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Uma abordagem crítica do princípio da secularização na legislação penal atual

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Agenda 22/10/2005 às 00:00

SUMÁRIO: 1- Introdução; 2- Aspectos históricos e conceituais da secularização; 2.1- Precedentes históricos à secularização; 2.2- Princípio da secularização: definição dos termos; 3- O Princípio da Secularização no Direito Penal atual; 3.1 Aspectos da intimidade do agente como relevantes para o direito penal; 3.2- A necessidade da lesividade ao bem jurídico como caminho para concretização de um direito penal mínimo; 3.3- O Princípio da Secularização e a execução penal; 4- CONCLUSÃO; 5- BIBLIOGRAFIA.


1 INTRODUÇÃO

            O Direito Penal atual é resultado de um processo evolutivo, que se iniciou com o surgimento da sociedade e a necessidade de regularizar o convívio social de forma a evitar a vingança privada, culminado com o processo de secularização e a tentativa de separar direito e moral/pecado. Porém, percebemos como, ainda hoje, encontramos na legislação resquícios de um direito penal não secularizado. A lei traz, muitas vezes, conteúdo nitidamente moral, onde o que se pune é a pessoa do autor e não o fato criminoso, caracterizando o processo de inflação legislativa, contrário à idéia de direito penal como última ratio almejada pela doutrina garantista. Dessa forma, o Princípio da Secularização, corolário de princípios consagrados como o da legalidade, da lesividade e da intervenção mínima, é assunto atual e merece análise à luz do Estado Democrático de Direito.


2 Aspectos históricos e conceituais da secularização

            2.1-Precedentes históricos à secularização

            Com o surgimento da sociedade, nasceu o direito, o qual veio para regular o convívio entre as pessoas. A primeira forma de manifestação do direito foi o Direito Penal.

            A primeira idéia de direito está diretamente ligada à religião. Durante o Império Romano a pena tinha caráter sacral, era a expiação da falta praticada contra a comunidade religiosa e meio de aplacar a ira dos deuses1. Assim, também na Grécia era reconhecida a existência de uma lei não escrita, baseada na eqüidade e na tradição, além de existir uma íntima vinculação da norma jurídica com princípios morais e religiosos2.

            Jeanine Nicolazzi Philippi3 relata, que, em Roma, a religião significava estar ligado ao passado, que devia ser preservado, santificado e cultuado, inclusive pelas leis que eram elaboradas de acordo com os costumes dos antepassados. Todavia, com o transcorrer dos anos, os romanos começaram a questionar-se sobre a origens das leis. Dizia-se que era conseqüência de um saber racional, destinado a solucionar os conflitos, mas, por outro lado, era afirmado que a lei provinha de um lugar mítico, explicada e sustentada por intermédio da figura do Autor, de uma crença no Pai. Nesta época o homem não pretendia dominar o mundo

            Francisco de Assis Toledo relata que a lei humana é tida como menos perfeita por ser elaborada pelos homens, e deveria refletir princípios da lei natural. Dessa forma, a lei humana embora merecesse ser obedecida, não era uma verdadeira lei quando colidente coma lei natural e se colidente coma lei divina, não merecia sequer obediência4.

            Com a decadência do Império Romano, e sua divisão em Ocidente e Oriente, a contar do século V, há um deslocamento de autoridade e poder de Roma ao Chefe da Igreja Católica Romana. Esta, por sua vez, desenvolveu um direito canônico, estruturado num "conjunto normativo dualista – laico e religioso – que irá se manter até o século XX". Como conseqüência, nas Idades Antiga e Medieval, o Direito, confundido com a Justiça, era ditado pela Igreja, que, possuindo autoridade e poder, se dizia "intérprete de Deus na terra"5.

             Durante o período da que inicia a secularização (laicização), os contratualistas John Locke, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rosseau, entre outros, pela teoria do contrato social (século XVII e XVIII), sustentaram um o direito do Estado na razão, opondo-se ao direito romano, canônico e ao princípio da retribuição da pena, dando a ela um fim de utilidade comum6.

            Posteriormente a estes autores, surge propriamente o período chamado Iluminismo, precedido também, de um contexto social, político e cultural marcado por descobertas científicas, baseando o conhecimento no método emprírico7. A partir de então, o homem passa a ser o centro do mundo, pois quem tem o conhecimento, tem o poder.

            O grande marco do Iluminismo é a obra que Beccaria publica, em 1764, Dei Deliti e delle pene, encerrando o direito romano-canônico que ainda vigorava na época. Entre a idéias defendidas pelo autor estão a posição ao arbítrio legislativo e judicial que prevalecia na época, o fim da tortura, e leis claras e precisas, não permitindo nem ao juiz sua interpretação8. Percebe-se que a luta de Beccaria ainda hoje tem cabimento nos casos de normas penais em branco, tão comuns em nossa legislação vigente.

            Uma das lutas dos Iluministas era o afastamento das exigências formuladas pela Igreja ou devidas puramente à moral, caracterizando-se o processo de secularização, ainda não concluso atualmente9.

            No século XIX, surge na Itália, Francisco Carrara, o qual afirma a existência de uma lei eterna de ordem, formulada por Deus, da qual deriva a sociedade e o direito. Carrara faz claramente a distinção entre direito e moral, contrapondo-se a Rossi neste aspecto. Sua obra é um sistema de absoluto rigor lógico, onde analisou o conceito de crime, e constatou nele uma força física e uma moral, que hoje correspondem, respectivamente, ao elemento objetivo e subjetivo do crime10.

            Com a separação entre direito e moral, de forma que a esta ficasse reservado o foro íntimo e a ele o foro externo, cada indivíduo passa a ser responsável perante sua própria consciência pela observância da regras morais, e ao direito cabe regular as ações humanas, desde que exteriorizadas nas mais variadas formas de comportamento11. Sendo que ao direito também, cada vez mais, tenta-se restringir ao mínimo o campo de atuação, é o chamado princípio da intervenção mínima do Direito Penal, pugnando seus seguidores pela aplicação desse ramo do direito como ultima ratio, ou seja, apenas e tão somente quando esgotados todos os outros meios extrapenais de controle social.

            2.2 Princípio da secularização: definição dos termos

            O princípio da secularização, de acordo com Luigi Ferrajoli, é a idéia de que inexiste uma conexão entre o direito e a moral. O direito não tem a missão de (re)produzir os elementos da moral ou de outro sistema metajurídico de valores éticos-políticos, mas, tão-somente, o de informar o seu produto de convenções legais não predeterminado ontológico nem tampouco axiologicamente. Mas, por outro lado, salienta o constitucionalista, percebe-se a autonomia da moral com relação ao direito positivo, ou seja, "os preceitos e os juízos morais, com base nesta concepção, não se fundamentam no direito nem em outros sistemas de normas positivas – religiosas, sociais ou de qualquer outro modo objetivas -, senão somente na autonomia da consciência individual". Essas são, segundo o jurista, as duas teses que

            constituyem una adquisición básica de la cultura liberal. Y reflejan el proceso de secularización, culminado al inicio de la Edad Moderna, tanto del derecho como de la moral, desvinculándose ambos em tanto que esferas distintas y separadas de cualquer nexo com supuestas ontologías de los valore12.

            Ressaltam, Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho, que a secularização (laicização) é a ruptura entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas, especialmente entre a moral do clero e a forma de produção da ciência. Por isso, o Estado "não deve se imiscuir coercitivamente na vida moral dos cidadãos e nem tampouco promover coativamente sua moralidade, mas apenas tutelar sua segurança, impedindo que se lesem uns aos outros"13. Com o princípio da secularização busca-se preservar a pessoa numa esfera em que é ilícito proibir, julgar e punir: a esfera do pensamento, das idéias. O princípio da secularização, concluem os articulistas, pode subdividir-se em muitos outros (sub)princípios como: da inviolabilidade da intimidade e do respeito à vida privada (art. 5º, X), do resguardo da liberdade de manifestação de pensamento (art. 5º, IV), da liberdade de consciência e crença religiosa (art. 5º, VI), da liberdade de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII) e da garantia de livre manifestação do pensar (art. 5º, IX).

            O princípio da secularização fez um corte vertical entre a moral eclesiástica e o Direito, sendo que, segundo Luigi Ferrajoli, os preceitos e os juízos morais não têm lastro no Direito, mas, tão-só, na liberdade da consciência individual14. Dessa forma, não pode o direito proibir atos considerados apenas imorais, pois nem tudo que é imoral é ilícito, da mesma forma que nem tudo que é licito é moral.

            Porém, como adverte Toledo,

            não se pode admitir contradição entre direito e moral, pois ambos contém princípios reguladores do comportamento humano. Embora não exista perfeita coincidência entre os dois, seria intolerável um ordenamento jurídico em contradição com as normas morais, além de ineficaz15.

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            A norma moral só tem eficácia com a adesão espontânea dos sujeitos, sendo o direito um instrumento rude e demasiado exagerado para forçar sua observância. Desse modo, não pode e não deve o direito intervir na moral, sendo que em o fazendo promove uma interferência inútil e desastrosa, como foi a experiência da Inquisição com os crimes de heresia, por exemplo. Portanto, o direito penal, "deve limitar extremamente o seu campo de atuação, não podendo transformar-se em desajeitado modelador do caráter, da personalidade, ou em sancionador da formação moral profunda da pessoa"16.

            Salo de Carvalho destaca que Locke, assentado num dos principais temas políticos da época, a liberdade religiosa, e pregando a separação entre Estado e Igreja, rompeu os vínculos entre o direito e a moral. Cindiu, dessa forma, a noção híbrida do modelo inquisitorial, do delito e do pecado, instituindo a tolerância como fundamento do processo de secularização17.

            Nelson Saldanha, descreve o processo de secularização como uma "passagem (gradativa) de contextos dominados pelo padrão teleológico (instituições, valores, linguagem) para contextos marcados pelo espírito [leigo], racional e latentemente crítico"18.

            A secularização proporcionou a criação de um certo relativismo, que iniciou-se com a crise das referências maiores (deuses, religião) e fez a visão das coisas passar da teleologia para a análise social. Ocorre assim, a (re)descoberta do homem por ele mesmo ao ser levado a pensar em seus próprios atos e sobre si mesmo. Porém, como observa o mesmo autor, algo do padrão teleológico permaneceu, como traços e verbos19. Talvez por isso a secularização seja um processo inacabado até hoje.


3 O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO NO DIREITO PENAL ATUAL

            3.1- Aspectos da intimidade do agente como relevantes para o direito penal

            Como já referido no capítulo anterior, direito e moral devem estar separados sendo que ao direito somente é permitido intervir em fatos externos, de forma que a esfera intima do cidadão é protegida de seu alcance. Porém, o processo de secularização não teve um início determinado e muito menos um marco final, sendo que ainda hoje percebemos aspectos da moral sendo valorados pelos legisladores e pelos juizes, caracterizando a secularização como um processo inacabado.

            A separação almejada pela secularização é, ainda hoje, uma luta por parte da doutrina e da jurisprudência, que tenta, através de muitas críticas, afastar critérios subjetivos na aplicação do direito penal. Assim, o Juiz não deve submeter à indagação a alma do imputado, nem deve emitir veredictos morais sobre sua pessoa, mas apenas investigar seus comportamentos proibidos. E um cidadão pode ser julgado, antes de castigado, apenas por aquilo que fez, e não, como no juízo moral, também por aquilo que é [20].

            Leciona Ferrajoli, que o princípio da secularização, inerente ao direito e ao processo penal do Estado Democrático de Direito, exige que os juízos emitidos pelo julgador não versem

            acerca de la moralidad, o el caráter, u otros aspectos substanciales de la personalidad del reo, sino sólo acerca de hechos penalmente proibidos que le son imputados y que son, por outra parte, lo único que puede ser empíricamente probado por la acusación y refutado por la defensa. El juez, por conseguiente, no debe someter a indagación el alma del imputadado, ni debe emitir veredictos morales sobre su persona, sino sólo investigar sus comportamientos prohibidos. Y un cidaudano puede ser juzgado, antes de ser castigado, sólo por aquello que ha hecho, y no, como en el juicio moral por aquello que es [21].

            A noção de periculosidade surgiu com a corrente doutrinária denominada de Positivismo, que implantou a concepção de Estado intervencionista, o qual busca intervir na esfera privada do indivíduo, a fim de combater a criminalidade. Foi com esta corrente que surgiu a tese do criminoso nato, além de trazer para dentro da criminologia conceitos médico, biológico e psicológico. Os positivistas, ao contrário dos doutrinadores da escola clássica, negavam o livre arbítrio do cidadão, baseando-se na personalidade e periculosidade do autor do fato criminoso.

            A personalidade do agente está prevista em nosso Código Penal atual, no artigo 59, entre as circunstâncias de agravam o crime. Contrariando esta previsão, Salo de Carvalho, afirma que a liberdade de pensamento não foi pactuada (referência à tese do contrato social), permanecendo o "ser" como núcleo inviolável por parte do Estado. E conclui dizendo que a "a consciência permanece liberta mesmo se direcionada ao ilícito" [22].

            Os direitos fundamentais são inalienáveis, indisponíveis e invioláveis. Dessa afirmação surgiu a idéia do direito à perversidade (reforçada pelo princípio da secularização). Ser mau é um direito do homem, pois o Estado não pode penetrar em seu interior, não pode dizer como a pessoa dever ser, e sim, deve que respeitar às diferenças.

            Amilton Bueno de Carvalho, reforça o entendimento anterior, conforme percebemos na transcrição de um julgado seu: "A pena-base tenho que merece ficar no mínimo. A personalidade não pode vir contra o apelante porque o cidadão não pode sofrer sancionamento por ela – cada um a tem como entende" [23]. E, seguindo o argumento, o Estado deve proteger o cidadão, repelindo o preconceito. Continua o autor dizendo que, a alegação de "personalidade distorcida, com perfil psicológico apropriado aos delitos praticados é retórica". Além de que, "os juízes não tem habilitação técnica para proferir juízos de natureza antropológica, psicológica ou psiquiátrica, não dispondo o processo judicial de elementos hábeis (condições mínimas) para o julgador proferir "diagnósticos" desta natureza [24].

            Neste sentido, temos, também, a valiosa lição do Des. Sylvio Baptista:

            As circunstâncias judiciais da conduta social e personalidade, previstas no art. 59, do CP, só podem ser consideradas para beneficiar o acusado e não para lhe agravar mais a pena. A punição deve levar em conta somente as circunstâncias e conseqüências do crime. E excepcionalmente minorando-a face a boa conduta e/ou a boa personalidade do agente. Tal posição decorre da garantia constitucional da liberdade, prevista no art. 5º da Constituição Federal. Se assegurado ao cidadão apresentar qualquer comportamento (liberdade individual), só responderá por ele, se sua conduta (lato sensu) for ilícita. Ou seja, ainda que sua personalidade ou conduta social não se enquadre no pensamento médio da sociedade em que vive (mas seus atos são legais) elas não podem ser utilizadas para aumentar sua pena, prejudicando-o [25].

            O conceito de periculosidade é isento de significado técnico, representa, "o mais espetacular resíduo etiológico nos sistemas penais contemporâneos. (carvalho. P. 137. A periculosidade está encoberta, na nossa legislação, pelo conceito de personalidade e conduta social (artigo 50 CP), e representa nada além de "um juízo futuro e incerto sobre condutas de impossível determinação probabilística, aplicada à pessoa rotulada como perversa, com base em uma questionável avaliação sobre sobre suas condições morais e sua vida pregressa" [26].

            Além disso, a noção conceitual de periculosidade vai contra os princípios consagrados pelo Estado Democrático de Direito, baseado na liberdade e na tolerância às diferenças individuais, onde cada ser humano deve ser respeitado pelo que é (direito à intimidade) atuando como instrumento de controle social, buscando neutralizar os diferentes, neste caso os criminosos [27].

            O Estado democrático, voltado à proteção da dignidade humana e orientado no sentido da proteção ao pluralismo político, deve ser entendido juridicamente como um Estado garantidor e incrementador, tanto das liberdades individuais e das características diversificadas de cada um de seus cidadãos, quanto da realização integral das potencialidades humanas e de sua concreta execução dentro de uma política de integração e de participação [28].

            Como relata Salo de Carvalho, percebe-se em nossa legislação formas de avaliação da personalidade em vários institutos, como na dosimetria da pena, nas limitações a direitos derivados da reincidência, e nas avaliações de periculosidade, demonstrando que a estamos longe de um direito penal secularizado [29].

            3.2 A necessidade da lesividade ao bem jurídico como caminho para concretização de um direito penal mínimo

            Após o início da secularização, ao direito passou a interessar somente os aspectos externos da conduta humana em desacordo com as normas vigentes. Portanto, para que o direito penal incida sobre determinado fato, este deve lesionar um bem jurídico, não bastando uma suposta ameaça pra concretizar um crime, o pensamento ou intenção tem que se concretizar numa ação ilícita.

            Dessa forma, à conduta interna, ou puramente individual - seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente - falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal [30]. E conseqüentemente, surge o princípio da lesividade, o qual delimita materialmente o avanço do direito penal.

            Maurício Lopes leciona que, em observância ao princípio da lesividade, o tipo penal possui dois momentos distintos, sendo eles: 1) "no processo de escolha das condutas potencialmente ofensivas aos bens jurídicos mais relevantes" (no momento da produção legislativa - e tipicidade formal); 2) "e na confirmação da ofensa material significativa ou de perigo potencialmente relevante de dano ao bem jurídico tutelado" (tipicidade material) [31].

            Como exemplo da necessidade de lesividade ao bem jurídico para configuração do crime temos que atitudes derivadas não podem ser punidas, tais como a vadiagem e a embriaguez.

            Neste sentido também temos, que os atos meramente preparatórios não podem ser punidos (artigo 14, II do CP). Assim como, o conluio de duas ou mais pessoas para a prática de um ilícito penal não será punido se não iniciada a execução [32].

            Percebe-se a falta de lesividade no crime impossível, onde a vontade é perfeita, mas o meio é inócuo para a realização do crime. Outro exemplo são os casos de autolesão, onde embora a conduta formalmente atinja um bem jurídico, essa exteriorização não ultrapassa âmbito do próprio autor [33].

            Outra afronta ao princípio da lesividade são os crimes de perigo abstrato, pois o delito consuma-se com o simples perigo criado para o bem jurídico. (...) Às vezes a lei exige o perigo concreto, (...) outras vezes refere-se ao perigo abstrato, presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigoso (arts. 135, 253 etc.) [34].

            Nas palavras de Cézar Roberto Bitencourt,

            Crime de perigo é o que se consuma com a simples criação do perigo para o bem jurídico protegido, sem produzir um dano efetivo. Nesses crimes, o elemento subjetivo é o dolo de perigo, cuja vontade limita-se à criação da situação de perigo, não querendo o ano, nem mesmo eventualmente. (...) O perigo abstrato é presumido juris et de jure. Não precisa ser provado, pois a lei contenta-se com a simples prática da ação que pressupões perigosa [35].

            Ao analisar-se os crimes de omissão de socorro (perigo abstrato) percebe-se que pelo princípio da lesividade, os mesmos somente podem configurar crime quando ocorre a permanência do perigo, neste caso se outra pessoa socorrer a vítima o perigo cessa e o crime deixa de existir.

            Na lição de Nilo Batista, o direito não pode reprimir condutas desviadas ou simples estados e condições pessoais que não afetem nenhum bem jurídico. O que importa ao direito é o fazer e nunca o ser, pois senão deixaria de ser direito penal de ação e passaria a se direito penal de autor. Como exemplo temos o homossexualismo. Também, refere o mesmo autor, não podem ser punidas práticas que só podem ser objeto de apreciação moral, como a mentira e práticas sexuais entre adultos [36].

            O delito de perigo abstrato, previsto no artigo 306 do CTB, é exemplo de ofensa ao princípio da lesividade. Neste sentido colaciona-se o parecer de Lenio Luiz Streck,

            (...)com efeito, como venho sustentando, o delito imputado ao apelante – art. 306 do CTB – exige perigo concreto. Não basta, e foi somente isso descrito na exordial acusatória, a existência de dano potencial. O fato de o réu dirigir embriagado, à noite e com os faróis desligados, indiscutivelmente gera perigo, mas, salvo prova em contrário, perigo para o próprio condutor. A "ação delitiva" descrita nem de longe – e nem de perto – anunciou o efetivo perigo a alguém ou a alguma coisa. Logo, concluo inexistente o necessário perigo concreto.

            (...) o apelo merece provimento em razão do princípio da secularização do direito, próprio do moderno Estado Democrático de Direito. Com efeito, no Estado Democrático de Direito não se pode admitir a punição de condutas ou comportamentos que abstratamente possam colocar em risco a sociedade. O direito penal somente pode estar voltado à punição de condutas que violem concretamente bens jurídicos especificados. Afinal, não há crime sem vítima. E não se diga que, no caso, a vítima é a sociedade. Ora, ‘a sociedade’ nada mais é do que um conceito metafísico. Assim, somente pode haver crime se, no caso concreto, ficar provado que houver risco, para um determinado bem jurídico. O resto é -–respeitando opiniões m contrário – resquícios de um direito não secularizado [37].

            Transcreve-se, igualmente, o voto acolhido, à unanimidade, do Desembargador Luiz Gonzaga da Silva Moura

            Acolho a inconformidade recursal manifestada pelo acusado. É que para a configuração do crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, conforme reiteradamente vem sendo decidido, não basta a simples comprovação de que o agente conduzia veículo automotor, em via pública, sob a influência do álcool ou substância de efeito analógico – mera infração administrativa do art. 162, I, do CTB. Para a imposição da sanção de natureza penal, à luz do dispositivo supra mencionado, é indispensável a exposição a dano potencial a incolumidade de outrem [38].

            Nesse contexto, sobressai o chamado Princípio da Intervenção Mínima, também conhecido como Princípio da Subsidiariedade ou Necessidade, corolário inafastável da legalidade estrita, como forma de tentar restringir ou, até mesmo, eliminar o arbítrio do legislador, no momento da confecção das normas penais incriminadoras.

            Somente fracassando as sanções do ordenamento jurídico positivo é que deve o Direito Criminal mostrar-se. A pena, portanto, deve ser sempre utilizada como ultima ratio, e não como prima ou sola ratio.

            É constitucionalmente inviolável o direito à liberdade (CF, art. 5º, caput). Por outro lado, a Carta Magna de 1988 elevou, a fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). A par desses dois princípios (inviolabilidade do direito à liberdade e dignidade da pessoa humana), pode-se concluir que, "a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se legitima se extremamente necessária à sanção penal para a tutela de bens fundamentais do homem, e mesmo de bens instrumentais indispensáveis a sua realização social" [39].

            Prossegue, ainda, o mesmo professor, ressaltando a subsidiariedade do direito penal, afirmando que "destarte, embora não explícito no texto constitucional, o princípio da intervenção mínima se deduz de normas expressas da nossa Grundnorm, tratando-se, portanto, de um postulado nela inequivocamente implícito" [40].

            3.3-O Princípio da Secularização e a execução penal

            Um aspecto da intervenção do Estado na intimidade dos cidadãos é a suposta função ressocializadora da pena, baseada na periculosidade do agente, que tem o intuito de evitar a reincidência. A periculosidade nada mais é do que a antecipação do Estado, frente a uma previsão de que o sujeito possa vir a cometer um crime.

            O conceito de ressocialização é tão vago quanto o de periculosidade, poderia ser sinônimo de cura, de mudança interior, de reabilitação individual, ou de neutralização de reincidência. Considerar a pena como instrumento curativo ou reeducativo aproxima os conceitos de direito com de moral e direito natural [41].

            Além, disso, como argumenta Tatiana Amorim:

            pedir uma modificação "qualificativa" da pessoa do delinqüente é sem dúvida, pedir demasiado. Esperar tal milagre no que tange a intervenção do Estado é desconhecer por completo as atuais condições de cumprimento da pena privativa de liberdade e o efeito que esta produz no homem. Não parece razoável que o Estado garanta a ressocialização do condenado, quando não é capaz sequer de assegurar sua integridade física. Apesar desta, o esforço concentrado em legitimar a área penal está sendo dirigida ao conceito ontológico da pessoa que praticou o delito [42].

            O princípio da secularização implica que a sanção penal não deve ter conteúdo nem fins morais. Sendo que a execução da pena não pode ter o escopo de modificar o pensar do apenado, muito menos condicionar seus direitos a esta mudança [43].

            Os exames previstos na Lei de Execução Penal são reflexos da manutenção de um modelo processual inquisitivo, devido à impossibilidade de serem demonstrados e apreciados empiricamente e a ausência de contraditório. Percebe-se que, em sua maioria visam analisar sua reabilitação, pois, geralmente, a maioria das indagações feitas ao condenado versa sobre a sua interioridade, sobre os seus valores, enfim, sobre o seu ‘Eu’. Analisa-se naquele instante se o sujeito arrependeu-se do delito, se comportou-se bem no cárcere, se internalizou suficientemente as regras da instituição. Estas entrevistas pretendem, assim, dessa forma precária, emitir um parecer sobre as condições psicológicas do apenado, responder à dúvida sobre se ele merece ou não ter o seu ‘benefício’ concedido. Pretende-se, em poucos instantes, traçar um perfil daquela pessoa, quando existem tratados inteiros de psiquiatria definindo como a personalidade humana se dá e de que forma pode ser apreendida. Constata-se, portanto, que a forma como são feitos esses exames, compromete relevantemente o sistema processual acusatório que deveria viger entre nós, pois são feitos, ainda, calcados em um Direito Penal do autor [44].

            E, continua o autor,

            como exemplo da extrema importância conferida aos laudos, podemos citar que segundo o Código Penal, um dos requisitos para a concessão do livramento condicional ao condenado por crime doloso cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, consiste na constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir. O parecer tem como fundamento probabilidades, o que por si só não poderia justificar a negação de direitos públicos subjetivos [45],

            Conforme Foucault, "estes pareceres funcionam como discursos de verdade, porque discursos com estatuto científico, ou como discursos formulados, e formulados exclusivamente por pessoas qualificadas, no interior de uma instituição científica". Como se realmente os pareceres fossem a transcrição real do que se passa na mente do indivíduo. E acrescenta, ele, "deslocam o nível de realidade da infração, pois o que essas condutas infringem não é a lei, porque nenhuma lei impede ninguém de ser desequilibrado afetivamente, ter distúrbios emocionais, ou orgulho pervertido" [46].

            Os referidos laudos vêm de encontro à Constituição, pois além de contrariarem o princípio da secularização, contrariam os princípios da liberdade de consciência e de pensando e da intimidade. Eles punem a esfera íntima do agente.

            O preso tem o direito de não se arrepender do delito, e o Estado, em contra partida, deve ficar inerte até que haja o efetivo dano ou o perigo concreto a um bem jurídico. A esfera do pensamento, das convicções, das paixões e emoções permanece como núcleo inviolável como reserva de direitos do cidadão na qual o Estado não pode interferir [47].

            Muito embora a Lei 10792/03, que alterou a Lei de Execução Penal, ter abolido os laudos para a progressão de regime (também para o livramento condicional, indulto e comutação de pena), do parecer da Comissão em referência, assim como do Exame Criminológico, grande progresso do princípio da secularização, a mesma lei instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado, um retrocesso no mesmo aspecto e uma afronta a Constituição Federal e ao princípio da dignidade do ser humano.

            A referida lei tem raízes profundas num modelo político-criminal violador dos direitos fundamentais do homem, em especial do apenado, a ponto de não considerar o criminoso como ser humano e, além disso, capaz de substituir um modelo de Direito penal de fato por um modelo de Direito penal de autor [48].

            Entre as expressões marcantes contidas na lei encontra-se, no parágrafo 2º do artigo 52, a seguinte: "(...) o preso provisório ou condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas (...)". O que seriam objetivamente as fundadas suspeitas a lei não refere, e nem o parâmetro para delimita-las. Com certeza o critério utilizado para tanto será nada mais do que um mero juízo de valor, caracterizando o já mencionado direito penal do autor.

            Sobre o RDD, argumenta Tatiana Amorim:

            Num campo mais delimitado e como conseqüência da abrupta separação do direito e moral levada a extremos no decorrer da "era legiferante", o Estado inconscientemente se embrenhou no perigoso terreno das teorias da profilaxia e da surrada defesa social. Como corolário, a instrumentalização do ordenamento jurídico-penal fez surgir o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) consistindo num agravamento das sanções previstas para o cometimento da falta disciplinar grave a que alude o art. 52 da LEP (Lei de Execuções Penais), ou seja, a prática de ´´fato previsto como crime doloso´´ pelo preso. Ora, resta evidente que a simples prática de crime não pode gerar sanções até que seja ele objeto de julgamento e condenação transitada em julgado, assim é o princípio da presunção de inocência. O RDD, segundo a redação de então, prevê isolamento celular de até trezentos e sessenta dias, devendo o sentenciado ficar em sua cela por até dezesseis horas diárias, sendo permitida a visita de somente duas pessoas por semana. Desde logo ressalta a grave imprecisão legislativa, a começar porque a MP não regulou o evidente conflito do RDD com as citadas normas da LEP, as quais não foram expressamente revogadas. Nascido das cabeças sapientes desta nação, representantes do Estado Democrático de Direito adotou uma ´´resposta´´ imediata contra aquele tipo de preso, dito de ´´alta periculosidade". O homem nesta concepção é pouco mais que nada [49].

            Por fim, como bem acentua a mesma autora, "na justificação da pena, comporta que a sanção penal não deve possuir "fins terapêuticos"" [50]. Como já referido, a intimidade é uma esfera do ser humano isenta da ação do Estado e do direito. E continua, ela, "o Estado não possui o direito de alterar, reeducar, redimir, recuperar a personalidade do réu". O problema da criminalidade vai muito além de um tratamento ressocializador e de uma intervenção clínica no apenado durante o a execução, é antes de tudo um problema social, com o qual o direito penal não pode arcar sozinho.

Sobre a autora
Luciana Tramontin Bonho

advogada em Porto Alegre (RS), especialista em Direito e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONHO, Luciana Tramontin. Uma abordagem crítica do princípio da secularização na legislação penal atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 841, 22 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7458. Acesso em: 23 dez. 2024.

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