, o povo hebreu, cujo destino terrível se tornou um símbolo da aberração a que pode chegar o homem quando se volta contra Deus" (nº 17).

Analisando as “coisas novas” de hoje, o pontífice verifica que, desde 1945, as armas silenciaram no continente europeu. A paz foi mantida à custa de louca corrida aos armamentos, que absorve os recursos necessários para o equilíbrio da economia e para auxiliar as nações mais desfavorecidas. O progresso científico e tecnológico, que deveria contribuir para o bem-estar do homem, acaba se transformando num instrumento de guerra. Sobre o mundo inteiro pesa a ameaça de guerra atômica, capaz de provocar a extinção da humanidade.

Além do socialismo e de sua odisséia, na história dos povos contemporâneos, registram-se três outras configurações da sociedade: A primeira é o Estado de Segurança Nacional, que visa controlar toda a sociedade; exaltando o poder do Estado, corre o risco de destruir a liberdade e os valores dos cidadãos. Outra réplica do marxismo é a sociedade do conforto ou do consumo, que pretende mostrar como o livre mercado pode melhor atender ao homem do que a economia do comunismo; nega, assim, os valores da moral, do direito, da cultura e da religião, reduzindo o homem ao plano da satisfação das necessidades materiais. A terceira é o processo da descolonização; vários países adquirem ou reconquistam a independência, mas ainda estão no início do caminho para a autêntica soberania – ainda são controlados por potências estrangeiras nos setores da economia, da tecnologia e da política.

Tentando contribuir para a reestruturação da ordem social, após a II Guerra Mundial, os povos aproximaram-se entre si na Organização das Nações Unidas, que procura despertar no mundo inteiro a consciência dos direitos dos indivíduos e dos povos. Ainda assim, “as Nações Unidas não conseguem construir instrumentos eficazes, alternativos à guerra, na solução dos conflitos internacionais, e este parece ser o problema mais urgente que a comunidade internacional tem para resolver” (nº 21).

Ponto importante da encíclica é a reflexão sobre os acontecimentos que marcaram o final de 1989, ou seja, a queda do marxismo no centro-leste europeu.

”Contributo importante, mesmo decisivo, veio do empenho da Igreja na defesa e promoção dos direitos do homem: em ambientes fortemente dominados por ideologias, onde a filiação partidária ofuscava o sentimento da dignidade humana comum, a Igreja, com simplicidade e coragem, afirmou que todo o homem – sejam quais forem as suas convicções pessoais – traz gravada em si a imagem de Deus e, por isso, merece respeito. Com essa afirmação muitas vezes se identificou a grande maioria do povo, o que levou à procura de formas de luta e de soluções políticas mais respeitadoras da dignidade da pessoa” (nº 22).

Na Polônia, os operários uniram-se entre si em solidariedade e desautoraram o sistema de idéias que pretendia falar em nome deles. Sem derramamento de sangue, o marxismo foi derrubado pelo testemunho da verdade dos não-marxistas e pela procura da negociação e do diálogo.

A causa das mudanças na Europa de 1989 está no vazio espiritual provocado pelo ateísmo, que deixou as jovens gerações privadas de orientação e as induziu a redescobrir as raízes religiosas da sua cultura, numa resposta adequada aos anseios de bem, verdade e vida que moram no coração de cada homem. “Esta procura encontrou guia e apoio no testemunho de quantos, em situações difíceis e até na perseguição, permanecem fiéis a Deus. O marxismo tinha prometido desenraizar do coração do homem a necessidade de Deus, mas os resultados demonstram que não é possível consegui-lo sem desordenar o coração” (nº 24). Digno de nota é o seguinte inciso: “Os fatos de 1989 oferecem o exemplo do sucesso da vontade de negociação e do espírito evangélico contra um adversário decidido a não se deixar vincular por princípios morais: eles são uma advertência a quantos, em nome do realismo político, querem banir o direito e a moral da arena política. É certo que a luta que levou às mudanças de 1989 exigiu lucidez, moderação, sofrimentos e sacrifícios; em certo sentido, aquela nasceu da oração e teria sido impossível sem uma confiança ilimitada em Deus, Senhor da história, que tem nas mãos o coração dos homens. Só unindo o próprio sofrimento pela verdade e pela liberdade ao de Cristo na cruz é que o homem pode realizar o milagre da paz e discernir a senda freqüentemente estreita entre a covardia que cede ao mal e a violência que, na ilusão de o estar combatendo, o agrava ainda mais” (nº 25).

Ao analisar a propriedade privada e o destino universal dos bens, a parte final é a mais densa de toda a encíclica. Os seus tópicos podem ser assim anotados:

A propriedade privada deve frutificar em favor não só do respectivo proprietário, mas em prol de outros homens. Tão importante quanto a terra é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. Ela é que dá ao trabalho maior valor, pois pode avaliar as carências do homem e produzir aquilo de que o mercado necessita.

À honestidade e à justa função do lucro deve associar-se a consideração de outros fatores humanos e morais, essenciais para a vida da empresa. Por falta de escola ou de capacidade pessoal, muitos trabalhadores são marginalizados, vivendo na periferia das grandes cidades, em condições precárias. É de desejar que haja especial atenção das autoridades, para que eles se possam inserir na comunidade de trabalho.

O capitalismo liberal não é a alternativa para o socialismo real. O ideal é “um sistema econômico que reconheça o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia” (nº 42). A Doutrina Social da Igreja aponta a necessidade de o mercado e a empresa serem orientados para o bem comum.

No seio da família o homem recebe as primeiras noções da verdade e do bem, aprende o que é amar e ser amado e o que significa ser uma pessoa (nº 39).

Na questão ecológica o homem é chamado a respeitar a obra do Criador, levando-a à condição de ser digna do hábitat do homem e motivo de louvor a Deus (nº 37).

Refletindo sobre o Estado e a Cultura, diz que o totalitarismo do Estado arroga para si a isenção de erro ou infalibilidade de decisões e exercício de poder absoluto. Absorve a Nação, a sociedade, a família, as comunidades religiosas e as próprias pessoas. A carta apostólica defende a própria liberdade e a pessoa, que deve obedecer antes a Deus do que aos homens (At 5,29), a família, as diversas organizações sociais e as Nações (nº 45).

Relativamente ao ideal democrático, “é necessário que os povos... dêem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos direitos... à vida, direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade, direito a amadurecer sua inteligência e liberdade na prova da verdade, direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra, direito a fundar uma família, direito a viver na verdade da própria fé” (nº 47).

O sucessor de Pedro, seguindo a evolução da questão social, aborda o “homem real, concreto, cujo caminho passa pelo mistério da Encarnação e da Redenção” (nº 53).

A opção preferencial pelos pobres “estende-se não só à pobreza material, mas também à cultural e religiosa... Nos países ocidentais, existe a variada pobreza dos grupos marginalizados, dos anciãos e doentes, das vítimas do consumo, e ainda de tantos refugiados e migrantes, se não forem tomadas medidas internacionalmente coordenadas... O amor ao homem concretiza-se na promoção da justiça. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não deixarem de ver no necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um importuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior” (nº 57 et seq.).

Olhando o terceiro milênio, o pontífice agradece ao Criador “a luz e a força para acompanhar o homem no seu caminho terreno para o destino eterno, na fidelidade Àquele que é o mesmo, ontem e hoje (Hb 13,8) e o será para a eternidade” (nº 62).

O mundo atual tem na encíclica de João Paulo II fecunda mina de observações e reflexões relativas à tormentosa realidade de nossos dias.

Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. A história dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 848, 29 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7434. Acesso em: 26 dez. 2024.

Mais informações

Texto baseado em série de 24 artigos publicados no periódico "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre outubro de 2003 e março de 2004.

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