RESUMO: O artigo passeia pelo trato de como a criança e o adolescente eram vistos ao longo da história pela família, sociedade e Estado. Percorre-se uma linha do tempo desde a maneira como eram tratadas antes do Brasil colônia, em outros países, até chegarmos à atual situação em que se encontra o Sistema de Garantia de Direitos desses sujeitos. Metodologicamente, utilizou-se a pesquisa bibliográfica e documental através dos principais clássicos que fazem referência à historiografia da criança e do adolescente no Brasil e no mundo. O objetivo maior em trânsito é de expor a construção social do presente sistema a partir das múltiplas concepções que a criança e o adolescente possuíram. Através desse percurso, conclui-se que esses sujeitos viveram e ainda vivem situações de forte subjugação social, econômica, cultural, político e ideológica a depender do tempo histórico e dos interesses inscritos em cada um deles. Além disso, afirma que estamos retrocedendo na atualidade a partir do desinteresse do atual governo na principal política pública de defesa dos direitos desses sujeitos.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema de Garantia de Direitos; Estatuto da Criança e do Adolescente; Criança; Adolescente; Políticas Públicas.
INTRODUÇÃO
O artigo passeia pela historiografia da criança e do adolescente até a construção do Sistema de Garantia dos Direitos desses Sujeitos. Além disso, diante da conjuntura atual em que vemos os direitos sociais sendo corroídos de maneira sem precedentes a partir das ações dos interesses do atual governo, a principal política pública voltada para crianças e adolescentes, desde que o atual presidente da República Jair Messias Bolsonaro exercia a função de Deputado Federal, bem como no momento da campanha para a escolha a Presidência da República, sempre se mostrou ser totalmente contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90).
Ao atacar o ECA/90, principal política pública voltada para a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes no país, o atual governo se posiciona politicamente em desfavor e total desinteresse para com esses sujeitos. Essa maneira de tratar a criança e o adolescente, como veremos ao longo do apanhado analítico que foi escrito a partir de forte imersão bibliográfica, constataremos que não é algo novo. Ao longo do tempo, essa parcela da sociedade foi tratada com forte apelo à subjugação e omissão das suas particularidades. Constataremos, também, que a criação de conceitos como criança, adolescente, infância, direitos sociais foram sendo construídos conforme os interesses do contexto em voga.
Dessa forma, o artigo está divido em três partes: a primeira versa sobre o trato da criança e do adolescente ao longo do tempo. Utilizou-se bibliografias clássicas nos estudos da sociologia jurídica da criança e do adolescente como rica fonte para uma análise fecunda. Dito isso, traremos nesta sessão o que denominamos de origem do sistema de garantia dos direitos desses sujeitos a partir dos múltiplos olhares dispensados a este segmento social.
Posteriormente, no segundo tempo, teremos a análise de como a criança e o adolescente foram tratados ao longo da história no país. Nesta parte, traremos a visão que foi delineada a este seguimento social durante o Brasil colônia, passando pelo Império, início da República e, o momento pós-regime ditatorial, ou seja, momento da redemocratização do país onde se desenvolveram fortes movimentações por diferentes setores da sociedade civil a fim de obter, política e socialmente, um espaço que melhor atendesse aos interesses galgados nas particularidades que envolvem o universo infanto-juvenil.
Na última parte, versaremos sobre a atualidade do ECA/90 e a maneira como a principal política pública vem sendo tratada a partir da perspectiva dos direitos sociais pelo governo ao mando do atual Presidente. Logo, as ações governamentais, nos mais diversos campos, isto é, educação, cultura, lazer, estarão sob análise para entendermos o espaço, ou, já adiantando, o não espaço conferido a este segmento.
O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: A ORIGEM
[...] aos filhos que, cedo, acostumavam-se, por meio de castigos físicos extremamente brutais, a não duvidarem de sua prepotência. Os espancamentos com palmatórias, varas de marmelo (às vezes com alfinetes na ponta), cipós, galhos de goiabeira e objetos de sevícias do gênero, ensinavam-lhes que a obediência incontinenti era o único modo de escapar à punição (COSTA, 1989, p. 156).
Falar do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) da criança e do adolescente é, sobretudo, percorrer o caminho que esses sujeitos sociais foram vistos pela família, sociedade civil e o Estado ao logo do tempo. É daí que tiramos as respostas para o entendimento do porquê desse segmento social ter ganho o reconhecimento como cidadão com direitos e com a insurgência de um sistema que promova, mantenha e cuide desses cidadãos.
Ao percorrer o túnel do tempo através de vasta bibliografia para saber a maneira e modos como as crianças e os adolescentes eram tratados pelos adultos, encontramos situações onde os mesmos aparecem de diversas maneiras e tratos por aqueles. Muitas eram abandonadas, negligenciadas, sofriam maus tratos de diversos tipos de explorações advindos dos interesses dos próprios familiares e a sociedade de um modo geral.
Em uma dessas incursões literárias realizadas, segundo Postman (1999) durante séculos a criança foi ignorada pela família e pela sociedade em geral. Até chegar aos atributos que atualmente as configuram, a historia aponta uma trajetória caracterizada pela desvalorização sentimental nas relações familiares como bem mostra o fragmento do texto acima escrito por Costa (1989).
Diante das vestes em que a criança e o adolescente estiveram contidos, relatos mostram, por exemplo, na Idade Antiga, que a mesma era doada para o sacrifício aos deuses. Essa atitude, entre outras coisas, mostra que a criança e ao adolescente possuíam uma valorização igualmente a de qualquer outro animal, uma vez que relatos antropológicos dão conta de que muitos animais, em diversas sociedades e ao longo do tempo, eram/são sacrificados em cultos ritualísticos para agradar aos templos e aos senhores do além-tempo que protegem tal sociedade.
Ainda nesse período, para o aprofundamento do resgate histórico e para situar a condição da criança e adolescente na sociedade e na própria família, segundo Ariès (1981) era comum a eliminação de crianças tidas como “inaptas” ou “desajustadas”, ou o abandono para que as famílias pudessem orquestrar a partilha dos bens matérias. Os “menos inteligentes”, aqueles que por algum motivo possuíam habilidades menos ofuscantes eram abandonados, entregues a orfanatos, doados, jogados em lugares distantes no qual não mais pudessem oferecer perigo para a preservação do status da família perante a ela e as demais.
A representação social da criança e do adolescente, ainda segundo Ariè (1981) era algo desconhecido até a idade média. Segundo diz, criança e adolescente, categoria não existente à época, era representada como sendo um adulto em miniatura, ou seja, um “anão”, uma pessoa que possuía qualidades menores se comparado aos adultos. E essa situação era proveniente de algum motivo divino ou que ainda não era passível de explicação plausível. Além disto, e apenas com isso, a participação nos assuntos e na própria vida dos adultos é que os mesmos poderiam deixar de estar nesta condição.
Apropriando-se criticamente desse período, não podemos negar que essa idéia de um “adulto-anão”, ou de uma pessoa que poderia realizar todas as atividades igualmente a de um adulto, de certa forma, entre outras coisas, mostra quão pouca consciência se tinha das peculiaridades infanto-juvenis nesse momento histórico. Estava claro que o tratamento que se dava a esses sujeitos era igual aos dos adultos. E, além disso, podemos afirmar que esses sujeitos não obtiveram uma circulação de fatores propícios para o desenvolvimento das suas habilidades psicossocial como ser-indivíduo que está numa fase infanto-juvenil.
Imaginemos, por exemplo, além do que já foi exposto acima, que, muitas crianças e pré-adolescentes eram mortas pelos próprios pais[1], dentro de casa, no quarto, quando dormiam. A historiografia demonstra que práticas como estas eram corriqueiras tendo em vista a grande quantidade de filhos que famílias pobres possuíam. E essa prática viria justamente para diminuir os gastos e custos com a alimentação.
[...] sabe-se que os pais habitualmente tratavam seus filhos não só como propriedade privada, podendo fazer o que quisessem com eles, mas também como servos cujo bem-estar era sacrificável no interesse da sobrevivência família (POSTMAN, 2008: 70).
Além do mais, quando a operação “extermínio de crianças” era praticada pelos pais para a consecução dos interesses materiais e morais à época, quando não se dava como no caso acima, estas eram abandonadas, deixadas á própria sorte. Como nos relatos de Ariè (1981) estas se tornavam mendigos, perambulando nas ruas e passavam a fazer parte da conjugação de forças subalternas que destoavam nas grandes cidades. Em verdade, tornavam-se pedintes, se prostituindo para satisfação carnal dos adultos e, de modo geral, vivenciando situações as mais miseráveis formando os grandes grotões de pobreza da zona urbana dos centros da gênese industrial.
Os centros das cidades que começavam a destoar como gênese industrial na Europa, em um dado momento, na figura da burguesia industrial, percebera o quão feio e fétido era o acúmulo de detritos humanos próximos as suas residências. Sob esse aspecto, temos o início da criação dos espaços sociais que passaram a recolher esse “lixo humano”.
É interessante pontuar que, paralelo a existência desses espaços públicos que recolhiam a miserabilidade humana, podemos perceber que o olhar em relação a criança e ao adolescente começa a destoar novo tom. Em outras palavras, mesmo que essa ação venha em forma de “desfazer daquilo que não nos interessa”, esse segmento social passou a ter a mesma visibilidade que as mulheres sós possuíam, os doentes e velhos. Trata-se, sobretudo, de fazer parte de um segmento. Mesmo que esse segmento esteja atrelado a miserabilidade e algo secundário nas relações da vida social.
Segundo Donzelot (2001), com a existência desses espaços sociais, percebeu-se que crescia o desinteresse dos pais por seus filhos. A existência de um espaço público de acolhimento fez com que a função de maternidade e paternidade já não os interessavam tanto. Com frequência, diminuíram-se as práticas de infanticídio, mas ao mesmo tempo elevou-se grotescamente o número de crianças jogadas nas rodas às instituições.
[...] a preocupação em unir respeito à vida e respeito à honra familiar provocou, na metade do século XVIII, a invenção de um dispositivo técnico engenhoso: a roda. Trata-se de um cilindro suja superfície lateral é aberta em um dos lados e que gira em torno do eixo da altura. O lado fechado fica voltado para a rua. Uma campainha exterior é colocada nas proximidades. Se uma mulher deseja expor um recém-nascido, ela avisa a pessoa de plantão acionando a campainha (DONZOLTE, 2001, p. 30).
Com efeito, a criação daquilo que foi denominado de “sentimento infantil”, no falar de Roudinesco (2003) é algo que foi acontecendo paulatinamente. A verdade é que a família começa a se organizar em torno da criança. Para atestar isso, temos como referência os registros de crianças mortas; os quadros pintados por renomados autores, bem como o vocabulário particular da tenra idade usado pelos pais e por suas amas.
Neste sentido, esse segmento social passa a possuir um “lugar ao sol” nas relações familiares e, consequentemente, na sociedade civil. É fato que alguns elementos foram decisivos para a preservação desses sujeitos no seio familiar. Por exemplo, os avanços na medicina, as práticas preventivas e de higienização, bem como o controle da natalidade. Através destes meios, alguns cuidados como debilidade na saúde da criança e do adolescente foram sendo progressivamente diminuídos. E as causas de muitas mortes, até então desculpadas por motivos de doenças entre outros, foram diminuindo uma vez que diminuíra também a situação séptica de muitos lares.
Esse “lugar ao sol” desponta a criação de instituições destinadas a proteger a infância e juventude. Em toda a Europa começam a surgir programas de capacitação para lidar com esses sujeitos. Criam-se as creches para que mães pudessem trabalhar fora do lar. De acordo com Donzolet (2001) “era necessário o aumento dos equipamentos coletivos” (p. 57) para a criação de uma “norma preservadora” dos “novos indivíduos”. Os novos indivíduos aqui são entendidos como sendo as crianças e os adolescentes, que, nesse momento, passa a ganhar visibilidade na criação de leis que são sancionadas pelo Estado. Segundo Foucault (1979) o Estado, no século XIX, passa a gerenciar a vida dos indivíduos[2]. No caso das famílias que possuíam algum problema social, por exemplo, advindo da pobreza, que na época era reinante em muitas famílias europeias, muitos dos filhos e filhas eram entregues as instâncias do Estado.
Percebe-se que ao longo do tempo a criança e o adolescente teve sua história marcada por profunda dor, oriundo de um olhar totalmente excludente movido pelos mais diversos interesses daqueles que deveriam protegê-los.
O OLHAR DISPENSADO A CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO BRASIL
No Brasil, o trato da criança e do adolescente nas relações intrafamiliares “portadora de uma vida delicada merecedora do desvelo absoluto dos pais, é uma imagem recente” (COSTA, 1989, p. 155). Através das leituras realizadas feitas sobre a compreensão do espaço social dispensada a criança e ao adolescente no Brasil, coletamos situações as mais diversas possíveis. Começamos citando o que Costa (1989) fala sobre a posição ocupada pelo filho na família colonial brasileira. Através dele pudemos notar que o filho ocupava situação secundária na família, isso quer dizer que o mesmo era subordinado aos mandos e desmandos dos demais membros familiares; ocorriam certa subestimação quanto a sua força, pensamento, equilíbrio em realização de atividades, e com isso esses sujeitos ficavam a deriva de afeições dispensáveis de forma esporádica.
Em dado momento, conforme as necessidades econômicas da produção agrícola, por exemplo, esses sujeitos eram sinônimos de mais mão de obra. Nas famílias mais pobres, desde cedo elas eram mandadas para as lavouras de cana-de-açúcar e senzalas, para executarem qualquer tipo de atividade agrícola – isso para os pobres submissos dos grandes senhores de terra. Logo, esses sujeitos não possuíam na concepção que hoje conhecemos, os direitos ganhos com muita luta, suor e sangue, mas sim, sua vida andava paralela as atividades econômicas de subsistência.
O sentimento de infância e juventude inexistia nesse momento, principalmente para quem era da classe menos favorecida. A situação de miserabilidade das famílias, faziam com que os filhos de pais pobres não possuíssem as condições necessárias para desenvolver-se física e psicologicamente. Desde cedo, esse sujeitos tinham que enfrentar o trabalho pesado e muito do seu tempo era dedicado a atividade laboral: se menino na agricultura e se menina, nas atividades domésticas na Casa Grande.
Há poucas palavras para definir criança e adolescente no passado: “meúdos”, “ingênuos” e “infantis” eram as denominações, a partir da investigação de Priore (2007), que as crianças recebiam na vida social da América portuguesa. A infância era tida como que sem personalidade. Era um momento em que todos os adultos tinham como que sendo de transição, e não possuía nenhuma importância naquele momento.
[...] a “puerícia” tinha a qualidade de ser quente e úmida e durava do nascimento até os 14 anos. Dividia-se em três momentos que variava de acordo com a condição social de pais e filhos. O primeiro ia até a amamentação. O segundo, que ia até os sete anos, crianças cresciam à sombra dos pais. Daí em diante, começavam a trabalhar, desenvolvendo pequenas atividades, ou estudavam a domicílio, com preceptores ou na rede pública [...] (PRIORE, 2007, p.85).
Todavia, convém ressaltar, que o relacionamento afetivo dos pais com seus filhos na América portuguesa nem sempre foi assim. Essa relação passou por diversas configurações, por exemplo, a partir do momento que os padres jesuítas passaram a ditar as regras de convivência dos nativos e dos povos que aqui chegavam. Dito isso, note que a autonomia familiar, isto é, o que ser realizado ou não com os membros familiares, principalmente as crianças e os adolescentes, advinham de imperativos externos: ora era a necessidade socioeconômica, e, desta vez, a visão dos jesuítas quanto a utilização desses sujeitos.
De fato, os jesuítas passaram a ditar regras em uma sociedade colonial onde as leis/normas eram ditadas pela necessidade momentânea. Não existiam instituições que cuidasse desse assunto. Na verdade, sequer sabiam o espaço conferido a estes sujeitos na sociedade. Ademais, inexistia a figura do Estado, mas sim de uma colônia que estava a serviço da coroa portuguesa. Priore (2007) menciona que vários viajantes que chegavam ao Novo Mundo observavam a importância que os nativos davam ao relacionamento afetivo entre pais e filhos, enquanto pequenos. E muitos dos que chegavam a colônia portuguesa, escravos e colonos, com o tempo, passaram a incorporar essa prática em seu cotidiano.
Contudo, determinada ala jesuíticas e moralistas setecentistas, diziam que os exagerados “mimos maternos” é a causa maior para “deitar e perder os filhos”. Ele afirmava que a boa educação implicava em castigos físicos e nas tradicionais palmadas. Dessa forma, a partir do momento que essas ideias foram sendo incorporados ao cotidiano colonial através da catequese dos jesuítas e nos modos de convivência dos colonos, os castigos físicos em crianças e adolescentes passaram a ser regra básica no cotidiano colonial.
Ao ser introduzido no século XVI, pelos padres jesuítas, para “horror dos indígenas” que desconheciam o ato de bater em crianças e adolescentes, a correção era vista como uma forma de amor.
O “muito mimo” devia ser repudiado. Fazia mal aos filhos. “A muita fartura e abastança de riqueza e boa vida que tem como ele é causa de se perder” admoestava em sermão José de Anchieta. O amor de pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus ensinava que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida” (PRIORE, p. 97).
As crianças e os adolescentes, nas suas práticas cotidianas, se cometessem algum desvio de conduta que os adultos reprovavam, estavam diante de “açoites e castigos”. Esse tipo de prática na relação pai e filho tornaram-se habitual e passara a fazer parte do dia a dia dos colonos. Eles incorporaram a tal ponto essa idéia que passaram a naturalizar tais práticas.
Nas aulas régias, por exemplo, esse tipo de prática também esteve presente. A palmatória era instrumento de correção de fundamental importância na disciplina e nos desvios de aprendizagem dos alunos. A verdade é que muitas famílias incorporaram esses dispositivos de controle e moral no seu intra e extrafamiliar. As violências físicas a que muitas crianças e adolescentes eram submetidos foram sendo incorporadas e tidas como momento-exemplo de correção de práticas “desviantes”.
Essa situação começou a mudar quando o olhar da sociedade civil em relação aos demais membros que compõem a família começara a mudar. Falo das crianças e dos adolescentes, que, no século XX, no Brasil, a partir da formulação das leis com o objetivo de dar visibilidade aos atributos daqueles que até então estavam na esteira rolante da subjugação passam a ganhar certo espaço na sociedade civil. Sob esse aspecto, essas leis se configuram como sendo as premissas fundantes daquilo que se tornará o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) da criança e do adolescente no Brasil.
Em um primeiro momento, as crianças e os adolescentes passam a serem ditadas com nomes de cunho negativo, isto é, são denominadas com palavras de sentido que minora sua existência perante os demais sujeitos da sociedade civil. Por exemplo, eram chamados de “menor”. Mas foi no final dos anos oitenta no período da redemocratização, bem como no início dos anos noventa com a elaboração de leis que regem a integridade física, psíquica e moral desses sujeitos com o advento da Constituição Federal de 1988 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90) é que esses sujeitos ganharam o espaço que hoje é concebido a todos os indivíduos que possuem direitos. Pode-se, com relativa facilidade, perceber que com o advento das primeiras leis que conferem a criança e o adolescente como sendo possuidores de direitos que os mesmos horizontaliza sua condição de existência perante os demais sujeitos civis, tanto na família, como na sociedade civil e no Estado.
Esses sujeitos, antes de ganharem o contorno social, ideológico e jurídico que o alicerça nesta sociedade na atualidade, teve sua representação social modificada ao longo do tempo. Conforme o interesse em jogo, ou seja, conforme o contexto social na qual essas representações foram gestadas, nas palavras de Pinheiro (2006), a criança e adolescente foram configurados de diversas maneiras.
Para o entendimento de como se gesta uma representação social, Pinheiro (2006: 35 – 40) a partir de Therrien e Moscovici (1998: 31 – 34), vai ressaltar que as representações sociais são construções simbólicas ou construções mentais, e que por isso se fazem instrumentos de apreensão da realidade.
Para o entendimento das representações que configuraram a concepção da criança e do adolescente ao longo do tempo, fez-se necessário, na olhar de Pinheiro (2007), percorrer a história social brasileira para identificar os contextos sociohistórico em que se deram a emergência e a institucionalização das representações sociais desses sujeitos.
Dessa forma, ainda segundo Pinheiro (2007), a criança e adolescente brasileiro possuem quatro concepções principais ao longo da história brasileira que irá repercutir da formulação das leis e o modo como a Família, a sociedade civil e, principalmente, o Estado irá trata-lo. A primeira se refere a estes como sendo “objeto de proteção social”. Diferentemente da criança que possui um valor secundário na família, como pontua Costa (1989), nesse momento esses sujeitos passam a ser protegidos pelo Estado desde os seus primeiros anos de vida. Um dos fatores importantes para o florescimento dessa concepção é o trabalho das Igrejas Católicas e da atividade filantrópica, que, com seus valores centrais, como são o “amor ao próximo” e a “compaixão”, procuram centralizá-los nestes sujeitos que se viam abandonados.
No final do século XIX e nos primórdios do século XX, ainda na fala de Pinheiro (p.55), o Estado passa a querer investir no desenvolvimento da criança e do adolescente. O contexto sociohistórico demonstra que o Estado tem por objetivo a ideia de “criar filhos para a nação”.
A criança, antes manipulada pela religião e pela propriedade familiar, ver-se-á, no século XIX, novamente utilizada como instrumento do poder. Desta feita, porém, contra os pais e a favor do Estado (COSTA, 1999, p. 175).
Nesse momento, a família que até então possuía o monopólio da criação da criança e do adolescente, passa a dividir “ônus e bônus” com o Estado. Assim, esse sujeitos que ora se desenvolve nesse contexto, ao invés de servir aos interesses da família, passa a ditar as regras impostas pelo Estado.
A partir deste olhar, esses sujeitos passam a serem tidos como “objeto de controle” e disciplinamento social. Elas são disciplinadas pelo Estado através da ação dos higienistas, da escolarização e profissionalização. O objetivo de tal intento é que estes não procedam a executar atos de delinquência, e a família, nesse momento, cabe o exercício da pratica das atividades advindas do Estado.
Entre as décadas de 1930 a 1940, a partir do crescimento do número de crianças e adolescentes na marginalização[3] advindo na não inserção no sistema vigente, tem-se um grande número desses sujeitos na rua “criando” casos de polícia. Dessa forma, utilizaram-se de práticas corretivas no uso de coerção para com os chamados “delinquentes”.
A família que possuía um filho “delinquente” necessitava de um local restaurativo das práticas desviantes. Foi nesse momento que se deu a criação do Código de Menores em 1927. O objetivo desse dispositivo legal era “incutir hábitos de trabalho e educa-los profissionalmente os pequenos mendigos, vadios, viciados e abandonados” (PINHEIRO, in: OSTERNE, 1995, p. 02). Esses sujeitos, nesse momento histórico, a partir de Pinheiro (2007) foram denominados de “objeto de responsabilidade social”.
Mas foi só a partir da década de 1970 que a criança e o adolescente passam a possuir atributos de sujeito que possui direitos. A “infância sem família”, na representação das crianças abandonadas, mendigos, vadios e viciados como mencionado acima, na concepção de Postman (2008), começa a exigir um aparato jurídico que respondesse aos novos tempos. Surgem, portanto, a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, as quais são pontuadas como sendo os pilares de uma nova era para as crianças e os adolescentes.
O dispositivo constitucional denominado de Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) criado a partir da lei n° 8.069 de 1990, entre outras coisas, visa regulamentar e dar voz a esses sujeitos que sempre se viram em situação de subalternização socioespacial ao longo da historia. Além disso, o ECA tem por objetivo, também, regulamentar aquilo que já tinha sido subscrito no artigo 227, entre outras artigos, da Constituição Cidadã brasileira de 1988.
Antes do ECA, o chamado Código de Menores, que até então prevalecia na sociedade brasileira, punindo os ditos “menores”, ou seja, aqueles que viviam em situação de vulnerabilidade social e que por isso adentrava as esferas situacionais de regulação e contorno de suas práticas, vem contrastar com o novo Estatuto, uma vez que este busca, objetivamente, a proteção integral da criança e ado adolescente frente a qualquer situação de eminencia violência na qual possam vivenciar nesse período de desenvolvimento das suas faculdades cognitivas. Como consta no ECA:
[...] estabelece direitos a serem garantidos para todas as crianças: direitos relativos à sobrevivência, ao desenvolvimento pessoal e social e á integridade física, psicológica e moral, criando instrumentos de garantia para o cumprimento destes direitos, tais como os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares. (ECA/90).
Dessa forma, o Estado, a sociedade civil e a família, devem, entre outras coisas, dispensar um novo olhar em termos de conteúdo, método e gestão no que diz respeito a sociabilidade de convivência com esses sujeitos com direitos. Muitas práticas que anteriormente eram colocadas em relevo, hoje são consideradas abusivas e que “rasgam” o ECA/90. Assim, nada mais coerente com essa nova representação social da criança e do adolescente do que procurar objetivar na prática um reordenamento das práticas cotidianas, pois a lei é categoricamente explícita no que se refere a isso.
Mas para que tudo isso seja colocada em prática, creditou-se necessitar de dispositivos governamentais para que esses objetivos circunscritos no ECA/90 prevalecesse. Estamos falando dos Conselhos Tutelares (CTs) e dos membros que o compõem, isto é, os conselheiros tutelares. Esses agentes sociais passaram a ter fundamental importância nessa nova roupagem que a família, a sociedade civil e o Estado devem ter oriundo dessa nova concepção – sujeitos de direitos – a partir da CF-87 88 e do ECA/90. Esse órgão – CT – possui, entre outras coisas, a função de fiscalizar e gerir novas formas de sociabilidade quando crianças e adolescentes estiverem em eminente situação de vulnerabilidade física, psíquica, ideológico e moral. Dito isso, os CTs se revestem de grande importância para que a concepção sujeitos com direitos possa sair do papel. Para isso, é necessário que este órgão esteja em sintonia com as prerrogativas que os criou.