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"Um estatuto a ser jogado na latrina": desafios para a política pública infanto-juvenil

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Agenda 26/06/2019 às 11:15

O BRASIL ATUAL: DESCASO COM A POLÍTICA PÚBLICA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Em diversas declarações em 2018, nos mais diferentes meios de comunicação, o atual presidente da República sempre posicionou-se em desfavor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90). Em uma das suas falas, que agora transcrevemos abaixo, Jair Messias Bolsonaro, expõe sua posição sobre a principal política pública de defesa dos direitos das crianças e adolescentes no país.

“[...] esse ECA/90 tem que ser rasgado e jogado na latrina[4]. Este ECA/90 é o estimulo a vagabundagem, malandragem infantil no nosso país [...] você não pode triscar numa criança que o ECA/90 proíbe. Ele presta um desserviço a sociedade” (Presidente Jair Messias Bolsonaro. Texto extraído de declaração contida no youtube).

A declaração do candidato aconteceu no mesmo dia em que “ele pegou uma criança no colo e perguntou a ela se sabia atirar”, afirma o jornal (online) O Globo de 23 de Agosto de 2018. Além disso, ainda na entrevista acima, o declarante prosseguiu com ataques aos direitos e a concepção de proteção integral aos sujeitos de direitos.

“[...] Encorajo, sim (em referência ao uso arma de fogo para crianças). Não podemos mais ter uma geração de covardes, de ovelhas, morrendo nas mãos de bandidos sem reagir. A realidade é muito diferente da teoria que está aí  [...] Meus filhos todos atiraram desde os cinco anos. Real, não é ficção”.

Para entender o olhar dispensado pelo então Presidente da Republica sobre as declarações as quais foram sendo desenvolvidas na situação de agente público parlamentar e, posteriormente, na condição de candidato ao maior cargo público do país, nos revestimos a partir da história social da criança no país.

O que temos são declarações que se opõem a existência da ideologia preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90) quando este defende qualquer tipo de ameaça psíquica, física e moral para a sua condição de desenvolvimento enquanto sujeito que possui direitos. Ao atacar o ECA/90, o declarante ataca a situação que vem sendo gestado em processo desde a redemocratização do país, quando inúmeros movimentos sociais, das mais diferentes classes sociais, arregimentaram forças nos mais diferentes campos da vida social para que a criança e o adolescente ganhasse o status de sujeito que possui e necessita de direitos para o seu pleno desenvolvimento.

Essas declarações convergem com o Código de Menores e outros dispositivos e concepções que colocavam a criança e o adolescente como objetos de subjugação dos ditames adultocêntricos. Em outras palavras, seria retroceder no espaço ganho com muito luta social na Carta Magna e com o surgimento, delineamento e implantação do ECA/90.

Nenhuma lei ou legislação específica deve ser “jogada na latrina” quando a partir dela nasce a existência social dos sujeitos, afirma Pinheiro (2006). Estamos, neste momento, quando se defende a proteção integral dessa camada social, afirmando que elas possuem prioridade absoluta na consecução de políticas públicas colocadas em prática por qualquer ente governamental.

O ECA/90 ampara as crianças e os adolescentes trazendo-os como Sujeitos de Direitos – concepção criada a partir da redemocratização do país – priorizando políticas públicas para a efetivação das suas necessidades conforme suas particularidades. Em outras palavras, se o ECA/90 é atacado da maneira como bem quer e desejo o declarante, ele retira de cena esse olhar e a centralidade colocada em prática nas políticas públicas.

Depois que assumiu a cadeira presidencial em primeiro de Janeiro de 2019, com um discurso ultraconservador, o então presidente começou uma série de ações em diversos campos da vida social, minando garantias constitucionais no campo dos direitos sociais. São ações de cortes de orçamento na educação, extinções de pastas do poder executivo federal que tinham a missão de pautar políticas públicas setorias, por exemplo, os diversos conselhos setoriais de direitos, a criação de Ministérios como o da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que demonstra uma visão subalternizante dos segmentos sociais mais vulnerabilizados como a mulher e a criança, voltando a destacar uma posição verticalizadora dos indivíduos na vida social.

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Ao atacar essas políticas públicas e programas sociais, de maneira direta, está minorando o que preconiza o ECA/90 em seus mais de 200 artigos. Não priorizar a educação é ir contra tudo aquilo que foi criado em termos normativos para a implantação de políticas públicas no campo educacional, cultural, lazer, entre outras que assegurem a necessidade do fomento para o desenvolvimento intelectual da criança e do adolescente.

A comparação entre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90) com “dejetos humanos e que deve ser jogados no vaso sanitário”, conteúdo extraído do significado de latrina (ver dicionário Aurélio), o atual presidente posiciona seu governo em total desfavor das políticas públicas de direitos sociais voltados para esse segmento social.

Apropriar-se do “não pode triscar numa criança que o ECA/90 proíbe” entra na lista de discursos que eram propagadas em séculos anteriores onde crianças e adolescentes eram vítimas do olhar adultocêntricos nos múltiplos interesses destes, quer seja no seio intrafamiliar, na sociedade civil e pelo Estado como exposto no delineamento desta análise.

A partir das atuais ações do governo, percebe-se que ocorre um deslocamento de concepção institucional da criança e do adolescente. Ao assinalar que toda criança, desde muito cedo, ou seja, com cinco anos de idade já deve usar arma de fogo, como bem afirma o declarante, estamos de sujeitos que devem portar-se como adultos, numa retórica de quando crianças eram tidas como adulto-anão, da idade média. Por assim perceber é que teremos – pelo menos, tudo vem sinalizando por esse caminho – um grande retrocesso nas políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes no Brasil atual.


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Notas

[1] Práticas como essa eram tidas como sendo algo que fazia parte das coisas moralmente neutras da sociedade; e quando falo de sociedade, falo que instituições á época, como as Igrejas, legitimavam esse tipo de prática. Não existindo, portanto, por parte da própria sociedade civil da época, alguma instancia protetora desses sujeitos.

[2] Sobre esse assunto escrevi um artigo que foi publicado pela revista Jus.com.br que leva a denominação de “O conselho tutelar sob o olhar de Foucault: controle das relações familiares?”.

[3] O Estado e o governo do então Presidente Getúlio Vargas, ao perceber que crianças e adolescentes, que estavam percorrendo os grotões da pobreza por ter espaço na agenda governamental, vendo-se diante da situação em ter mão de obra para o desenvolvimento da incipiente industrialização, começou a “recrutar” esses sujeitos como objetos do Estado a fim de se tornarem mão de obra barata nos espaços fabris. Utilizou-se da argumentação da marginalização para poder responder conforme os interesses do governo e dos detentores dos meios de produção.

[4] A partir do dicionário Aurélio (online) latrina se refere a: 1 - Lugar para dejeções humanas; 2 - Compartimento dotado de vaso sanitário ou vaso sanitário; 3 - Vaso sanitário que recebe dejetos.

Sobre o autor
Antonio Nacilio Sousa dos Santos

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Graduado em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Graduado em Pedagogia pela Faculdade Integrada do Ceará (FIC); Graduando em Enfermagem pela Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (FAMETRO); Graduando Tecnológico em Saneamento Ambiental pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE); Graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Especialista em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social com as Famílias (RÁTIO/PÓTERE); Especialista em Saúde do Idoso pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE); Mestrando Acadêmico em Avaliação de Políticas Públicas (PPGAPP) pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Mestrando Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (MASS) pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4893524E9

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Antonio Nacilio Sousa. "Um estatuto a ser jogado na latrina": desafios para a política pública infanto-juvenil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5838, 26 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74937. Acesso em: 14 nov. 2024.

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