RESUMO
O presente artigo visa a destacar o importante papel do amicus curiae no aperfeiçoamento dos processos de controle de constitucionalidade.
Amicus curiae é termo de origem latina que significa "amigo da corte". Diz respeito a uma pessoa, entidade ou órgão com profundo interesse em uma questão jurídica levada à discussão junto ao Poder Judiciário. Originalmente, o amicus é amigo da corte e não das partes, uma vez que se insere no processo como um terceiro, que não os litigantes iniciais, movido por um interesse maior que o das partes envolvidas inicialmente no processo. Instituído pelas leis romanas, foi plenamente desenvolvido na Inglaterra pela English Common Law e, atualmente, é aplicado com grande ênfase nos Estados Unidos. Seu papel é servir como fonte de conhecimento em assuntos inusitados, inéditos, difíceis ou controversos, ampliando a discussão antes da decisão dos juízes da corte. A função histórica do amicus curiae é chamar a atenção da corte para fatos ou circunstâncias que poderiam não ser notados.
A manifestação do amicus curiae usualmente se faz na forma de uma coletânea de citações de casos relevantes para o julgamento, artigos produzidos por profissionais jurídicos, informações fáticas, experiências jurídicas, sociais, políticas, argumentos suplementares, pesquisa legal extensiva que contenham aparatos corroboradores para maior embasamento da decisão pela Corte Suprema. O objetivo do amicus é trazer um leque de informações adicionais prévias que possam auxiliar na discussão antes da decisão final.
Diante de todo o exposto, pretende-se demonstrar que o amicus traz o enriquecimento ao debate sobre a inconstitucionalidade ou constitucionalidade da lei ou ato normativo através do maior número de argumentos possíveis e necessários ao julgamento, sob o ponto de vista das mais diversas categorias de profissionais, exercendo o controle de constitucionalidade, seguro e eficaz, com base no aperfeiçoamento do processo no controle de constitucionalidade.
1. INTRODUÇÃO
Como decidir se é justa a pena de morte ou se o aborto deve ser permitido? Como compreender a repercussão econômica, social ou moral de uma decisão judicial? E como antever quais os reflexos dessas decisões?
Na República Irlandesa o aborto é considerado um pecado mesmo que a mãe esteja em risco de vida. Por outro lado, na China é um dever moral para o bem do controle populacional. Se for como admite o filósofo grego Protágoras, que o homem é a medida de todas as coisas, então nossas crenças e nossas decisões são nossa responsabilidade (Fearn, 2001). Se não se recebe mais tábuas da verdade enviadas por um Deus, então, uma sociedade organizada necessita de diálogo e reflexão crítica na construção das leis que a regem.
2. O CONCEITO DE AMICUS CURIAE
Amicus curiae, termo latino que significa "amigo da corte", refere-se a uma pessoa, entidade ou órgão, com profundo interesse em uma questão jurídica, na qual se envolve como um terceiro, que não os litigantes, movido por um interesse maior que o das partes envolvidas no processo. O amicus é amigo da corte e não das partes. Originado de leis romanas, foi plenamente desenvolvido na Inglaterra pela English Common Law e, atualmente, é aplicado com grande ênfase nos Estados Unidos (EUA). Seu papel é servir como fonte de conhecimento em assuntos inusitados, inéditos, difíceis ou controversos, ampliando a discussão antes da decisão dos juízes da corte. A função histórica do amicus curiae é chamar a atenção da corte para fatos ou circunstâncias que poderiam não ser notados.
Por esse instrumento, o amicus apresenta um documento ou memorial, informando à Corte Suprema sobre determinado assunto polêmico de relevante interesse social, objeto de julgamento. Tem como objetivo não favorecer uma das partes, mas dar suporte fático e jurídico à questão sub judice, enfatizando os efeitos dessa questão na sociedade, na economia, na indústria, no meio ambiente, ou em quaisquer outras áreas onde essa discussão possa causar influências.
3. A FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA DO AMICUS CURIAE
A figura do amicus curiae já se encontra prevista no ordenamento jurídico brasileiro desde 1976 (Nogueira, 2004). A Lei nº 6385/76, nos termos de seu art. 31, dispôs sobre a legitimidade de uma autarquia federal, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), para interposição de recursos. No mesmo sentido, a Lei nº 8.884/94 previu a intervenção de autarquia federal, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), para, se quiser, intervir como assistente, desde que intimado. A partir de 1999 o amicus curiae passou a ser discutido com maior ênfase, pois, a Lei 9.868/99 veio dispor sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
Apesar de estar disposto no art. 7º da Lei nº 9.868 a inadmissibilidade da intervenção de terceiro, cumpre advertir que tal vedação sofre a exceção expressa no parágrafo 2º, no qual consagra a figura do amicus curiae, in verbis:
Art. 7º. (...)
Parágrafo 2º. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
4. A NATUREZA JURÍDICA DO AMICUS CURIAE
A natureza jurídica do amicus curiae é questão ainda controversa para os doutrinadores. Para Athos Gusmão Carneiro (citado por NOGUEIRA, 2004), o amicus seria uma espécie de intervenção atípica. Edgard Silveira Bueno Filho, por sua vez, caracteriza o amicus como uma espécie de assistência ou "assistência qualificada". Para o Gustavo Nogueira, o amicus "é uma nova modalidade de interevenção de terceiros", pois "ingressa em processo alheio para defender uma tese jurídica, não a pretensão de uma das partes, que lhe interessa, em especial porque as decisões tendem a ter efeito vinculante, e o faz em nome de interesses institucionais."
O Supremo Tribunal Federal com o voto do Relator Ministro Celso de Melo, na ADI 748 AgR/RS, do dia 18 de novembro de 1994, decidiu que não se trata de intervenção de terceiros e sim um colaborador informal da Corte.
Para Fredie Didier Jr. (2003) o amicus "é o auxiliar do juizo, com a finalidade de aprimorar ainda mais as decisões proferidas pelo Poder Judiciário" pois "reconhece-se que o magistrado não detém, por vezes, conhecimentos necessários e suficientes para a prestação da melhor e mais adequada tutela jurisdicional".
Entre nós, data venia, no art. 50 do Código de Processo Civil a figura da assistência se refere à interveniência de terceiro no processo, manifestando seu interesse jurídico em que a sentença seja favorável a uma das partes. Ora, o amicus curiae, como já mencionado anteriormente, é o amigo da Corte e não das partes, seu interesse é na questão jurídica em debate entre os litigantes e não no sentido da sentença ser favorável a um deles. O interesse do amicus é, regra geral, em relação à defesa de tese jurídica e não de uma das partes. O fato de ser usual que o amicus se interesse por um determinado resultado, não o faz abandonar suas características tradicionais de ser o amigo da corte. O amicus curiae é um instrumento de ampliação e de aperfeiçoamento dos debates, pois irá enriquecer a discussão com o maior número de argumentos possíveis e necessários ao julgamento, dando maior suporte aos membros da Corte encarregados de proferir a decisão.
6. A IMPORTÂNCIA DO AMICUS CURIAE
Em um mundo moderno, cada vez mais complexo, às vezes até mesmo caótico, as questões legais tendem a se tornar cada vez mais intricadas. Na antigüidade um filósofo entendia desde matemática, astronomia até de política e poesia. Já no mundo moderno o conhecimento é distribuído por especialistas diversos, dada sua vastidão. Esse conhecimento todo, por outro lado, não pode ser desprezado nas decisões judiciais, em que questões relevantes para toda a sociedade possam estar em jogo. A importância do amicus curiae tende a ser hoje maior do que já foi no passado.
Nos EUA pôde-se observar, em poucas décadas, um nítido aumento do número de amicus briefs [01] utilizados nos processos. Na Suprema Corte do Estado de Washington, uma pesquisa realizada entre 1960 e 2000 mostrou o seguinte resultado: em 1960 apenas 6.5% das ações continham amicus briefs; já no ano 2000, em 27% das ações houve a manifestação do mesmo instrumento (Overstreet, 2001). Na Suprema Corte Americana, onde o número de amicus briefs é mais prevalente, estes estiveram presentes em mais de 90% dos casos no final da década de noventa (Foggan & Dancey, 2004).
7. PERSPECTIVAS FUTURAS: ANTEVENDO PROBLEMAS
O crescimento dramático da participação de amicus curiae no direito norte americano suscitou diversos questionamentos sobre sua utilidade (Foggan & Dancey, 2004). A proliferação de memoriais que acrescentam nada ao processo fez com que surgissem regulamentações mais restritivas quanto a admissão de amicus briefs (memoriais de amicus) nos EUA.
Em 1990, por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos foi inundada com 78 memoriais de amicus num caso de direito ao aborto. Foi notado que diversos desses memoriais estavam sendo produzidos ou financiados pelos advogados das partes litigantes, entretanto, a participação destes era omitida nos briefs. Para tentar corrigir esses problemas, a Suprema Corte dos Estados Unidos (EUA) passou a exigir que fosse explicitado se uma das partes participou como autora do memorial no todo ou em parte e, além disso, que fossem também identificados todos aqueles que contribuíram financeiramente para a preparação do memorial (Regra nº 37.6 do Regimento Interno da Suprema Corte dos Estados Unidos).
Outro problema dos memoriais de amicus nos EUA é a freqüência com que eles apenas duplicam os argumentos dos litigantes sem acrescentar realmente algo de novo ao processo. Na Suprema Corte dos EUA esses memoriais são restritos a trinta páginas, devem ser concisos e bem organizados (Regra nº 33.1 do Regimento Interno da Suprema Corte dos Estados Unidos). A Regra Federal de Procedimentos de Apelação Norte Americana agora também requer que esteja expresso no memorial do amicus a razão pela qual esse memorial é desejável e porque os argumentos propostos são relevantes para o caso em julgamento; requer também que o amicus seja propriamente identificado, assim como seu interesse no caso e qual sua representatividade. É importante que existam regras claras para a admissão do memorial do amicus. A título de exemplo, a não admissão dos quatro memoriais no caso de habeas corpus de Mumia Abu-Jamal nos EUA pelo Juiz Willian H. Yohn suscitou fortes reações de seus advogados que criticaram sua atitude como sendo parcial e caprichosa [02].
Bueno Filho (2002) considera, adequadamente, que o próprio amicus deva ser criterioso a fim de que sua participação não sirva apenas para procrastinar a decisão judicial. Entretanto, presumir que o amicus seja sempre tão criterioso pode não ser uma atitude realista. A título de exemplo, vale a pena lembrar o que aconteceu no Brasil com Ação Civil Pública (ACP). Instituída pela Lei 7.347/85 e constitucionalmente prevista como uma das funções institucionais do Ministério Público, no art. 129, III da Constituição de 1988, a ACP é o instrumento adequado para responsabilização por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, protegendo, assim, os interesses difusos e coletivos da sociedade. O alcance da ACP foi ainda mais estendido com a publicação de leis posteriores para a defesa de deficientes físicos, da ordem econômica, de crianças e adolescentes. Entretanto, o uso generalizado e indiscriminado da ACP para toda e qualquer situação, trouxe um danoso efeito colateral: a sobrecarga do sistema jurídico. A generalização do uso da ACP sem que se obedeça a sua real finalidade acarreta menor eficiência do funcionamento da justiça.
A rigor, observa-se que a utilização indiscriminada de qualquer instituto jurídico obriga o Estado a tomar medidas no sentido de restringir sua aplicabilidade como, por exemplo, limitando seu campo de incidência. A ACP teve seu campo de proteção limitado por imposição dos tribunais superiores. O Supremo Tribunal Federal, verbi gratia, veda o uso da ACP na discussão de matéria tributária e, além disso, também veda seu uso como instrumento de controle de constitucionalidade com eficácia erga omnes. Essa limitação também foi imposta ao mandado de segurança, quando do seu uso generalizado acarretou ao legislador ordinário a imposição de inúmeras restrições legais comprometendo a natureza da própria ação mandamental.
Com base nesses precedentes, pode-se inferir que o mesmo venha a acontecer com o amicus curiae. Observando a experiência americana e com o intuito de buscar um avanço ao ordenamento jurídico sem ter que passar pelas situações decorridas nos EUA, haverá necessidade de maior discussão sobre o campo de atuação do amicus. Isto é, seria prudente que o legislador ordinário pudesse estabelecer os critérios de sua proteção com o fim precípuo de se evitar o uso generalizado e imprudente do amicus, evitando, assim, debilitar sua aplicabilidade.
8. A LEGITIMIDADE PARA A PROPOSITURA DO AMICUS CURIAE
Da leitura do art. 7º, parágrafo 2º da Lei 9.868/99 cumpre advertir que o legislador ordinário concedeu a legitimidade para as entidades elencadas no rol do art. 2º, da referida lei, e também a "outros órgãos ou entidades", que deverão manifestar sobre seu interesse jurídico e não puramente econômico. A entidade é a associação de pessoas que representa o interesse comum de determinada categoria com atividades profissionais idênticas. Também podem ingressar como amicus curiae os titulares de legitimidade para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade elencados no art.103 da Constituição da República. Assim também, a Lei n 10.259/2001 que dispõe sobre os Juizados Federais, prevê no art.14, § 7 a intervenção de eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo.
9. O MEMORIAL DO AMICUS CURIAE
A preparação de um memorial de amicus em geral envolve uma extensiva pesquisa jurídica (Standler, 2004). Um memorial eficaz deve ser sucinto, objetivo e capaz de explicar a repercussão do tema na sociedade. E, desse modo, pode ser um importante instrumento auxiliar no processo de decisão.
9.1 Da terminologia
Na língua inglesa, o documento preparado pelo amicus é designado pelo termo amicus brief (documento do amigo). Na literatura jurídica brasileira o termo memorial tem sido usado para se referir a esse documento. Apesar de não se tratar propriamente de memórias, mas de um texto de caráter informativo, esse termo designa uma petição escrita, nesse caso, encaminhada à corte pelo amicus curiae.
9.2 Dos requisitos para a admissão
Como se deduz do art. 7º, parágrafo 2º, os requisitos são: a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes. Do cumprimento desses requisitos, o relator admitirá o amicus curiae através da manifestação de entidades ou órgãos.
A relevância da matéria seria o nexo de importância do assunto debatido e a atividade exercida pela instituição, ou seja, quando a lei ou ato impugnado tiver interesse de acordo com a atividade pela entidade desenvolvida. Por representatividade dos postulantes, o legislador ordinário quis enfatizar a necessidade de ser a entidade ou órgão representado por advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A fortiori, com a promulgação da CR/88, encontra-se positivado no art. 133 que o advogado é essencial à administração da Justiça e, além disso, a Lei 8.906, de 04 de julho de 1994, em seu art. 1º, inc. I disciplina que é atividade privativa da advocacia a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário. A representatividade é importante não só pela fundamentação legal e constitucional, mas para que o amicus curiae tenha a possibilidade de uma postulação técnica, exercendo sua manifestação de forma paritária com as demais partes durante o processo.
Tais requisitos necessitam estar claramente expostos, uma vez que à falta de um deles levará a inadmissibilidade do amicus curiae por despacho do qual não caiba qualquer recurso.
A admissibilidade do amicus curiae pelo relator pode se dar a qualquer momento antes do julgamento da lei ou ato normativo impugnado. Contudo, sua manifestação lhe será vedada nos atos já realizados, perfeitos e acabados, uma vez que receberá o processo no estado em que se encontra.
9.3 Do procedimento de interposição
O memorial do amicus curiae será submetido ao relator em duas fases no processo: na primeira fase a entidade ou órgão deverá requerer a sua admissão no processo e na segunda fase, após sua admissão, apresentará suas razões. Na prática, o pedido de admissibilidade e as razões são interpostos em conjunto.
A rigor, a Lei 9.868/99 não dispõe expressamente sobre o prazo de manifestação do amicus curiae, mas, analogicamente, pode-se basear no parágrafo único do art. 6º, in verbis:
Art. 6º. (...)
Parágrafo único. As informações serão prestadas no prazo de trinta dias contado do recebimento do pedido.
A manifestação do amicus curiae se resumirá em uma coletânea de citações de casos relevantes para o julgamento, artigos produzidos por profissionais jurídicos, informações fáticas, experiências jurídicas, sociais, políticas, argumentos suplementares, pesquisa legal extensiva que contenham aparatos corroboradores para maior embasamento da decisão pela Corte Suprema.
9.4 Da pluralidade dos memoriais – amici
Se, diante de um debate sobre a inconstitucionalidade ou constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição da República, a decisão que vier a ser proferida for de relevante interesse para mais de uma entidade ou órgão, caberá a pluralidade de amicus curiae, sendo esta denominada de amici.
Disso resulta que, as diferentes entidades ou órgãos poderão trazer à colação aos autos suas manifestações de forma a pluralizar o debate constitucional, disponibilizando o máximo de elementos informativos possíveis e necessários à decisão final.
Cumpre advertir que a Lei 9.868/99 não consagra expressamente a figura do amici, contudo, se a finalidade é ampliar a discussão, nada mais viável que a admissão desse importante instrumento de aperfeiçoamento do processo.