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A globalização e a mitigação dos direitos sociais

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Agenda 02/09/2019 às 21:05

Paira sobre todos uma visão desconcertante a respeito de um futuro cada vez mais incerto e obscuro, nitidamente desigual, competitivo e brutal, onde os pobres ficam mais pobres e os ricos mais ricos. Haveria ferramenta hábil para conter os reflexos perniciosos da globalização?

RESUMO. O presente artigo tem como finalidade analisar se, e como, o atual fenômeno da globalização está fomentando o aumento da desigualdade social e se existem ferramentas hábeis para enfrentar a questão envolvendo a mitigação dos direitos sociais em face do enfraquecimento do estado.

Palavras-Chave. Direito constitucional. Globalização. Desigualdade social. Direitos sociais.

SUMÁRIO. 1. DAS NOTAS INTRODUTÓRIAS. 2. GLOBALIZAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL. A FORÇA DO PODER ECONOMICO. 3. DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS.


1. DAS NOTAS INTRODUTÓRIAS.

É notório que o estado moderno, a par dos efeitos nocivos da globalização, vem adotando uma postura mais flexível em face da proteção social destinada à sua população, principalmente às camadas mais pobres e marginalizadas.

Visando analisar a relação entre os efeitos nocivos da globalização e a mitigação dos direitos sociais, é necessário buscar compreender o verdadeiro significado do termo globalização, que pode ser conceituado como um conjunto de fenômenos surgidos no final do século passado e associados ao fim do socialismo, ao surgimento e expansão de empresas transnacionais, à internacionalização do capital financeiro, à descentralização dos processos de produção, aos avanços tecnológicos e ao enfraquecimento dos estados nacionais e que tem como um de seus efeitos principais a formação de uma sociedade mundial[1].

O fenômeno em questão provocou a reformulação estrutural dos estados modernos, provocando, além das consequências pretendidas a respeito de um mercado global, consequências negativas, atingindo a economia dos países menos desenvolvidos, provocando um aumento drástico da desigualdade social, alavancando o abismo já existente entre ricos e pobres.


2. GLOBALIZAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL: A FORÇA DO PODER ECONÔMICO.

O fenômeno da globalização é um processo mundial  ainda em curso, dinâmico e mutável, dotado de poderes que promovem o rompimento de barreiras e limites territoriais dos países, desvinculando as relações sociais, econômicas, políticas e culturais do espaço geográfico. Não há barreiras terrestres para os seus efeitos e os estados mais fracos deste jogo, a cada dia, perdem a sua autonomia frente ao poder do mercado global, deixando de lado a população mais carente e acarretando o aprofundamento das desigualdades sociais[2].

Retratanto a perversidade dos efeitos promovidos pela globalização, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman destaca que:

Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E, no entanto, os efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós tornam-se plena e verdadeiramente ‘globais’; alguns se fixam na sua ‘localidade’ – transe que não é nem agradável nem suportável num mundo em que os “globais” dão o tom e fazem as regras do jogo da vida. [3]

A formação de uma sociedade mundial está, por sua vez, provocando a diminuição da proteção dos Estados no tocante à manutenção e à preservação dos direitos sociais e, neste sentido, o professor Antonio Carlos Gomes Ferreira[4] aponta que o Estado deixou de exercer o seu papel como verdadeiro “estado social”, esclarecendo que restou ao Estado tão somente a função de organizar uma sociedade de consumidores e que, por seu turno, criminaliza a miséria, fomentando a exclusão social e controlando penalmente a pobreza. Neste sentido e analisando as funções básicas do estado moderno, Alvar Peris destaca que:

Neste mundo globalizado, o Estado-nação está preso em uma rede de interdependência global que o incapacita em muitas ocasiões para cumprir as suas funções básicas, sem recorrer à cooperação internacional (...) O declínio do Estado-nação, diz Hardt e Negri (2002), é um processo estrutural e irreversível. É inegável, portanto, que a globalização, com as transformações econômicas, políticas e sociais que estão associados, está ameaçando parte da legitimidade e da soberania dos Estados-nação. (Tradução nossa) [5]

Os efeitos da nova política capitalista mundial promovida pelos detentores do poder econômico estão provocando a fragilização das estruturas sociais, tudo como instrumento ardil para o ajustamento fiscal destinado ao fortalecimento e à estabilidade de uma economia globalizada, que busca auferir lucros para as empresas transnacionais, diminuindo o poder financeiro e a autonomia política dos estados que passam, por consequência, a buscar políticas de contenção e redução de gastos, ultimando a retirada, supressão e redução de direitos sociais, demonstrando força capaz de transformar o estado moderno, tornando-o cada vez mais “mínimo” e, neste sentido, o professor Antonio Carlos Gomes Ferreira aponta que:

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Assim, há uma desconstrução do modelo anterior (produção em massa) e da configuração do Welfare State nos países centrais, enquanto que, nos países periféricos, temos a implantação de uma “estratégia de abertura e desregulação econômica com vistas a uma transnacionalização radical dos centros de decisão e das estruturas econômicas. [6]

A globalização ora vivenciada, renascida no final do século passado em virtude das transformações sociais, econômicas, políticas e tecnológicas, pode, ainda, ser entendida como um novo regime de acumulação de capital e fomentador do desequilíbrio social e, neste aspecto, o professor português Boaventura de Souza Santos arremata:

Um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, a dessocialização do capital, libertando-o dos vinculos sociais e políticos que no passado garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu todo à lei do  valor, no pressuposto de que toda atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma de mercado. A consequencia principal desta dupla trasformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das oportunidades produzidos pela globalização neoliberal no interior do sistema mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais entre países ricos e pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país. [7]

Na análise do enfraquecimento do papel dos países na defesa e manutenção das políticas públicas, Flávia Piovesan[8] destaca que é vital que os países passem a adotar uma postura mais responsável acerca da implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais e, ainda, aponta que a desigualdade social vem sendo agravada pelos efeitos da globalização, com o aprofundamento da pobreza e da exclusão social. [9]

Visando demonstrar, categoricamente, a relação entre o aumento da desigualdade e o fenômeno da globalização, o professor Antonio Carlos Gomes Ferreira[10] destaca que a desigualdade de classes encontra-se cada vez mais latente, vez que as novas oligarquias, buscando enfrentar a crise do capital do final do século passado e, ao mesmo tempo, impor a retomada de sua lucratividade, estão promovendo o enfraquecimento do Estado e o retrocesso dos direitos sociais dos trabalhadores. Neste sentido e destacando que os detentores do poder econômico não estão preocupados com o aumento da desigualdade social, ele diz:

A proposta neoliberal, que busca favorecer o crescimento da economia capitalista, flexibiliza e fragmenta o trabalho, aumentando o desemprego e acirrando as desigualdades sociais, pois os detentores do poderio econômico, na busca pela expansão do mercado e aumento de seus dividendos, são alheios aos interesses nacionais e, portanto, insensíveis à fração da população excluída desse processo pelo aprofundamento do abismo entre ricos e pobres. [11]

E, nesta linha de pensamento, tendo como pano de fundo o aumento da desigualdade social, Boaventura de Souza Santos destaca que:

O aumento das desigualdades tem sido tão acelerado e tão grande que é adequado ver as últimas décadas como uma revolta das elites contra as redistribuições da riqueza com a qual se põe fim ao período de certa democratização da riqueza iniciado no final da segunda guerra mundial. (...). Os valores dos três mais ricos bilionários do mundo excedem a soma do produto interno bruto de todos os países menos desenvolvidos do mundo onde vivem 600 milhões de pessoas. [12]           

Na linha deste raciocionio, o economista brasileiro, Ladislau Dowbor[13], nas suas reflexões sobre o “Capital do Século XXI”, destaca que os estudos econômicos buscam analisar apenas a produção de bens e serviços, ignorando qualquer discussão a respeito de temas mais importantes, como o estudo dos mecanismos que aumentam ou reduzem a desigualdade, ao ponto de se tornar incontestável o fato de que uma centena de pessoas possuem mais riqueza do que metade da população mundial e que um bilhão de pessoas estão passando fome.

O quadro traçado por Dowbor demonstra que quase dois terços da população do planeta permanecem sem acesso aos benefícios da globalização, dois bilhões de pessoas vivem com menos de dois dólares por dia, outro um bilhão vive com menos de 1,25 dólar por dia, fora os avultantes números envolvendo a fome e a falta de água limpa.

De acordo com Ladislau Dowbor[14], o nosso planeta está sendo administrado em prol de uma pequena minoria, através dos mecanismos promovidos pelo mercado global, levando-se em consideração tão somente a produção e o consumo, aumentando a desigualdade e destruindo o meio ambiente.

No estudo da relação existente entre globalização e desigualdade social, o professor Antonio Carlos Gomes Ferreira aponta, ainda, que aquele fenômeno está provocando a concentração de riqueza na mão de poucos e, neste aspecto, diz:

O fato é que a globalização trouxe profundos impactos nas relações sociais, concentrando ainda mais a riqueza gerada no sistema e aumentando a marginalização e a exclusão social. Os 20% mais ricos da população mundial dispõem de uma renda 82 vezes maior que a dos 20% mais pobres, sendo que dos seis bilhões de habitantes do planeta, apenas 500 milhões vivem na fartura, enquanto 5,5 bilhões continuam a passar necessidades. [15]

A globalização não afeta tão somente os grandes sistemas, os países, as sociedades e as comunidades em geral, tendo em vista que os seus efeitos são irradiados para a vida cotidiada de todos nós e, neste sentido, o sociológo britânico Anthony Giddens destaca que:

É um erro pensar que a globalização só diz respeito aos grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não é apenas mais uma coisa que anda por ai, remota e afastada do indivíduo. É também um fenômeno interior, que influencia aspectos íntimos e pessoais das nossas vidas. [16]

  Os benefícios da globalização não são vistos pelas classes mais desfavorecidas e pobres, bem como pelos países do terceiro mundo, fato notório pelo sistemático agravamento da desigualdade social vivida nas últimas décadas, incluindo, no Brasil, como em outros países, desenvolvidos ou não, o aumento gradativo do desemprego, o perecimento das instituições públicas, a mudança do destino do capital e a política de redução dos direitos sociais, tudo vinculado ao novo fenômeno mundial.

  O novo modelo social promovido pela globalização é extremamente excludente, fortalecendo a intolerância e o ressentimento com os estranhos, potencializando a segregação, de qualquer forma e origem, racial, étnica, religiosa ou sexual. O sociólogo Zigmunt Bauman, ao discorrer sobre a origem da intolerância, esclarece que:

A garantia de segurança tende a se configurar na ausência de vizinhos com pensamentos, atitudes e aparência diferentes. A uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da conformidade é a intolerância. Numa localidade homogênea é extremamente difícil adquirir as qualidades de caráter e habilidades necessárias para lidar com a diferença humana e situações de incerteza; e na ausência dessas habilidades e qualidades é facílimo temer o outro, simplesmente por ser outro. [17]

 A sobrevivência, em um mundo globalizado, onde os Estados perderam parte de sua força e de sua autonomia na defesa dos Direitos Humanos, passou a ser o elemento crucial para o aumento da segregação das pessoas, afastando-se da sociedade as pessoas mais pobres.

Os Estados perderam o controle do fluxo financeiro e, por este motivo, foram obrigados a mudar as políticas sociais, provocando a diminuição dos direitos básicos das pessoas, adotando-se, cada vez mais, o posicionamento destinado a se tornar um “Estado Mínimo”. Dentro desta visão, o sociólogo Zigmunt Bauman preleciona que:

No cabaré da globalização, o Estado passa por um strip-tease e no final o espetáculo é deixado apenas as necessidades básicas: seu poder de repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para as mega-empresas (...)Estados fracos são precisamente o que a Nova ordem Mundial, com muita frequência encarada como suspeita como uma nova desordem mundial, precisa para sustentar-se e reproduzir-se. Quase-Estados, Estados Fracos podem ser facilmente reduzidos ao (útil) papel de distritos policiais locais que garantem o nível médio de ordem necessário para a realização de negócios, mas não precisam ser temidos como freios eletivos a liberdade das empresas globais. [18]

Ao tratar da crise mundial e de seus efeitos, Manuel Castell busca demonstrar que, em um mundo globalizado, dentro da baixa proteção social promovida pelos Estados, o que importa é a a patente demonstração da utilidade humana, isto é, o que interessa, para a sociedade mundial, é a possibilidade de se tornar produtor ou consumidor e qualquer outra coisa que foge a isto, são postas de lado, transformando milhares e milhares de pessoas em excluídos dentro do novo sistema social. [19]

Ademais, a figura de um estado enfraquecido, por força dos efeitos nefastos das forças do capitalismo mundial, que visa a obtenção de lucros a qualquer custo, se presta tão somente a preservar e assegurar a segurança jurídica em prol do capital e de sua mobilidade mundial, fato que, por si, fomenta o crescimento da exclusão e das mazelas sociais[20].

No Brasil, em face dos efeitos provenientes da globalização e dos novos avanços tecnológicos, houve uma mudança drástica no processo de interação entre pessoas e culturas, formando-se um movimento de integração e, ao lado deste movimento, de forma negativa, aumentou a incidência de manifestações de intolerância, racismo, discriminação e preconceito.

O agravamento das crises econômicas, o aumento do desemprego e das migrações em massa da força de trabalho e o grande contingente de refugiados são fatores que estão fomentando a intolerância de “uns” contra os “outros”. A latente vulnerabilidade econômica-social está sendo fomentada pelos efeitos perniciosos da globalização que, por sua vez, acarreta a vulnerabilidade dos direitos civis e políticos. Neste diapasão, Flávia Piovesan, diz:

O processo de violação dos Direitos Humanos alcança prioritariamente os grupos sociais vulneráveis, como as mulheres, as populações afrodescendentes e os povos indígenas -  daí os fenômenos da "feminização" e etnicização” da pobreza.  A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da exclusão[21].

No Brasil, de acordo com os dados estampados na Síntese de Indicadores 2015[22] (IBGE), os negros e os pardos são os grupos mais atingidos pela desigualdade social, tanto que os negros, dentro da pirâmide de estratificação social brasileira, estão presentes nos níveis mais baixos da pobreza e que há uma pequena, quase irrisória, mobilidade social.

No estudo a respeito das desigualdades social e racial, o sociólogo brasileiro Ivair Augusto Alves dos Santos aponta que:

Evidencia a presença de negros nos estratos inferiores da hierarquia social brasileira.  Entre os pobres os negros são aqueles que recebem os mais baixos salários e alcançam níveis inferiores de escolaridade.  A desigualdade racial está no núcleo, no coração do que se costuma chamar de "naturalização da desigualdade". Os números mostram que a desigualdade racial está misturada com a desigualdade social.  Existe uma sobrerrepresentação da pobreza. Do total da população brasileira, 54,6% são brancos, 40% são pardos e 5,4% são pretos.  Somando pretos e pardos como população negra, o total é 45,4%.  Sabemos que cerca de 53 milhões de pessoas são pobres,  34% da população é pobre.  Se a pobreza fosse democraticamente distribuída, 54% desses 53 milhões de pobres seriam brancos e só o restante seria negro.  Mas dentro da população pobre, os negros são maioria:  64% dos pobres são negros,  enquanto 36% dos pobres são brancos.  Os negros são 70% dos indigentes.  É possível dizer que a pobreza tem cor e a pobreza no Brasil é negra. [23]

É necessário e vital ao bem da humanidade e ao futuro de todos a busca incessante pela proteção e manutenção dos direitos sociais como forma de enfrentamento da exclusão social que está sendo fomentada pelos impactos da globalização.

Sobre o autor
Samir Vicente Ribeiro Blagitz

Delegado de Polícia do Estado de Minas Gerais, com atuação profissional na área de Poços de Caldas, aluno do curso de mestrado em Direito Constitucional na FDSM Pouso Alegre, formado em Direito na Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI) e formado em letras na faculdade Cesumar.

Informações sobre o texto

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