A redação original do art. 327 do Código Penal apenas entendia como funcionário público o descrito no caput, qual seja: aquele que, mesmo que “transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”.
Por equiparação, o então parágrafo único do dispositivo acima referido (hoje renumerado como §1º), considerava-se funcionário público aquele que “exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal”.
Pois bem, José dos Santos Carvalho Filho afirma que “o termo ‘paraestatal’ tem formação híbrida, porque enquanto o prefixo ‘para’ é de origem grega, o vocábulo ‘status’ é de origem latina. ‘Paraestatal’ significa ‘ao lado do Estado, paralelo ao Estado’.” Assim, o autor considera entidade paraestatal “aquelas pessoas jurídicas que atuam ao lado e em colaboração com o Estado”.[1]
Nesse diapasão, Dirley da Cunha Jr. entende que “esses entes de cooperação compreendem os serviços sociais autônomos, as entidades ou fundações de apoio, as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público”.[2]
Posteriormente, a Lei 9.983/2000, dentre outras matérias, deu nova redação ao art. 327, §1º, do Código Penal com o objetivo de ampliar o conceito de funcionário público por equiparação, de modo a englobar também aquele que “trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública”.
Dito isto, imprescindível considerar que, embora haja divergência, a ampliação do conceito de funcionário público promovida pela Lei 9.983/2000 não pode abarcar situações anteriores à sua vigência.
A ficção legal do funcionário público por equiparação, por ter cunho excepcional, somente poderia ser interpretada estritamente. Tanto isso é verdade que a Lei 9.983/2000, ao ampliar o conceito, deu a entender que esses agentes não estavam incluídos na interpretação do dispositivo anterior.
Noutras palavras, a Lei 9.983/2000 foi publicada em 17/07/2000 e o seu art. 4º estabeleceu vacatio legis de 90 dias após a data sua publicação. Portanto, só poderia ser aplicada após transcorrido esse prazo.
Isso tendo como base o art. 5º, XL, da CF[3] que trata justamente do princípio da irretroatividade da lei penal, sendo imperioso o reconhecimento da atipicidade do art. 327 do Código Penal para eventuais atos praticados por aqueles que “trabalha[m] para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” no que se refere a atos praticados anteriormente à vigência da Lei 9.983/2000.
Portanto, a ampliação do conceito de funcionário público, desenhada pela Lei 9.983/2000 jamais poderia retroagir para alcançar situações anteriores à data de sua vigência. Por consequência, necessária a absolvição para tais casos.
Pois bem, em que pese a divergência doutrinária, e até mesmo nos Tribunais, este é o entendimento prevalecente firmado pelo STF:
PROCESSO-CRIME - FICÇÃO JURÍDICA - INTERPRETAÇÃO DE NORMAS. As normas que encerram ficção jurídica, equiparando cidadãos, hão de ser interpretadas de forma estrita. NORMA PENAL - DEFINIÇÃO DO AGENTE. NATUREZA. A norma há de ser tomada como exaustiva, conflitando com o sistema pátrio revelador do Direito Penal concluir, sob o ângulo da definição do agente, que lei nova apenas veio a explicitar o que implícito na primitiva. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - ARTIGO 327 DO CÓDIGO PENAL. A equiparação a servidor público de quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da administração pública somente ocorreu com a vigência da Lei nº 9.983/2000, sendo descabido entender-se implícita a abrangência do preceito, considerada a redação primitiva, no que alcançados os servidores públicos e os exercentes de cargo, emprego ou função em entidade paraestatal.
(HC 83830, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 09/03/2004, DJ 30-04-2004 PP-00051 EMENT VOL-02149-09 PP-01740)
CONCUSSÃO. HOSPITAL PARTICULAR CONVENIADO COM O SUS. EQUIPARAÇÃO ESTABELECIDA PELO ART. 327 DO CP NA REDAÇÃO DA LEI 9.983/00. 1. A equiparação em questão somente produz efeitos em relação a fatos típicos ocorridos posteriormente ao advento da Lei 9.983/00. Normas que encerram ficção jurídica, equiparando cidadãos, hão de ser interpretadas de forma estrita. Precedente: HC 83.830. 2. Habeas corpus deferido para trancar a ação penal.
(HC 87227, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 21/03/2006, DJ 20-04-2006 PP-00037 EMENT VOL-02229-02 PP-00246 LEXSTF v. 28, n. 330, 2006, p. 478-481)
Aliás, no âmbito do STJ, até recentemente, tem sido necessária a sua participação na firmação da tese, verbis:
PENAL. HABEAS CORPUS. CONCUSSÃO. FUNCIONÁRIO DE ENTIDADE HOSPITALAR PRIVADA CONVENIADA AO SUS. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. CONCEITO. CONDUTA ANTERIOR À LEI Nº 9.983/00.
1. O conceito legal de funcionário público, para fins penais, não alcança quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública, se a conduta é anterior à vigência da Lei nº 9.983/00, sob pena de violar o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal.
2. Ordem concedida.
(HC 115.179/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 06/04/2009)
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. CONCUSSÃO. MÉDICO CREDENCIADO AO SUS. EQUIPARAÇÃO A FUNCIONÁRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. ATO PRATICADO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N. 9.983/2000. IRRETROATIVIDADE. ENUNCIADO 83/STJ. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA REDAÇÃO ANTERIOR. INADMISSIBILIDADE.
1. Pacificou-se nesta Corte o entendimento de que a Lei n. 9.983/2000 não pode retroceder para equiparar a funcionário público médico credenciado ao SUS, sendo atípica a conduta praticada antes de sua vigência. Enunciado n. 83/STJ.
2. O Supremo Tribunal Federal consignou que não se pode equiparar cidadãos com base em interpretação extensiva da redação original do § 1º do art. 327 do Código Penal, pois o caráter excepcional das ficções legais exige a sua interpretação restritiva.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 1101423/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 06/11/2012, DJe 14/11/2012)
Do inteiro teor do acórdão acima retira-se o seguinte excerto para melhor elucidar a questão: “Registre-se, por fim, a improcedência do argumento de que os médicos credenciados no SUS, mesmo antes da edição da Lei n. 9983/2000, já se enquadravam no conceito de funcionários públicos, por força de ficção legal. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar essa construção teórica, consignou que o caráter excepcional da ficção legal exige a sua interpretação restritiva, sendo impossível, portanto, equiparar cidadãos com base em interpretação extensiva da redação original do § 1º do art. 327 do Código Penal.”
Nesse sentido, a ampliação do conceito de funcionário público por equiparação promovida pela Lei 9.983/2000 não pode retroagir para abarcar situações pretéritas à sua vigência.
A ficção legal, portanto, por ter cunho excepcional, somente poderia ser interpretada estritamente, sendo imperioso o reconhecimento da atipicidade, com a conseqüente absolvição, para os casos que se enquadrem nesta situação.
Notas
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 415.
[2] CUNHA JR., Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2012, p. 222.
[3] Art. 5º, XL, CF: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”