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As guardas civis: um dilema na gestão municipal

Agenda 01/10/2019 às 15:00

O gestor municipal deve ter a consciência que o discurso de utilização da guarda no combate ao crime não contribui com o pacto federativo e só transfere a responsabilidade dos Estados aos municípios.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 no artigo 144 § 8º estabelece que “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. (grifo nosso).

Observa-se que a Carta Magna delimita a atuação das Guardas Civis em zelar pelos bens, serviços e instalações do município e nada mais.

Entretanto, o Governo Federal, em 2014, sancionou lei de iniciativa do Legislativo, dispondo sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais. A Lei nº 13.022/2014 instituiu normas gerais sobre guardas civis municipais, porém, em determinados pontos do mencionando diploma legal, o legislador infraconstitucional inova e vai além do limitar do § 8º do artigo 144 da Constituição, conferindo atribuições de natureza de patrulhamento (função dos policiais militares) e solução de crimes (função da polícia judiciária).

O artigo 3º deste diploma legal define os princípios mínimos das guardas municipais, indicando os eixos de atuação:

DOS PRINCÍPIOS

Art. 3º São princípios mínimos de atuação das guardas municipais:

I - proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas;

II - preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas;

III - patrulhamento preventivo;

IV - compromisso com a evolução social da comunidade; e

V - uso progressivo da força.

Pela leitura dos incisos do artigo 3º da Lei nº 13.022/2014, os princípios mínimos das guardas municipais confere a este órgão municipal um caráter de corporação engajada na manutenção da paz social. Os incisos III e V devem ser analisados no contexto de manutenção da paz referente à proteção aos bens, serviços e instalações no âmbito municipal, sendo que interpretação mais ampla destes princípios gera conflito com o § 8º do artigo 144 da Constituição.

Cumpre destacar que a proteção definida no § 8º do artigo 144 da Constituição refere-se à zeladoria do município, ou seja, à proteção ao patrimônio municipal, pois se contrário fosse à vontade do legislador constituinte originário, teria definido a guarda municipal como órgão de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas.  

Assim, entendo ser constitucional o artigo 3º do Estatuto Geral das Guardas Municipais, pois estes princípios estão alicerçados no conceito do Estado Democrático de Direito do artigo 1º da Carta Magna[1] e nos fundamentos federativos da cidadania e dignidade da pessoa humana.

Portanto, desde que voltado à proteção dos bens, serviços e instalações, dentro do território dos municípios, com a finalidade de manutenção da paz social, os princípios mínimos deste dispositivo legal não afrontam a Constituição Federal.

Porém, o artigo 5º desta Lei, que define as competências específicas, inova de forma a atribuir às guardas municipais competências em desacordo com a Constituição Federal.

Destarte, a meu ver, sem a pretensão de esgotar o tema, e respeitando entendimento contrário, percebo que os seguintes incisos do art. 5º do Estatuto Geral das Guardas não guardam consonância temática com a vontade do legislador constituinte:

Esses dispositivos, claramente, versam sobre atividade policial e de organização de combate e prevenção à proteção de pessoas, desta forma, fugindo completamente da finalidade constitucional da guarda municipal e, mesmo fazendo uma interpretação extensiva dos incisos, não há como classificar esses dispositivos como de manutenção da paz no que tange à proteção dos bens municipais.

E, ainda, jamais, evidentemente, podemos equiparar pessoas a bens, portanto, há uma limitação constitucional nas atribuições das guardas municipais.

Os demais incisos do artigo 5º do Estatuto Geral das Guardas Municipais estão em consonância com a finalidade constitucional das guardas, fazendo ressalvas aos seguintes dispositivos, que entendo ser constitucional, mas faltou melhor técnica legislativa na redação, visando proteger a manutenção da paz referente à proteção aos bens, serviços e instalações no âmbito municipal:

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Os mencionados incisos têm mais caráter de proteção aos bens, serviços (estatual e paraestatal) e instalações no âmbito municipal do que atividade de segurança pública, sendo assim, a expressão segurança está voltada aos bens e serviços.

Sendo assim, entendo que em relação a esses dispositivos é latente a inconstitucionalidade. Porém, noto que o Estatuto Geral das Guardas Municipais é norma geral, cabendo aos municípios legislar sobre organização da corporação, conforme sua realidade administrativa e orçamentária. Alerto que sua criação é facultativa e a competência quanto à criação e organização é de iniciativa do executivo municipal.


DA ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E ORÇAMENTÁRIA DAS GUARDAS CIVIS MUNICIPAIS.

O Estatuto Geral das Guardas Municipais define percentual máximo de efetivo das guardas através de faixas populacionais. Entendo que este limitador é louvável, pois evita a criação de corporações com excesso de servidores, além de impedir os discursos eleitoreiros do tipo “há necessidade do aumento do efetivo da corporação”.

Entretanto, embora haja o limitador através de faixas populacionais, os gestores municipais, na criação das guardas e no aperfeiçoamento das corporações já existentes, devem observar outros requisitos, a saber: a dimensão territorial e a capacidade orçamentária de manutenção da corporação.

No Brasil temos municípios com densidade demográfica bastante acentuada, principalmente nas regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro, desta forma, o gestor municipal deve verificar a quantidade ideal para a proteção dos bens, serviços e instalações municipais.

A capacidade orçamentária é elemento basilar que, obrigatoriamente, deve ser observado pelos municípios com limitação orçamentária. Para estes municípios a solução é consorciar-se com cidades limítrofes, conforme dispõe do Art. 8º Lei nº 13.022/2014 ou manter estrutura pequena que não comprometa o orçamento municipal, pois o custo para manutenção da corporação é alto (uniforme, coletes, adicional noturno entre outros).

A capacitação dos membros das guardas municipais deve ser permanente, porém, terminantemente, sem caracterizar atividade militar. A capacitação deve ser pautada na proteção dos serviços e bens municipais, com fundamento nos direitos humanos e no exercício da cidadania.

Embora a Lei Geral das Guardas Municipais autorize a criação de órgão de formação, treinamento e aperfeiçoamento dos servidores da guarda municipal, tal expediente é oneroso, portanto, os municípios devem analisar, com extrema cautela, a criação de órgão de formação. Desta forma, a meu ver, o ideal é a parceria com universidades e a utilização dos próprios membros da corporação para realização dos treinamentos.

Referente à carreira dos membros das guardas municipais cumpre destacar que a Lei nº 13.022/2014 não trouxe obrigatoriedade de instituição de plano de cargos e salários, devendo os municípios, através de lei, com os devidos estudos de impacto orçamentário e previdenciário, criar estrutura de cargos condizentes com a realidade financeira do município e jamais ter como base estrutura de outras cidades com diferente realidade econômica.


CONCLUSÃO

A guarda municipal é corporação que contribui no fortalecimento dos serviços públicos de qualidade. A proteção dos serviços e instalações municipais devem ser as matrizes da atuação da corporação e a militarização deve ser afastada.

O gestor municipal deve ter a consciência que o discurso de utilização da guarda no combate ao crime não contribui com o pacto federativo e só transfere a responsabilidade dos Estados aos municípios.

A estrutura hierárquica da guarda municipal não precisa ter aparência de força policial. Podem-se criar cargos burocráticos como técnicos administrativos, atendentes e telefonistas para evitar que o cargo de natureza efetiva de proteção aos bens, serviços e instalações (o guarda municipal propriamente dito) realize atividade estranha a essas atribuições.

Assim sendo, as guardas municipais não fazem parte do sistema de combate a crimes e possui natureza de zeladoria, o que não é nenhum menosprezo.

Ainda, a meu ver, as atividades de defesa civil são condizentes com os fundamentos da guarda municipal e entendo que devem estar inseridas no mesmo sistema, consequentemente, contribuindo para a proteção dos bens e instalações dos mais diversos tipos existentes no município.


Nota

[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

Sobre o autor
Marcelo Silva Souza

Advogado e Consultor Jurídico, especialista em Direito Administrativo, especialista em Direito Constitucional, especialista em Gestão Pública. Exerceu o cargo de Secretário de Administração de Louveira. Atuou como Professor de Direito Administrativo na Fundação Santo André - SP. Exerceu o cargo de Chefe do Setor de Contrato e Convênio da Prefeitura de Várzea Paulista. Atuou como Assessor Jurídico da Prefeitura de Vinhedo. Foi Presidente da Comissão Municipal de Licitações da Prefeitura de Vinhedo. Exerceu o cargo de Assessor Executivo de gabinete da Prefeitura de Santo Antônio de Posse. Atuou como Diretor Jurídico da Autarquia de água e esgoto de Vinhedo – SANEBAVI. Atuou como Diretor Geral da Câmara Municipal de Louveira. Exerceu, ainda, o cargo de Diretor de Licitações, Contratos e Suprimentos da Prefeitura de Cajamar. Ministra palestra sobre Assessoria Parlamentar, Licitações e Contratos e outros temas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Marcelo Silva. As guardas civis: um dilema na gestão municipal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5935, 1 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76371. Acesso em: 21 nov. 2024.

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