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A proteção das mulas do tráfico transnacional de drogas à luz do Protocolo de Palermo e do Código Penal Brasileiro

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Agenda 24/07/2019 às 11:13

Examina-se a situação jurídico-social vivenciada pelas mulas do tráfico transnacional de drogas a partir do Protocolo de Palermo.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a situação jurídico-social vivenciada pelas “mulas” do tráfico transnacional de drogas a partir do Protocolo de Palermo e do Código Penal Brasileiro.

Essencialmente, o trabalho volta-se para a seguinte indagação: é possível que as “mulas” do tráfico transnacional de drogas sejam consideradas, à luz do Protocolo de Palermo e do Código Penal Brasileiro, vítimas do tráfico internacional de pessoas?

Antes de prosseguir, esclarece-se ao leitor que para responder à indagação se as “mulas” do tráfico transnacional de drogas podem ou não ser vítimas do tráfico internacional de pessoas serão adotadas duas premissas básicas: (i) a admissão do tráfico internacional de pessoas como sendo uma questão de direitos humanos; e (ii) a interpretação ampliativa dos documentos que protegem a pessoa humana.


DESENVOLVIMENTO

No tocante à primeira premissa, impende consignar que a afirmação histórica dos Direitos Humanos, como assinala Mônica Sodré Pires, em sua tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo, promoveu o estabelecimento de “obrigações dos governos de agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos”, sendo as suas normas “expressas, entre outros, na forma de tratados e costumes, declarações, diretrizes e princípios”[1].

Tais direitos “fazem parte do conjunto de direitos considerados extensivos e inerentes a todos os seres humanos, independente de raça, sexo, etnia, nacionalidade, idioma religião ou qualquer outra característica”, sendo “garantidos legalmente pela lei de direitos humanos, que visa proteger indivíduos e grupos contra ações que interferem nas liberdades fundamentais e na dignidade humana”[2].

Em decorrência da globalização, no entanto, “pessoas deixam, cotidianamente, seus lugares de origem ou de vivência em busca de condições melhores de vida, trabalho o horizontes pessoais”, devendo-se registrar que “condições sociais e econômicas, que acabam por privar os sujeitos da dignidade que as questões normativas lhes confere, impelem ou os obriga a migrar, criando e favorecendo condições para que o tráfico de pessoas aconteça”[3].

É por isso que, embora seja comum encarar o tráfico de pessoas como uma questão de justiça criminal, “é importante também olhá-lo a partir de outra perspectiva subjacente a ele: os direitos humanos”[4].

Partindo dessa mesma concepção, o Ministério da Justiça, na já citada cartilha sobre tráfico de pessoas, considerou que[5]:

O TSH – Tráfico de Seres Humanos é um atentado contra a humanidade, consubstanciado em uma agressão inominável aos direitos humanos, porque explora a pessoa, limita sua liberdade, despreza sua honra, afronta sua dignidade, ameaça e subtrai a sua vida. Trata-se de atividade criminosa complexa, transnacional, de baixos riscos e altos lucros, que se manifesta de maneiras diferentes em diversos pontos do planeta, vitimizando milhões de pessoas em todo o mundo de forma bárbara e profunda, de modo a envergonhar a consciência humana.

Atendendo a essa nova concepção, em que pese o tráfico internacional de pessoas seja considerado um ilícito de natureza penal, trata-se, antes de mais nada, de uma transgressão aos direitos humanos como um todo.

Em outras palavras, embora da prática do tráfico internacional de pessoas possam advir consequências criminais ao autor, conforme previsão legal constante do artigo 149-A, §1º, IV, do Código Penal, a proteção internacional conferida às vítimas precede à configuração do injusto penal, razão porque a problemática se coloca, ab initio, como uma questão de direitos humanos.

Por sua vez, em relação à segunda premissa, tem-se que a interpretação pro homine, como assevera Luiz Flávio Gomes, impõe que, em se tratando de normas que asseguram um direito, prevalece a que mais amplia esse direito; em contrapartida, quando se está diante de restrições ao gozo de um direito, prevalece a norma que o restringe em menor escala[6].

Isso porque as normas de direitos humanos se “retroalimentam, se complementam (não são excludentes, sim, complementares)”, de tal forma que, a partir do momento que o Direito Internacional dos Direitos Humanos é assumido por um estado, “infiltra-se no direito interno para contribuir para a mais completa otimização dos direitos”[7].

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A propósito, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Estado brasileiro é signatário, e que possui o status de norma supralegal, vedou a possibilidade de interpretação no sentido de “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados”[8].

Sobre a temática, outro não é o entendimento da Segunda Turma do Egrégio Supremo Tribunal Federal, conforme se percebe do trecho do Habeas Corpus n. 96772, relatado pelo Ministro Decano Celso de Mello, a seguir transcrito[9].

Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica.

O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs.

Depreende-se do aresto acima referido que o julgador, na sua atividade interpretativa, deverá efetivar as potencialidades fundamentais da norma internacional e das prescrições constitucionais, a fim de garantir o seu melhor sentido e alcance em prol da pessoa humana, sobretudo aquelas mais vulneráveis.

Com base nessa perspectiva, não se pode considerar que o Protocolo de Palermo protege apenas mulheres e crianças. É que, embora lhes sejam conferidas proteção e assistência, em sentido especial, a interpretação pro homineobriga que se amplie o âmbito de proteção, estendendo-o a toda e qualquer pessoa que, tragicamente, venha sofrer as mazelas dessa violência em desfavor da sua dignidade e liberdade individual.

Em suma, ambas as premissas básicas servirão de norte para responder à indagação que se põe a seguir: afinal, as “mulas” do tráfico transnacional de drogas podem ser consideradas vítimas do tráfico internacional de pessoas?

É importante deixar claro que a resposta a essa pergunta, assim como as demais análises feitas até agora, tem como objetivo problematizar o tema com base em elementos teóricos – ainda que, em alguma medida, sejam extraídas características do cotidiano –, e, sendo assim, o seu reconhecimento, na prática, condiciona-se ao exame probatório, a ser aferido pelo órgão julgador.

O aspecto deste trabalho que mais se assemelha a um conteúdo pragmático, é bom que se diga, relaciona-se apenas com a análise crítica do filme, por se estar diante de circunstâncias fáticas, conforme se verá na seção secundária subsequente.

Feitos esses esclarecimentos, passa-se ao problema levantado.

Como se sabe, o documento internacional que melhor tratou até o presente momento a questão relativa ao tráfico de pessoas refere-se ao Protocolo de Palermo, promulgado no Brasil em 2004 e vigente até hoje.

O referido Protocolo, como também já se consignou, estabelece, no seu artigo 3º, item “a”, três características indispensáveis para a caracterização do tráfico de pessoas, quais sejam: conduta (recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento), artifício viciado (ameaça, uso da força ou outras formas de exploração, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, situação de vulnerabilidade, entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios) e finalidade exploratória (prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, servidão ou a remoção de órgãos).

À similitude do Protocolo de Palermo, o Código Penal brasileiro, como lembra Rogério Greco, incorporou no rol dos seus dispositivos o artigo 149-A, que seguiu, essencialmente, os parâmetros utilizados a nível internacional, também subdivididos em atos (agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa), meios (grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso) e finalidade de exploração (remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo, submissão a trabalho em condições análogas à de escravo, submissão a qualquer tipo de servidão, adoção ilegal ou exploração sexual)[10].

A abrangência dos elementos que designam o tráfico de pessoas tem uma justificativa plausível: o perfil dos traficantes. Esses, como ressaltam Kelly e Serio, podem ser enquadrados em três categorias principais, a saber[11]:

(1) pouco organizados: em regiões de fronteira, são comumente donos de taxi, pequenos barcos, donos de caminhões – encarregados de fornecer transporte interno ou internacional – responsáveis pelo deslocamento de pessoas até um ponto com pouco policiamento; (2) relativamente organizados – grupos que se especializam no envio de pessoas a partir de um país específico, normalmente por meio de uma mesma rota ou empregando regularmente métodos similares; (3) sofisticados em termos de organização: normalmente operam internacionalmente e são, por essa razão, os mais perigosos e difíceis de combater. Normalmente, dispõem de acesso a documentos falsos ou tem capacidade de falsifica-los, conseguem encontrar rotas alternativas quando um determinado caminho é bloqueado e contam com uma infraestrutura logística tanto nos países de trânsito quanto de destino.

Com base nessa sofisticação estrutural, os integrantes dessa rede exploratória possuem à disposição diversos mecanismos para cooptar pessoas, sobretudo quando o objetivo é traficá-las internacionalmente, o que justifica a amplitude de proteção.

Outrossim, diversa não é a estrutura do tráfico de drogas, cujo sistema hierárquico permite que as drogas sejam “movimentadas por contrabandistas, cultivadores ou fabricantes para atacadistas ou intermediários que passam o produto para a cadeia de varejistas, consumidores finais ou usuários eventuais”[12].

Nessa organização ilícita, o “baixo escalão” conta com “passadores” (que se encontram nos pontos de venda); “vaposeiros” (distribuidores da droga ao mercado consumidor); “mulas” (incumbidas de realizar o transporte da droga); “aviões” (sobem o morro para obter a droga); “olheiros” (que vigiam as entradas das comunidades para avisar a chegada dos policiais), dentre outros[13].

Visando à ascensão transnacional das drogas, como bem destaca Andréa Rocha, os membros que ocupam a parte intermediária da rede do tráfico de drogas negociam a contratação de pessoas para operações específicas ou para fazer “um pouco de tudo”, sendo remuneradas de maneira flexível, mas que, por não possuírem muitas habilidades e perspectivas de promoção, enfrentam o risco de morte ou prisão constantemente, evidenciando, assim, que “os trabalhos mais perigosos são realizados por uma força de trabalho não qualificada e substituível”[14].

Essa atividade de risco vem sendo desenvolvida, comumente, por “mulas”, que, “em decorrência da situação de vulnerabilidade econômica e social, se submetem aos riscos dos trabalhos no narcotráfico em troca de remuneração”[15].

Mesmo não sendo comum que as “mulas” exijam contraprestações sofisticadas para o transporte transnacional, como bem aponta Renato Brasileiro, em alguns casos, há toda uma estrutura logística voltada à remessa de drogas para o exterior a partir do Brasil, “com o fornecimento de passaportes, hospedagem, dinheiro e outros bens ao transportador da mercadoria”[16].

De todo modo, trata-se de pessoas sem qualificação técnica e que, em situação de desespero socioeconômico, tendem a aceitar as “oportunidades” que lhes são dadas, favorecendo, com isso, o seu “descarte”, como observa Vellinga[17]:

Para el empresario organizador, los mensajeros son prescindibles, personal que puede reemplazarse fácilmente. Las “mulas” pueden ser sacrificadas despiadadamente como parte de las estrategias y tácticas de contrabando definidas sin su conocimiento y control.

Associando-se, assim, as estruturas ilícitas do tráfico transnacional de drogas e do tráfico internacional de pessoas, infere-se que, através de artifícios fraudulentos[18], pessoas (“mulas”), que vivenciam uma situação de vulnerabilidade social e econômica, podem vir a ser recrutadas ou aliciadas para que as suas forças de trabalho sejam exploradas exaustivamente, colocando em risco a sua dignidade, liberdade individual e vida, em prática similar à de escravatura[19].

É bom que se diga que, em raríssimos casos, é possível haver fuga das vítimas, o que não descaracteriza, evidentemente, a exploração, haja vista que se trata de apenas de um ato “desesperado de preservação da condição humana, a evidência de que o ser escravizado é um ser que possui vontade e, portanto, liberdade”[20].

Nesse contexto, observa-se que, à luz do Protocolo de Palermo, as “mulas” do tráfico transnacional de drogas podem ser consideradas, em tese, vítimas do tráfico internacional de pessoas, estando o seu reconhecimento condicionado à verificação da presença dos elementos caracterizadores do ilícito.

Da mesma forma, é possível considerá-las como vítimas do tráfico internacional de pessoas com base no artigo 149-A, §1º, IV, do Código Penal brasileiro, cuja caracterização dependerá do exame dos elementos de prova que demonstrem a presença dos seus elementos, os quais, como dito, seguem a orientação internacional sobre o tema.

Nesses casos, as “mulas” do tráfico transnacional de drogas não mais seriam responsabilizadas pelo delito de tráfico transnacional de drogas com a causa de diminuição de pena (artigo 33, §4º c/c artigo 40, I, ambos da Lei n. 11.343/2006), estando amparadas por uma das causas supralegais de exclusão da culpabilidade, a inexigibilidade de conduta diversa, consubstanciada no conflito de deveres.

A respeito dessa causa de exculpação, leciona Juarez Cirino dos Santos que as situações de conflito de deveres são recorrentes no cenário em que trabalhadores à margem do mercado de trabalho, sobretudo por causa de políticas econômicas com inflação e desemprego das áreas periféricas, determinadas pelos interesses dominantes da globalização do capital, são impelidos a transgredir vínculos normativos comunitários (ou seja, deveres jurídicos de omissão de ações proibidas) para assegurar valores concretamente superiores (por exemplo, o dever jurídico de garantir a vida, saúde, moradia, alimentação e escolarização dos filhos)[21].

Nesse contexto subterrâneo, “depois de anos de frustradas tentativas de reinserção no mercado de trabalho, sob a tortura da fome, da doença, da insegurança, da angústia, do desespero”, algumas pessoas, como as “mulas” do tráfico transnacional de drogas, ao abrigo das mazelas socioeconômicas e visando à obtenção de uma condição básica existencial, desprezam as normas jurídicas vigentes, inclusive as que regem os ilícitos penais[22].

Em tais casos, os meios ordinários de valoração do comportamento individual devem mudar, “utilizando pautas excepcionais de inexigibilidadepara fundamentar hipóteses supralegaisde exculpação por conflito de deveres, porque, afinal, o direito é regra da vida”[23].

Tendo como supedâneo o axioma da isonomia (desigualar sujeitos concretamente desiguais), a introdução da noção de inexigibilidadepara as “condições reaisde vida do povo parece alternativa capaz de contribuir para democratizar o Direito Penal, reduzindo a injusta criminalização de sujeitos penalizados pelas condições de vida social”[24].

Com precisão, o jurista brasileiro conclui que[25]:

Se a motivação anormal da vontade em condições sociais adversas, insuportáveis e insuperáveis pelos meios convencionais pode configurar situação de conflito de deveresjurídicos, então o conceito de inexigibilidade de comportamento diversoencontra, no flagelo real das condições sociais adversasque caracteriza a vida do povo das favelas e bairros pobres das áreas urbanas, a base de uma nova hipótese de exculpação supralegal, igualmente definível como escolhado mal menor - até porque, em situações sem alternativas, não existe espaço para a culpabilidade.            

Destarte, percebe-se ser admissível a viabilidade teórica de as “mulas” do tráfico transnacional de drogas serem vítimas do tráfico internacional de pessoas, cabendo, no entanto, ao julgador averiguar se, do caso concreto, é possível extrair os seus elementos caracterizadores.

Sobre o autor
Bruno Porangaba Rodrigues

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Bruno Porangaba. A proteção das mulas do tráfico transnacional de drogas à luz do Protocolo de Palermo e do Código Penal Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5866, 24 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75283. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.

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