2. O acesso ao processo justo e a resolução adequada do conflito
As relações interpessoais geram conflitos derivados de diversas causas e a atividade jurisdicional é direcionada para a pacificação social desses conflitos.
A tutela jurisdicional efetiva seria aquela na qual o processo é utilizado da maneira mais adequada como instrumento de alcance do direito substancial, solucionando-se as crises existentes no direito material de forma efetiva.
Assim, “efetivo, portanto, é o processo justo, ou seja, aquele que, com celeridade possível, mas com respeito à segurança jurídica (contraditório e ampla defesa), proporciona às partes o resultado desejado pelo direito material” (THEODORO JÚNIOR, 2017, p.35).
Entende-se por acesso a tutela jurisdicional efetiva
a composição dos conflitos com total adequação aos preceitos do direito material [...] dentro de um prazo razoável e sob método presidido pelas exigências da economia processual, sempre assegurando aos litigantes o contraditório e a ampla defesa [...] (THEODORO JÚNIOR, 2017, p. 37).
Nas palavras do professor Watanabe, retiradas do parecer intitulado Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses, publicado em 2011
É decorrente a crise mencionada, também, da falta de uma política pública de tratamento adequado dos conflitos de interesses que ocorrem na sociedade. Afora os esforços que vem sendo adotados pelo Conselho Nacional de Justiça, pelos Tribunais de Justiça de grande maioria dos Estados da Federação Brasileira e pelos Tribunais Regionais Federais, no sentido da utilização dos chamados Meios Alternativos de Solução de Conflitos, em especial da conciliação e da mediação, não há uma política nacional abrangente, de observância obrigatória por todo o Judiciário Nacional, de tratamento adequado dos conflitos de interesse (WATANABE, 2011, p.2).
Atualmente, o acesso apenas formal à justiça foi substituído pela ideia do acesso à ordem jurídica justa, não mais aceitando promessas sem efetividade.
Inserida na expressão acesso à justiça, está consubstanciada uma das funções do próprio Estado, a quem compete, não apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico, mas notadamente proporcionar a realização da justiça aos cidadãos.
[...]
Sob a ótica do acesso à ordem jurídica justa, compreende-se não só a existência de um ordenamento jurídico regulador das atividades individuais e sociais, mas também na distribuição legislativa justa dos direitos e faculdades substanciais (BACELLAR, 2016, p.53).
É de suma importância abordar e forma adequada o conflito, conhecendo-o em toda a sua profundidade, em todas as suas vertentes para que a resolução seja efetiva.
O Poder Judiciário está preparado para a resolução da parte judicializada dos conflitos, contudo, diversas situações conflituosas entre as partes não são geradas por controvérsias em relação ao direito em si.
Tais circunstâncias podem originar-se a partir de interesses emocionais, relacionais, familiares ou perspectivas diferentes a respeito de determinada ocorrência, por exemplo.
O Poder Judiciário, com sua estrutura atual, trata apenas superficialmente da conflitualidade social, dirimindo controvérsias – objeto da lide -, mas nem sempre resolvendo o conflito, até porque só pode decidir a partir de premissas inafastáveis, dentre as quais é possível citar as que envolvem os estreitos limites da lide processual.
Não pode, por exemplo, o juiz decidir citra, extra ou ultra petita; decidirá a lide no limite em que foi proposta, não podendo proferir decisão, a favor do autor, de natureza diversa do pedido, nem condenar o réu em quantia superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.
[...]
A definição clássica de lide tem sido a de que é o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Na verdade, a lide indica apenas parcela do conflito, e não o próprio conflito na sua integralidade.
Não se deve confundir a lide – que é apenas uma parcela do conflito – com o próprio conflito.
Distingue-se, portanto, aquilo que é levado pelas partes ao conhecimento do Poder Judiciário (lide) daquilo que efetivamente é interesse das partes e integra a complexidade maior das relações e que abarca a unidade maior do conflito (BACELLAR, 2016, p.74-75).
O sistema de justiça brasileiro utiliza a solução adjudicada da lide, materializada pela sentença do juiz:
[...] a predominância desse critério vem gerando a chamada cultura da sentença, que traz como consequência o aumento cada vez maior da quantidade de recursos, o que explica o congestionamento não somente das instâncias ordinárias, como também dos Tribunais Superiores e até mesmo da Suprema Corte (WATANABE, 2011, p.2).
Perpetuou-se dentro da cultura nacional a chama “cultura do litígio”, na qual
[...] o ensino jurídico é moldado pelo sistema da contradição (dialética) que forma lutadores, guerreiros, profissionais treinados para a briga, para a guerra em torno de uma lide, em que duas forças polarizadas se enfrentam e que ao final só um pode ser o vencedor. Se um ganha, necessariamente o outro perde (BACELLAR, 2016, p.57).
A um terceiro é dado o poder de dirimir a controvérsia. Materializa-se o caráter substitutivo da jurisdição, que substitui a vontade das partes pela vontade da lei no caso concreto, resolvendo o conflito existente entre elas e proporcionando a pacificação social.
E não raras vezes, o juiz encontra-se distante da realidade dos fatos. Some-se a isto a sobrecarga de trabalho, tem-se um acesso à justiça apenas formal.
É preciso que o Estado garanta a eficiência do ordenamento jurídico e proporcione a realização da justiça aos cidadãos.
A tendência moderna é pensar na prestação jurisdicional não só como um meio de alcançar um resultado, mas também como um instrumento para designar os meios adequados de se chegar a ele.
É necessário que o Poder Judiciário seja instrumentalizado com meios capazes de proporcionar a resolução adequada do conflito e aplicar satisfatoriamente a solução ao caso concreto.
Positivamente Bacellar coaduna com ideia de que “acesso à ordem jurídica justa, dentro de suas várias concepções, é acesso aos métodos adequados à resolução dos conflitos, estejam eles dentro ou fora do Poder Judiciário” (BACELLAR, 2016, p.52).
O que se espera das políticas públicas é que incentivem a prática de ações voltadas à uma abordagem que se preocupa com todas as suas dimensões do homem, seja ela a material, intelectual moral ou espiritual.
A pessoa humana é a autora, o centro e o fim de toda a vida social, política e econômica da sociedade. O respeito a sua dignidade constitui-se no primado ético do qual decorrem outros valores e direitos previstos nas Convenções Internacionais e na Constituição Federal (NUNES, 2016, p.43).
Nessa toada surgem os meios alternativos de solução de conflitos, auxiliadores do Poder Judiciário na busca pela pacificação social, “atuando em causas para as quais é o caminho mais adequado para resolvê-las, estimulando que as restantes sejam solucionadas até mesmo por meios extrajudiciais” (BACELLAR, 2016, p. 49).
[...] quanto mais conflitos forem resolvidos fora da jurisdição, haverá menos processos e por consequência o Poder Judiciário poderá funcionar de maneira mais célere e adequada às aspirações do acesso à ordem jurídica justa (NEVES, 2017, p.62).
Na abordagem adequada do conflito pelos meios alternativos ao judiciário merece destaque o sistema multiportas de solução de controvérsias.
A adoção de uma política pública que incentive os valores, atitudes e comportamentos para fomentar os meios autocompositivos vêm em boa hora, pois trará consigo a promoção da não litigiosidade, da civilidade e do respeito ao próximo. Esses meios possibilitam a resolução dos conflitos através do diálogo, da negociação, da construção do consenso, da não violência ativa, e trazem mais humanismo e solidariedade (NUNES, 2016, p.43).
De suma importância a inserção de incentivos voltados à prática consensual no ordenamento jurídico brasileiro. É um passo em direção à evolução da cultura do litígio para a cultura do consenso.
2.1 O sistema multiportas
Ajudar a construir a Justiça e o que é ou não justo, é um permanente desafio. Sempre haverá dificuldades entre o certo e o errado; o que é verdadeiro ou não; com os dilemas e paradoxos da vida humana social. A mediação possibilita uma justiça mais justa, alcançável através do diálogo e da construção conjunta entre indivíduos para que cada um possa ter ou buscar aquilo que lhe é de direito. O justo surge do embate, da negociação, da construção coletiva, através da comunicação e da comunhão dos seres humanos (NUNES, 2016, p. 152).
A mediação, exaltada por Nunes no trecho acima citado, faz parte do sistema multiportas de resolução de conflitos.
O sistema multiportas visa proporcionar aos cidadãos diferentes meios extrajudiciais para solução do problema. Traz diversas possibilidades de acesso a métodos adequados alternativos à provocação do judiciário – como a negociação, a conciliação, mediação e arbitragem.
A terminologia multiportas surgiu a partir das ideias de Frank Sander, que defendeu a ideia de um centro de justiça abrangente no qual diferentes formas de soluções de litígios seriam como portas. Assim, de acordo com as características apresentadas pelo conflito, alguma dessas portas seria o ideal de aplicação para resolução (MEDINA, 2017, p.42).
Sander lançou as bases para um Centro de Justiça Global no qual as Alternative Dispute Resolutions[2] seriam instaladas, visando proporcionar a opção técnica mais adequada para resolução de disputas. Propunha-se a criação de um lugar onde meios ecléticos de resolução de disputas estariam concentrados à disposição dos cidadãos (THEODORO JÚNIOR et al., 2015, p.182).
Chamado de modelo multi-door, tem sido implementado e obteve consideráveis resultados nos Estados Unidos e serve de modelo para países como Cingapura e Nigéria.
Essa experiência estrangeira mostrou que as negociações preliminares (pre-trial negotiations), etapa inicial do procedimento, seriam convenientes em quaisquer tipos de litígio, e que o “juiz” (ou profissional) a presidir a audiência não deveria ser o mesmo que haveria de promover a análise do litígio em fase de julgamento.Ensinaram mais, que as etapas pré-processual e inicial do procedimento devem ser desempenhadas de modo metódico pelos sujeitos processuais, uma vez que o maior dispêndio de energia inicial pode permitir ao final uma atividade processual mais efetiva. Numa visão gerencial dos litígios (e não só dos procedimentos), o tempo que se gasta no início se economiza ao final.
Trata-se de racionalidade inversa a que adotamos, na qual o início do procedimento é totalmente negligenciado e não é incomum, após vários anos, perceber no momento do julgamento a falta de algum pressuposto ou a ocorrência de nulidades que inviabilizam toda a atividade processual.
A visão integrada de dimensionamento do litígio traz um essencial liame entre o uso da via adequada e o dispêndio devido de energia inicial para se favorecer o máximo aproveitamento do processo (THEODORO JÚNIOR et al., 2015).
Bacellar traz a ideia deste sistema como um instrumento de mobilidade acesso à justiça no viés do acesso à resolução adequada do conflito.
Múltiplas portas de resolução de conflitos retratam a mais ampla oferta de meios, métodos, formas e mecanismos (vinculantes ou não) colocados à disposição do cidadão, com estímulos do Estado, a fim de que ocorra adequado encaminhamento dos conflitos (BACELLAR, 2016, p.79).
Também defende a ideia de utilização do judiciário apenas na impossibilidade de superação do conflito pelas próprias partes. Para isso, ele sugere a criação de um portfólio à disposição dos interessados a fim de que haja uma resolução adequada, de preferência pacífica, utilizados os métodos consensuais na forma autocompositiva.
Há de se planejar um acesso qualificado que propicie mobilidade ao cidadão para escolher – com orientação suficiente – as melhores alternativas para a resolução de seus conflitos.
Isso propiciará a todos que procurem o sistema judiciário receberem informações adequadas, triagem, encaminhamento para qualquer tipo de problema jurídico ou conflito, cabendo não só a organização dos serviços que são prestados por meios dos típicos métodos adversariais heterocompositivos dos processos judiciais, como também daqueles que socorram os cidadãos de modo mais abrangente (BACELLAR, 2016, p.54).
Não obstante, o gestor de conflitos deve ter conhecimento sobre todos os canais existentes para a sua abordagem, considerando vantagens, desvantagens e analisando sua pertinência no caso concreto. Por isso a conscientização sobre as múltiplas técnicas existentes é importante.
A Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça preconiza em seu preâmbulo a determinação de que ao Estado cumpre estabelecer políticas públicas para adequado tratamento dos conflitos.
CONSIDERANDO que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa e a soluções efetivas;
CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação; (CNJ, 2010)
O Código de Processo Civil já oportuniza a aplicação dos métodos consensuais para resolução do conflito. Os meios alternativos estão por vezes interligados ao sistema jurídico.
É importante que os operadores do direito, os protagonistas da administração da justiça e as partes abram a visão para tais mecanismos. Os mecanismos alternativos, na prática, estão próximos de instituições jurídicas, dependendo de normas e sanções e operando à sombra de uma possível atuação judicial (SALES apud TARTUCE, 2018, p.176).
[...] em atendimento aos comandos constitucionais, revela-se importante possibilitar a disseminação, no tecido social, da cultura de paz; por tal razão, justifica-se a adoção de meios que propiciem a solução harmônica e pacífica de controvérsias no contexto da justiça coexistencial (TARTUCE, 2018, p.181).
Há que se garantir e assegurar que o direito fundamental de acesso à justiça seja efetivo. E estimular a solução harmônica e pacífica, através do diálogo e consenso entre as partes, é um caminho a ser tomado.