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O direito ao anonimato dos doadores de material genético na reprodução assistida na contramão ao direito à identidade genética

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Agenda 24/06/2019 às 16:39

Busca-se, através da conceituação dos institutos, confrontar os direitos que compõe o título sob o prisma da nova lei de proteção de dados (lei 13.709/18), observando as consequências jurídicas em caso de prevalência de um direito sobre o outro.

1. INTRODUÇÃO

O anonimato do doador de material genético é tema divergente na sociedade brasileira. O direito ao anonimato é, em breve síntese, a opção que os doadores de gametas possuem de ter a sua identidade preservada.

Em contrapartida a tal prerrogativa, há a existência de uma segunda que, quando confrontada diretamente com o anonimato do doador, acaba por divergir a doutrina e o entendimento dos tribunais.

O direito à informação da origem genética possui caráter fundamental, previsto nos ditames constitucionais e encontra-se ligado à dignidade da pessoa humana. Atribuiu-se o caráter constitucional a este dogma, a crença de que o conhecimento do gene está intimamente conectado com a personalidade do indivíduo e, por isso, merece o zelo constitucional.

Não faltam exemplos de filhos gerados através de reprodução assistida que buscam conhecer a identidade do doador de material genético. Recentemente, na Alemanha, o Tribunal Superior Estadual de Hamm julgou procedentes os pedidos de Sarah P., de 21 anos, para que seu médico dê informações sobre o doador de material genético, revelando a identidade do mesmo[1].

Da mesma sorte, um doador de sêmen foi convidado em 2017 para conhecer os supostos 19 filhos que possui ao redor do mundo. No programa estadunidense Inside Edition, o doador de 30 anos alegou que manteve relação de afeto com os filhos desde o momento em que os conheceu. Todavia, a maioria dos doadores prefere exercer o direito ao anonimato, gerando a controvérsia objeto da pesquisa[2].

Destarte, não há qualquer socorro na legislação pátria que resolva o problema criado quando os Direitos aqui tratados são confrontados. Por um lado, existe a tutela que o Estado deveria oferecer aos pais que pretendem utilizar deste meio de reprodução, tal qual para as clínicas e doadores de material que, notando a insegurança jurídica e os riscos de haverem prejudicados por revelar a identidade dos doadores, podem se sentir desestimuladas a continuar com a atividade e prejudicar o andamento da reprodução artificial.

Por outro lado, na legislação brasileira subsiste em forma de garantia oferecida pela Carta Magna, o direito do reproduzido de ter acesso ao seu DNA. Em resumo, todo indivíduo deveria, caso assim desejasse, ter informações sobre a forma como foi gerado e de onde podem ter advindo suas características físicas e emocionais.

Nesse sentido, pode ser levado em conta ainda que a criança gerada em nada tenha ligação com o método adotado pelos pais para a reprodução. Em uma análise superficial sobre o caso, pode-se afirmar que o indivíduo nascido através da fecundação artificial, in vitro, ou gestação por substituição em nada contribuiu ou contratou com o sigilo que seus pais e o doador de material genético optaram por salvaguardar quando da decisão de utilizar-se de tais técnicas.

Deste modo, o que se busca nesta pesquisa é contrapor os dois direitos tutelados, tentando resolver a problemática existente entre os dois institutos quando conflitados, levando em consideração as orientações adotadas pela doutrina e jurisprudência e a hierarquia de princípios.

Para isso é importante inicialmente tratar do conceito de reprodução assistida e seus mais variados métodos. A reprodução artificial, ou assistida, como popularmente chamada, trata da adoção de técnicas de auxílio para que pessoas possam vir a gerar filhos sem a utilização da fecundação naturalmente conhecida. Segundo Maria Helena Diniz: “reprodução humana assistida é um conjunto de operações pra unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano”.[3]

A reprodução assistida divide-se primariamente em homóloga e heteróloga, sendo a primeira “aquela em que é usado somente o material biológico dos pais - pacientes das técnicas de reprodução assistida. Não há a doação por terceiro anônimo de material biológico (espermatozoide, óvulo ou embrião).” [4]

Essa, portanto, não se encontra afetada pela problemática descrita neste trabalho acadêmico, visto que em sendo os próprios pais biológicos os doadores do material, não há que se falar em direito ao sigilo ou qualquer prática que preserve a identidade destes, já que pressupõe, com a adoção da técnica, o desejo dos mesmos de virem a ser pais de forma pública, assumindo a responsabilidade de tal encargo e, por óbvio, a publicidade.

Já a reprodução heteróloga, objeto deste estudo, segundo o mesmo autor “se dá quando há a doação por terceiro anônimo de material biológico ou há a doação de embrião por casal anônimo. Podendo ainda “ser unilateral (material genético de um doador) ou bilateral (material genético de dois doadores ou doação de embrião)”[5].

Esta última, por envolver material genético de terceiro estranho à relação em que se pretende gerar o indivíduo, merece maior respaldo jurídico quanto às possibilidades e os efeitos da geração de determinada pessoa através deste método. Isto porque, com o advento da nova lei de proteção de dados em conjunto com as resoluções – que serão melhores tratadas abaixo – do Conselho Federal de Medicina, observar-se-á que o Brasil optou por seguir um modelo de proteção ao sigilo do doador de material genético em supremacia ao direito de reconhecimento da ascendência genética, o qual encontra ligação íntima com os direitos da personalidade citados na Constituição Federal e no Código Civil de 2002.

No entanto, há exemplos na América do Sul, como a Argentina, e na Europa, como a própria Alemanha e o Direito Português, de países que optaram na forma da lei por deixar um pouco menos em destaque a privacidade do doador, optando pela preferência de socorro à identidade genética.

Em que pese as leis de direito material estrangeiras se quer possuírem força normativa em território nacional, seu estudo mostra-se relevante como uma diretriz de inspiração para um possível preenchimento da lacuna jurídica atualmente existente com relação ao tema. Compreender como o direito alienígina trata o segmento da privacidade e da historicidade genética e quais princípios inerentes aos dois direitos são utilizados, poderá embasar futuras teses fundamentadas em princípios e regras comuns, para que se garanta um direito em razão do outro.

Ao decorrer do estudo desta pesquisa, serão explicitados os dois institutos que intitulam esta e, através da confrontação de ambos, poderá ser observado o impacto gerado pela legitimação do sigilo como direito absoluto do doador e as consequências deste quando não observado em conjunto ao direito à identidade genética


2. O DIREITO AO ANONIMATO

É sabido que a privacidade é tratada como Direito Fundamental intimamente ligado com as garantias individuais, sendo tema de diversos pactos internacionais e sofrendo a tutela do Estado das mais variadas formas. Neste capítulo, será discutido se a revelação da identidade do doador viola o Direito ao sigilo e como é realizada a proteção à intimidade do doador de material genética nas técnicas de reprodução heteróloga, abordando seus efeitos práticos e contextualização com as orientações do Conselho Federal de Medicina

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De forma oposta à descoberta da origem genética por parte do reproduzido de forma assistida, encontra-se o Direito ao sigilo do doador de gametas. A Constituição Federal de 1988 optou por outorgar caráter pétreo e fundamental à intimidade e ao sigilo, como pode ser observado:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indeniz[6]ação pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (...)

XIXX - "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal"(...) (grifado do original)

A definição encontrada para sigilo no dicionário é de “algo que permanece escondido, em segredo. É a coisa ou fato que não pode se revelar ou divulgar”4. Portanto, aquele que opta pela realização de determinado ato sob a tutela do segredo, deduz esperar que tal ato, muito embora possa vir a público, preserve resquícios mínimos que ao menos garanta o sigilo de sua identidade.

É esperado, portanto, que haja vista as regras e termos que serão abaixo tratadas, que ao ser doado o material genético com o fim de reprodução assistida, seja o mesmo preservado de maneira confidencial, ou que, caso venha a ser objeto de flexibilização, esta não venha a ser absoluta, restringindo-se aos dados suficientes apenas para identificar fatores que possam auxiliar o reproduzido ou a medicina a solucionar ameaças à saúde ou informações relevantes relativas ao DNA do indivíduo, mas nunca sua real identidade.

É relevante destacar ainda que o doador de material genético o faz de forma voluntária, sem esperar qualquer ônus ou recompensa por aquela ação, portanto, trata-se de manifestação gratuita, voluntária e discricionária do agente que opta por prestar determinado serviço à sociedade em razão de suas crenças e vontades. Tal caráter do ato de doação pressupõe mais ainda a necessidade de se regular as relações entre os doadores de material genético e os demais envolvidos pelo princípio da boa-fé objetiva, o que será observado neste trabalho.

No entanto, não só a Constituição destacou o direito aqui discutido como primordial, mas também o entendimento de tribunais superiores e de autores que tratam o sigilo como irrevogável, isto se mostra tanto em ações cíveis que envolvem, por exemplo, o sigilo bancário, como a já consolidada necessidade de autorização judicial para violação da intimidade, ainda que para buscar prova essencial para a solução do caso.

Por analogia ao sigilo que aqui se busca tutelar, pode-se dizer que a jurisprudência[7] dos tribunais superiores tem dado fim ao sigilo somente nos casos em que a situação se mostra extrema, quando, além de indispensável para a solução do conflito, mostra-se ser a única e exclusiva forma de se obter o resultado pretendido. O exemplo do que se alega, em paralelo ao Direito Penal, pode ser invocada a lei de interceptações (Lei 9.296/96) que exige em condição para que haja a violação da intimidade do agente, além dos requisitos mínimos, que aquela seja a única forma de se alcançar a prova de autoria, sob pena de nulidade.

Esta análise analógica nos leva a crer que o Estado vem tutelando a intimidade como um bem quase absoluto e que nos diversos ramos do Direito a privacidade é tratada como garantia individual irrevogável, devendo o agente buscar de outros meios para solucionar o que procura e, tão somente em último caso, mediante autorização judicial, quebrar o sigilo pretendido.

Nota-se que, muito embora o direito ao sigilo e intimidade não seja absoluto pois, como já discutido, o mesmo comporta relativizações somente em casos que se mostram extraordinários, a resolução 2.168/2017 revogou a antiga resolução CFM nº 2.121/2015, no entanto manteve as mesmas garantias e deveres tratados por suas anteriores com relação à preservação da identidade dos doadores.

“Item IV – DA DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES:

2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa (...)

“(...) 4 - Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a).(...)

(...) 5- As clínicas, centros ou serviços onde é feita a doação devem manter, de forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores, de acordo com legislação vigente.(...)”

Ao que parece, a posição do Conselho Federal de Medicina, ao resolver publicar esta resolução, é a de proteção ao doador de material genético, obrigando as clínicas tão somente a manter de forma permanente, dados suficientes para que eventual situação especial seja suprida.

Esta clara preocupação com os efeitos posteriores à inseminação artificial ensejou a optativa do Conselho Federal de Medicina por determinar a manutenção permanente dos “dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores”, sendo tal determinação uma evidente possibilidade de flexibilização do sigilo de que trata o capítulo. Noutro giro, ainda que não possa alegar que tal direito seja de fato um instituto absoluto, a exceção acima trazida, é relativa, ou seja, ainda que a clínica esteja obrigada, segundo a norma do CFM, em manter sob sua guarda alguns dados do doador, estes mostram-se insuficientes para a descoberta da história do indivíduo reproduzido através de inseminação heteróloga e harmoniza com os princípios e ditames da medicina, que priorizam tão somente a guarda de dados suficientes para que eventuais descobertas relacionadas à própria medicina possam vir a ser resolvidas através da obtenção dos dados guardados.

Muito embora a proteção à identidade do doador possa vir a ocasionar diversos constrangimentos como a possibilidade de incesto involuntário, que ocorre quando dois indivíduos sem ter o conhecimento de que ambas as concepções foram geradas através da doação do mesmo doador, ou seja, quando ambos não têm a notícia de serem biologicamente irmãos, acabam por manter uma relação afetiva involuntária, o Conselho Federal de Medicina mais uma vez buscou solucionar a controvérsia priorizando a diminuição da possibilidade da ocorrência do incesto, em desfavor da extinção da confidencialidade. O entendimento do órgão é de que seria mais correto diminuir o número de doação de gametas para um mesmo doador na mesma região, do que violar a confidencialidade do ato de doação de material genético.

Isto mostra-se evidente quando, em recente alteração, limitou que o mesmo doador produza mais de duas gestações de crianças de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes. Novamente, nota-se que embora a possibilidade de um incesto involuntário seja conhecida, o órgão optou por reduzir as chances deste, ao invés de violar o direito fundamental ao sigilo, consolidando o entendimento de que, no Brasil, prefere-se a prática da proteção aos dados em supremacia a qualquer outro direito, como pode ser observado:

“Item IV – DA DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES:

6. Na  região  de  localização  da  unidade,  o  registro  dos  nascimentos  evitará  que  um(a) doador(a) tenha produzido mais de duas gestações de crianças de sexos diferentes em uma  área  de  um  milhão  de  habitantes.  Um(a)  mesmo(a)  doador(a)  poderá  contribuir com quantas gestações forem desejadas, desde que em uma mesma família receptora.”[8]

É necessário, ao observar a flexibilização de tal direito, que a mesma parece ser cabível tão somente mediante uma ameaça de doença, má-formação ou semelhante problema genético oriundo da técnica de reprodução adotada, passível de obtenção de solução através do conhecimento da genética do doador. Observa-se pelo texto da resolução acima colacionado que a violação da identidade é permitida tão somente para médicos, com finalidade específica e em situações especiais, excluindo, via de regra, a possibilidade de o indivíduo comum obter tal informação alegando o direito à identidade genética.

O que se busca através da Resolução 2.168/2017 é salvaguardar o Direito ao sigilo do doador, mantendo em poder das clínicas de reprodução somente os dados suficientes para que seja de conhecimento médico as características do indivíduo e de seu material genético, caso o reproduzido venha a passar por qualquer eventualidade que o faça necessitar de tal informação.

Portanto, ainda que violada a prerrogativa de segredo do doador, a mesma, frente a terceiros, permaneceria intacta, haja vista o artigo 102 do Código de Ética Médica tratar de forma explícita da proibição do médico de revelar fatos de que tenha conhecimento, em qualquer tempo ou modo, garantindo pelas resoluções e entendimentos médicos pela supremacia da inviolabilidade do doador.

“É vedado ao médico:

Art. 102 - Revelar o fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente.

Parágrafo único - Permanece essa proibição:

a) Mesmo que o fato seja de conhecimento público ou que o paciente tenha falecido.

b) Quando do depoimento como testemunha. Nesta hipótese o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento.“

Neste cenário, diante do aumento significativo de dados privados em poder de sites e redes sem que houvesse o conhecimento dos usuários, e visando não só proteger, mas também garantir o acesso à quantidade de dados que determinado servidor possui sobre certa pessoa, criou-se a lei de proteção de dados pessoais (lei nº 13.709/2018). O fato de o Brasil editar lei visando a proteção de dados de pessoas e determinando que as empresas detentoras de tais informações ajam com maior transparência para com o material armanezado seguiu uma frequente mundial de países que eram separados em dois grupos: os que possuíam e os que não possuíam lei interna de proteção de dados.

Frisa-se que esta corrente deu-se pelo aumento significativo de reclamações de consumidores [9] com relação a uso indevido de dados em poder de empresas. Pode ser observado que a aplicabilidade de tal legislação faz-se mais evidente no Direito do Consumidor, com normas protetivas que garantem ao homem médio escolher como e quais dados as pessoas jurídicas com quem contrata pode obter, e ter acesso à estas informações de forma clara, a qualquer momento.

Pelo que se mostra, não houve cuidado do legislador em aplicar a lei de proteção em conjunto ao direito à personalidade da identidade genética. Ora, a lei trata como dado anonimizado, aquele que é : “relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento (...)”.

Tal definição se aperfeiçoa com a definição de dado do doador de material genético pois, muito embora as clínicas de reprodução assistidas estejam obrigadas a salvaguardar os dados acerca da utilização do doador, esta necessidade, pelo que demonstra a resolução do Conselho Federal de Medicina, não necessita conter a qualificação completa do indivíduo, mas somente meios capazes de identificar a característica física e genética do doador, enquadrando-se, via de regra, na hipótese legal retro citada.

Nota-se que muito embora a norma em comento tenha sido criada afim de resguardar a obtenção, uso e comercialização de dados de terceiro que possam vir a prejudicar a privacidade, esta parece ter alguma intimidade com o sigilo do doador de gameta e a identidade do reproduzido.

Em que pese a Lei de Proteção de Dados versar expressamente que os chamados dados anonimizados “não são considerados dados pessoais para os fins específicos desta legislação”[10] esta mesma lei revoga tal carater se esta condição foi possível de reversão através de processo de anonimização, quando então, estaríamos diante de um dado pessoal sensível, objeto de maior tutela dada pela norma. Cuida-se então que, em havendo a descaracterização da anonimidade dos dados ora citados, estes passariam a vigorar sob a tutela da lei de proteção de dados, garantindo o caráter de sigiloso e somente poderão ser violados nas ocorrências taxativas trazidas pela própria lei.

A possibilidade de tratamento, ou seja, de utilização do dado pessoal sensível somente seria possível, na vigência da lei, nos casos em que houvesse consentimento do titular, cumprimento de obrigação legal ou regulatória do controlador, realização de estudos por órgãos de pesquisa, para o exercício regular de direitos em processos judiciais, administrativos ou arbitrais, para proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro; para tutela da saúde, com procedimento realizado por profissionais da área da saúde ou por entidades sanitárias[11], dentre outras hipóteses trazidas pela letra da lei que não comportam utilização no dirieto aqui adotado.

Resta demonstrada, portanto, a pretensão do legislador em manter em sigilo o dado daquele que não consentiu com a sua divulgação, salvo nos casos em que houver autorização judicial, ou iminente perigo de vida. A ausência de regra que determina a divulgação do dado ao interessado em obtê-lo sob justificativa de busca por histórico familiar, ou do próprio conhecimento de seu DNA, demonstra uma tendência em não equiparar o direito à identidade como fundamental e ligado à personalidade humana, tal como uma proteção irrevogável à intimidade.

Vale mencionar ainda que, no caso concreto, os contratos celebrados entre as clínicas de reprodução assistida e seus doadores, assim como os contratos efetuados entre estas mesmas e os pais que desejam usufruir de tais técnicas contêm cláusula de sigilo de nome do doador, acalorando ainda mais a discussão acerca do tema.

Dentre os que defendem de forma absoluta a superioridade do sigilo, há como argumento principal o fato de caso regulada a possibilidade do acesso à informação do doador, venha este fator causar impacto e prejudicar o número de adotantes da prática de reprodução assistida, prejudicando os pais que biologicamente não possuírem condições de gerar por contra própria uma criança. De acordo com esse pensamento, prioriza-se a relação jurídica entre as pessoas já existentes. Segundo estes, seria preferível tutelar direitos de pessoas que já existem e já gozam de garantias individuais, como o direito à família, à tecnologia e ao livre exercício de contratar em detrimento aos direitos de indivíduos que se quer foram gerados, e que não se sabe se precisarão ou farão jus à violabilidade do sigilo em momento futuro.

No entanto, é possível encontrar de forma abundante autores que, ao contrário das regras já expostas, defendem a flexibilização do sigilo quando houver possibilidade de tal segredo importar em violação de direito fundamental do indivíduo gerado de maneira  assistida. De acordo com a autora e magistrada Mônica Aguiar, que em 2005 tratou o biodireito e o direito a filiação de forma unitária, buscando a verdade real sobre o vínculo da filiação:

“(...) o anonimato das pessoas envolvidas deve ser mantido, mas devem ceder à pessoa que resultou da técnica concepcionista heteróloga, diante do reconhecimento pelo Direito brasileiro dos direitos fundamentais à identidade, à privacidade e à intimidade, podendo a pessoa ter acesso às informações sobre toda a sua história sob o prisma biológico para o resguardo de sua existência, com a proteção contra possíveis doenças hereditárias, sendo o único titular de interesse legítimo para descobrir suas origens.”[12]

De acordo com esta parte da doutrina existe a possibilidade de desconsideração do sigilo, sendo o indivíduo gerado o único capaz de postular por esta quebra de confidencialidade por fundada razão, não dependendo esta de ser exclusivamente ligada ao risco à saúde.

Deste modo, pode ser notado que no Direito Brasileiro o sigilo do doador de material genético é tratado como algo absoluto e blindado pelas diretrizes que regem as normas da prática de reprodução assistida, e pelo dever de sigilo do profissional de medicina. Observa-se que há uma prioridade em ofertar e proteger serviços de inseminação artificial, garantindo o segredo de identidade ao doador como prerrogativa de continuidade de tais serviços.

Em que pese não haver na legislação brasileira qualquer norma legal que se posicione com clareza a respeito da problemática narrada, a busca por resoluções e entendimentos que, muito embora não possuam força de lei, acabam por obrigando clínicas e profissionais capazes de realizar reprodução assistida, parece ser mais favorável ao sigilo do doador, recepcionando a inviolabilidade de dados contida na Carta Magna de 1988 de forma mais abrangente que os direitos à personalidade e o direito à identidade genética, este que encontra dificuldade de avantajar-se frente ao outro, frente o exposto acima.

Posteriormente, observar-se-á que o direito ao reconhecimento da ascendência genética pode comportar exceção ao instituto ora abordado e, em que pese a proteção dada pela Medicina ao sigilo, conforme tratado neste capítulo, as linhas seguintes demonstrarão que a proteção à intimidade do doador pode e deve comportar exceção, deixando de tratar o segredo de informação como algo imperioso, dando lugar a direito fundamental tão relevante quanto à proteção de dados – a personalidade da pessoa e o direito de conhecimento de sua origem genética.

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