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Igualdade e inclusão social no Brasil:

ações afirmativas na UnB

Agenda 12/11/2005 às 00:00

1 Introdução

A história brasileira, seja no período colonial seja no período pós-1822, sempre foi marcada por profundas desigualdades sociais, especialmente no que diz respeito aos brancos e negros.

Com a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, através da Lei Áurea, os negros finalmente foram declarados livres e já se poderiam considerar cidadãos brasileiros.

"A abolição do regime servil, em 1888, deixou a massa de ex-escravos nas posições mais baixas da hierarquia sócio-econômica". (HASENBALG; SILVA, 1988, p.121). A partir daí o que se deu foi a total exclusão e marginalização da maioria dos negros brasileiros, amparada pela substituição da mão-de-obra por imigrantes europeus.

"A solução imigracionista articulava-se (...) como parte de um projeto de modernização do país a mais longo prazo, no qual o embranquecimento da população nacional contava como uma das conseqüências mais desejadas". (HASENBALG; SILVA, 1988, p.129).

O embranquecimento da população estava amparada em teorias racistas que vigoravam naquele período e que exaltavam os povos da Europa e que subjugavam os negros, índios e orientais como raças inferiores e cheias de influências negativas. O que se buscava com a imigração era mudar a cor da população brasileira e extirpar cada vez mais o negro da sociedade.

Nem mesmo a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889 alterou esta situação excludente. Vemos que não houve qualquer preocupação com o destino dos ex-escravos por parte do Estado ou da própria sociedade brasileira.


2 A origem das ações afirmativas nos Estados Unidos

A sociedade norte-americana, a exemplo da sociedade brasileira, também é profundamente marcada pelas desigualdades sociais entre brancos e negros. A escravidão esteve presente na história dos Estados Unidos no período colonial e também após a independência da Inglaterra em 1776. A própria Constituição norte-americana acolhia o instituto da escravidão, tendo sido este extinto com a Guerra de Secessão, no século XIX, e por meio de Emendas à Constituição, especificamente as de número XIII, XIV e XV, todas estas voltadas à proteção dos negros.

Mas, com o fim da escravidão, a perseguição e a opressão aos negros norte-americanos não acabaram. Nos Estados do Sul dos EUA, maiores beneficiários do sistema escravista, a discriminação e o racismo se mantiveram com força total até a segunda metade do século XX, quando do surgimento dos históricos movimentos de busca pelos direitos civis.

A expressão ação afirmativa (affirmative action) surgiu no direito norte-americano na Executive Order 10.965, de 6 de março de 1963, de iniciativa do Presidente John Kennedy. Contudo, a expressão consolidou-se com a famosa Executive Order 11.246 de 1965, do Presidente Lyndon Johnson, pois através dela a celebração de contratos com a Administração Pública só seria possível se a empresa, a ser contratada, atuasse em prol da diversidade e da integração de minorias historicamente discriminadas e excluídas socialmente.

É de se salientar que o aparecimento das ações afirmativas nos Estados Unidos esteve ligado, diretamente, ao forte empenho e à participação do Poder Executivo Federal no real implemento da igualdade e de medidas concretas a favor de minorias social e historicamente excluídas. Tal fato pode ser percebido na aprovação do Civil Rights Act de 1964 e no famoso discurso do Presidente Lyndon Johnson proferido na Howard University em junho de 1965:

Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: "você está livre para competir com todos os outros" e, ainda acredita que você foi completamente justo. Isto não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os nossos cidadãos têm que ter capacidades para atravessar aquelas portas. Este é o próximo e o mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos somente por eqüidade legal, mas por capacidade humana, não somente igualdade como uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade como um resultado. (GOMES, 2001, p.57). (tradução nossa)


3 A realidade do negro na sociedade brasileira

Apesar de ser a 12ª economia mundial e de possuir uma Constituição Democrática, o Brasil, país com a segunda maior população negra do mundo, ainda apresenta grandes disparidades sociais entre brancos e negros.

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Ao contrário dos EUA que buscou resolver o problema racial existente, o Brasil, lamentavelmente, ainda não procurou combater, de modo eficaz, a discriminação e o racismo existentes nas mais diversas formas.

De acordo com os dados apresentados no magnífico estudo conduzido por um ex-Presidente da Universidade Harvard e ex-Diretor da Faculdade de Direito daquela mesma Universidade, Derek Bok, em colaboração com um ex-Presidente da Universidade de Princeton, William Bowen, os avanços obtidos pelos negros norte-americanos na área da educação, em conseqüência das ações afirmativas, são simplesmente impressionantes, sobretudo se levarmos em conta o fato de que, até o início dos anos 60, negros eram proibidos de freqüentar os mesmos locais públicos, as mesmas escolas, os mesmos locais de diversão freqüentados pelos brancos. O mencionado estudo revela, por exemplo, que o percentual de negros formados em Universidades e escolas profissionais pulou, entre 1960 e 1995, de 5,4% para 15,5% do total de graduandos; nas faculdades de Direito o progresso foi de 1% para 7,55%, ou seja, mais de 700%; em Medicina, de 2,2% em 1964, para 8,1% em 1995. (GOMES, 2001, p.114).

Ao se comparar as estatísticas entre brancos e negros, no Brasil, vemos que a distância entre as duas categorias sociais é enorme.

Segundo dados da PNAD de 1999 do IPEA (HENRIQUES, 2001), os negros correspondem a 51,1% da taxa de analfabetismo no Brasil entre a população adulta e a 64% da parcela de 53 milhões que vivem abaixo da linha de pobreza.

Os negros também compõem a 69% dos 22 milhões de indigentes e a 70% dos 10% mais pobres da população. A educação superior também é uma triste realidade para os jovens negros entre 18 e 25 anos, pois 98% deles não têm acesso a uma universidade.

O IDH de 0,691 e de 0,805, respectivamente para negros e brancos, reforçam ainda mais a situação inferior e desigual dos negros na sociedade brasileira.

É de se observar também que

um jovem branco de 25 anos tem, em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da mesma idade, e essa intensidade da discriminação racial é a mesma vivida pelos pais desses jovens – a mesma observada entre seus avós. (HENRIQUES, 2001, p.27).

Diante de toda esta situação de desigualdade e de exclusão social é que têm surgido alguns projetos de lei, no Congresso Nacional, envolvendo a problemática racial, bem como algumas iniciativas de sucesso de universidades brasileiras em prol do implemento de ações afirmativas para os negros, como o Plano de Metas da Universidade de Brasília (UnB).


4 O Plano de Metas da UnB

Quando fui para África do Sul, me perguntaram como nós brasileiros fomos capazes de criar um modelo de racismo tão sofisticado que a vítima não se sente atingida e o agressor não sabe que agride. Por isso a discussão das cotas é legal. Porque expôs o racismo embutido. (Palavras de Carlos Alberto Santos, Professor de Ética na UnB). (FERREIRA, 2002).

A UnB aprovou por meio do seu Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, em 6 de junho de 2003, um programa inovador de ações afirmativas. Trata-se do Plano de Metas para Integração Ética, Racial e Social, que instituiu cota de 20% das vagas do exame vestibular e do PAS para os negros e que vigorará inicialmente por 10 anos a partir de 2004.

A aprovação deste plano foi fruto de um longo período de discussão e debates entre os representantes da universidade, estudantes, movimento negro, professores e outros setores da sociedade civil, marcando assim a construção de um projeto democrático e participativo.

"O fundamento supremo do plano de metas é o propósito de promover a inclusão social de negros e indígenas por meio do acesso ao ensino superior, em um contexto de políticas de ação afirmativa" (MOURA, 2003, p.219), além de possibilitar a permanência do estudante na universidade e promover apoio ao sistema educacional público do Distrito Federal e entorno.

O primeiro vestibular com o sistema de cotas na UnB foi o do segundo semestre de 2004, pelo qual 20% das vagas foram destinadas aos negros.

O edital prevê que, no momento da inscrição, o candidato declara-se como preto, pardo, segundo a classificação do IBGE, e depois opta por declarar-se negro: candidato da categoria acima opta pelo sistema de cotas e requer inscrição pelo sistema. No ato da inscrição ao vestibular, os candidatos ao sistema de cotas serão fotografados individualmente para arquivo e posterior homologação do pedido de inscrição. Uma comissão de homologação examinará os pedidos de inscrição. Os candidatos receberão, junto com sua confirmação de inscrição, informação sobre ter sido inscrito pelo sistema de cotas ou pelo sistema universal – tradicional. O candidato tem assegurado direito a recurso. (MOURA, 2003, p.227).

Além disso, todos os candidatos, cotistas ou não, ao vestibular e ao PAS têm que atingir uma pontuação mínima para serem classificados. Não se pode falar que os estudantes negros estão "tomando a vaga dos estudantes brancos", uma vez que a destinação das mesmas é diferente, com 20% para os negros e 80% no acesso universal, e também pelo próprio implemento democrático do princípio da igualdade num Estado Democrático de Direito.

O plano da UnB está ancorado num outro importante fundamento que é a "trilogia acesso, permanência e sucesso" (SILVA, 2003a, p.30) dos negros no ensino superior, pois "define bolsas de estudos para os(as) ingressantes negros(as), de acordo com os critérios da Secretaria de Assistência Social da Universidade". (SILVA, 2003a, p.31).

Além do acesso dos negros com cota de 20% o sistema da UnB prevê também o acesso de indígenas, mas estes através de uma seleção diferenciada e em parceria com a Funai.


5 Conclusão

Diante de uma realidade marcada por discriminação e injustiças, faz-se necessária uma real afirmação e concretização do princípio constitucional da igualdade, sendo que este deve estar em sintonia com toda a sistemática constitucional e com o Estado Democrático de Direito.

A igualdade presente no texto constitucional deve promover aqueles historicamente relegados a segundo plano, de modo a proporcionar-lhes inclusão social, rompendo os preconceitos e todas as formas de discriminação e racismo.

A igualdade deve ser um fator presente e real num Estado Democrático de Direito, pois a legitimidade do ordenamento jurídico é construída a partir de processos democráticos onde haja participação igualitária, autônoma e discursiva dos destinatários das normas.

Uma ordem jurídica não pode limitar-se apenas a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus direitos por todas as demais pessoas; o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos os outros deve apoiar-se, além disso, em leis legítimas que garantam a cada um liberdades iguais, de modo que "a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos". (HABERMAS, 2003a, p.52)

A igualdade necessita de ser garantida e de forma real, pois "só garantindo a igualdade é que uma sociedade pluralista pode se compreender também como uma sociedade democrática" (GALUPPO, 2002, p.210), justa e solidária. E a concepção de igualdade inclusiva passa pelas ações afirmativas, visto que

a ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar como os demais. (ROCHA, 1996, p. 99).

Portanto, as ações afirmativas, no Brasil, devem ser vistas como um elemento propiciador da mais ampla igualdade procedimental e da inclusão democrática e participativa de todos, pois no Estado Democrático de Direito há "a institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito". (grifo nosso) (HABERMAS, 2003b, p.181).


6 Referências Bibliográficas

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CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 288p.

FERREIRA, Ana. Racismo à brasileira. UnB Agência, Brasília, 20 nov. 2002. Disponível em: <http://www.unb.br/acs/especiais/cons_racial-04.htm>. Acesso em: 14 nov. 2004.

GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 232p.

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 444p.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. vol. I.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. vol. II.

HASENBALG, Carlos A., SILVA, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice/Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, 1988.

HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. Rio de Janeiro: IPEA, 2001. Texto para discussão nº. 807. 49p.

MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano. São Paulo: RT, 2001. 173p.

MOURA, Dione Oliveira Moura. Plano de metas para a integração social, étnica e racial na UnB – relato da comissão de implementação. In: BERNARDINO, Joaze; GALDINO, Daniela (orgs.) Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p.217-228.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Pró-Reitoria de Graduação. Sistema de Bibliotecas. Padrão PUC Minas de normalização: normas da ABNT para apresentação de trabalhos científicos, teses, dissertações e monografias. Belo Horizonte, 2004. Disponível em <http://www.pucminas.br/biblioteca/normalizacao_monografias.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2005.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ação Afirmativa – O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 15/96.

SILVA, Cidinha da. Ações afirmativas em educação: um debate para além das cotas. In: SILVA, Cidinha da. Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras. São Paulo: Summus, 2003a. p.17-38.

Sobre o autor
Eder Bomfim Rodrigues

Advogado em Belo Horizonte/MG,mestrando em Direito Público pela PUC-Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Eder Bomfim. Igualdade e inclusão social no Brasil:: ações afirmativas na UnB. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 862, 12 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7516. Acesso em: 22 dez. 2024.

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