Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A violência doméstica como violação dos direitos humanos

Exibindo página 1 de 5

SUMÁRIO: I. INTRODUÇÃO. 2. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO OBSTÁCULO À FRUIÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 2.1. Os direitos humanos fundamentais. 2.2 A proteção aos direitos humanos segundo a Constituição de 1988. 2.3. Evolução histórica da vitimologia. 2.4. A vitimologia e os direitos humanos caminham juntos. 2.5. A vítima no sistema penal brasileiro. 2.6. Vitimização e sobrevitimização. 3. VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 3.1. A Violência. 3.2. Conceito de Violência de gênero. 3.3. Conceito de Violência doméstica. 4. A VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA: BERÇO DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE. 4.1. A importância da família na formação do ser humano. 4.2. Infância vítima de violência. 4.3 A violência doméstica como uma das causas da violência na sociedade. 5. A CIDADANIA DA VÍTIMA DOS DELITOS DOMÉSTICOS.5.1. A cidadania. 5.2. A cidadania das mulheres vítimas de crimes domésticos e de gênero. 5.3 Perfil da mulher vítima de crimes domésticos. 5.4. Perfil do agressor. 5. ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO NO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 5.1. O poder público frente à problemática da violência de gênero e doméstica 5.2. O papel das Delegacias da Mulher no Brasil 5.3. O papel dos Centros de Apoio às vítimas de crimes 5.4. Metodologia de atendimento pelos Centros de Apoio 5.5 Dados estatísticos sobre violência doméstica na América Latina 6. A JUSTIÇA PENAL CONSENSUADA 6.1. Direito Comparado 6.2. Modelo brasileiro de justiça penal consensuada 6.3. A Lei n. 10.886/2004 7. A LEI N. 9.099/95 E OS JUIZADOS ESPECIAIS 7.1. Breve histórico sobre a criação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil 7.2. O modelo de justiça criminal adotado no Brasil e os Juizados Especiais 8. BIBLIOGRAFIA.


1. INTRODUÇÃO

            A violência doméstica é um dos mais graves problemas a serem enfrentados pela sociedade contemporânea. É uma forma de violência que não obedece a fronteiras, princípios ou leis. Ocorre diariamente no Brasil e em outros países apesar de existirem inúmeros mecanismos constitucionais de proteção aos direitos humanos.

            Por essa razão, em 17 de junho de 2004, foi sancionada a lei n. 10.886/04, acrescentando um novo tipo ao artigo 129 do Código Penal – a violência doméstica, como meio de conter o avanço dessa manifestação de violência na família.

            Apesar de a Constituição Federal de 1988 ter incluído entre seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, o direito penal e processual penal pátrios ainda se preocupam em demasia com o crime e com o criminoso, deixando de lado quem mais necessita de assistência e apoio: a vítima.

            A Vitimologia contemporânea tem apresentado propostas para assegurar o direito fundamental à vida e à integridade física da vítima penal. Exemplo disso são os programas de assistência às vítimas de crime, mudanças legislativas que valorizem a atuação da vítima na justiça criminal e a criação de instrumentos jurídicos que assegurem a reparação do dano, no plano civil e penal. Com base em seus fundamentos foram criados em todo o Brasil os Centros de Apoio às Vítimas de Crimes - instituição que visa a reestruturar a vítima de crime e sua família, para o retorno ao convívio social, fornecendo apoio assistencial, psicológico e jurídico, metodologia e organização que veremos com vagar mais adiante.

            Preocupadas com as estatísticas alarmantes da ocorrência dos delitos domésticos, instituições públicas e organizações não-governamentais discutem o problema e tentam contribuir para a minimização dos efeitos avassaladores que a violência na família acarreta aos seres humanos, especialmente mulheres e crianças.

            Os dados são alarmantes. Em 1984, a Espanha registrou 16.070 denúncias de maus tratos encaminhadas à polícia. Segundo o Ministério do Interior, cada ano se apresenta no País uma média de 18.000 a 20.000 denúncias por maus tratos físicos e psíquicos a mulheres e estes números representam apenas 10% do total de casos que se produzem anualmente na Espanha. Isto significa uma cifra negativa de mais de 200.000 agressões silenciadas. [01]

            Os países árabes, a exemplo da Arábia Saudita em que a religião muçulmana impõe uma série de restrições à fruição dos direitos fundamentais pelas mulheres, no mês de abril de 2004, divulgou através do jornal Arab News fotos da agressão sofrida pela apresentadora da TV saudita Rania al-Braz, que sofreu 13 fraturas e foi hospitalizada após ser brutalmente espancada por seu esposo; isso demonstra que até os países árabes já começaram a se preocupar com a repressão da violência doméstica. [02] Segundo informações colhidas na revista francesa L’Express, que divulgou a notícia na França, o agressor será processado por tentativa de homicídio.

            No Brasil a situação não é diferente. Apesar de não haver estatísticas oficiais, algumas organizações não-governamentais de apoio às mulheres e crianças vítimas de maus tratos apresentam números assustadores da violência doméstica. Segundo relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a questão da violência contra a mulher, em 1993, mais de 70% de todos os casos denunciados de violência contra a mulher ocorrem no lar. [03] Estima-se que a cada 4 (quatro) minutos uma mulher seja vítima de violência doméstica [04]. Em São Paulo, os dados das Delegacias Especializadas demonstram que, em 84,3% dos casos de delitos domésticos, as vítimas são do sexo feminino. Dos 849 inquéritos policiais em instaurados na 1.ª e 3.ª Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo, entre 1988 e 1992, 81,5% se referem a lesões corporais dolosas. [05]

            A situação se repete em outras capitais. Apesar disso, o Brasil ainda caminha a passos lentos na busca de soluções para enfrentar o problema. Alguns fatores contribuem para o aumento da impunidade: a) por ocorrer no seio familiar, esse é um tipo de violência que é difícil de ser diagnosticado; b) não existem estatísticas oficiais precisas para demonstrar as causas do problema; c) as políticas públicas desenvolvidas até agora têm se mostrado insuficientes para evitar ou minimizar o sofrimento das vítimas da violência; d) a legislação brasileira ainda e preocupa demasiadamente com o réu em detrimento da vítima.

            Em recente pesquisa realizada pelo Alô Senado em 27 capitais brasileiras, constatou-se que 17% das entrevistadas reconheceram já ter sofrido algum tipo de violência doméstica, desse total, 54% afirmaram ter sofrido violência física, seguida da violência psicológica (24%), violência moral (14%) e 7% assumiram ter sofrido violência sexual doméstica. Constatou-se também que 4 em cada 10 mulheres afirmaram já ter presenciado algum tipo de violência contra outras mulheres. Deste total, 80% foram descritas como violências físicas [06].

            A violência doméstica atinge milhares de mulheres e crianças todos os dias no Brasil e no Mundo. São alvo tanto as vítimas diretas como as crianças que presenciam agressões entre seus genitores.

            Os números alarmantes relativos à violência doméstica levaram à Organização Mundial de Saúde a reconhecer a gravidade que o fenômeno representa para a saúde pública e recomendar a necessidade de efetivação de campanhas nacionais de alerta e prevenção.

            Um dos maiores desafios da democracia brasileira é o de criar condições para que todos os cidadãos tenham efetivamente os mesmos direitos, as mesmas garantias e as mesmas oportunidades de participar da construção do país.

            Porém, as estatísticas demonstram que, no Brasil, a perspectiva universalista de igualdade de direitos não tem se mostrado suficiente para que o ordenamento jurídico assegure a equidade desejada entre homens, mulheres, brancos, índios e negros. O problema está na desigualdade social e econômica cujas conseqüências levam à prática da violência doméstica e outras violações aos direitos fundamentais.

            Tal desigualdade está estampada nos dados sócio-econômicos da sociedade brasileira. Quando considerados à luz de indicadores como raça/étnica e gênero, essas diferenças ganham novos contornos e as desigualdades são ampliadas, sobretudo quando se observa a situação de grupos historicamente excluídos, de que são exemplos as mulheres negras e as indígenas.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

            Diante desse cenário, para que ocorra a efetivação da equidade social e de gênero, torna-se necessário conciliar o princípio universalista da igualdade com o reconhecimento das necessidades específicas de grupos historicamente excluídos e culturalmente discriminados.

            Ao analisar 83 processos que tramitaram entre 1984 e 1989 em varas criminais e no Tribunal do Júri no Fórum Regional de Santo Amaro, em São Paulo, WÂNIA PASINATO IZUMINO, concluiu que:

            As estatísticas sobre o perfil dos vitimados por violência são eloqüentes a respeito do maior grau de insegurança doméstica para a população feminina, a porcentagem de mulheres atacadas por parentes e conhecidos é significativamente maior do que aquela agredida por estranhos (esta tendência se inverte no caso masculino). Na maioria dos casos o local da ocorrência é a residência da vitima. [07]

            No plano internacional, o Brasil é parte signatária de tratados e convenções internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos. Isso não impede a existência de violações que precisam ser prevenidas e reprimidas mediante a ação ordenada do Poder Público.

            Nesse sentido, a Recomendação Geral n. 19/92, intitulada "A violência contra a mulher", aprovada pelo Comitê que monitora a CEDAW, [08] dispõe que a definição de discriminação contra a mulher, prevista no art. 1.º da Convenção, inclui a violência baseada no sexo, a violência perpetrada por autoridades públicas e por quaisquer pessoas, organizações, e que os Estados também podem ser responsáveis por atos privados se não adotarem medidas com a devida diligência para impedir a violação dos direitos ou para investigar e castigar os atos de violência e indenizar as vítimas. [09]

            Procurar-se-á neste artigo que os direitos humanos das mulheres, no âmbito da legislação brasileira, devem ser considerados na perspectiva da discriminação e da violência. Discriminação e violência são partes de um mesmo binômio, como faces da mesma moeda. Discriminação e violência se retro-alimentam na medida em que a discriminação das mulheres (a prática da exclusão) justifica as agressões (a prática da violência) e vice-versa.

            No Brasil a violência contra a mulher não encontra limites de idade, condição social, etnia e religião. Suas manifestações são variadas e muitas encontram fortes raízes culturais. Entre as formas mais freqüentes pode-se destacar as agressões físicas, sexuais e de caráter emocional.

            Embora atos de violência contra a mulher ocorram em todas as esferas da vida social, seja pública (assédio moral e sexual), ou privada (violência doméstica), as práticas que adquiriram maior visibilidade social são aquelas que ocorrem dentro de casa.

            A violência doméstica é um fenômeno perverso que afeta mulheres, crianças e idosos com sérias conseqüências não só para o seu pleno desenvolvimento, mas também comprometendo o exercício da cidadania e dos direitos humanos.

            O Brasil que se quer é o Brasil de todos e para todos, sem exclusões. Um país onde a batalha para a erradicação da pobreza saiba atribuir a necessária prioridade à dimensão de gênero. Um país onde não exista um enorme conjunto de mulheres cuja existência se traduz, no cotidiano, na mais dura imagem da pobreza, da doença, da carência, da marginalização social e da violência. Um país onde não se tolere a violência doméstica.


2. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO OBSTÁCULO À FRUIÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

            2.1. Os direitos humanos fundamentais

            O Direito Internacional dos Direitos Humanos é recente na história contemporânea, tendo surgido no Pós-Guerra como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo. É naquele cenário que se desenvolve o esforço de reconstrução dos direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea.

            Uma das principais preocupações desse movimento foi converter os direitos humanos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional. Diante da crescente consolidação do positivismo concernente aos direitos humanos, pode-se afirmar que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos invocam, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que celebram o consenso internacional acerca de temas centrais à dignidade humana.

            O processo de universalização dos direitos humanos propiciou a formação de um sistema normativo internacional de proteção. Fundado no valor da primazia da pessoa humana, esse sistema interage com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e proteção de direitos fundamentais.

            Em 1974, iniciaram-se os trabalhos de elaboração da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher. Em 18 de dezembro de 1979, após cinco anos de intensos trabalhos, com a decisiva participação de mulheres e grupos da sociedade civil, a Assembléia Geral da ONU aprovou, por meio da resolução 34/180, o texto daquela Convenção. Em setembro de 1981, com o deposito o vigésimo instrumento de ratificação, a Convenção entrou em vigor.

            A Convenção impõe aos Estados-Partes uma dupla obrigação: eliminar a discriminação e assegurar a igualdade. A Convenção, portanto, consagra duas vertentes fundamentais: a vertente repressiva-punitiva (proibição da discriminação) e a vertente positiva-promocional (promoção da igualdade).

            Essa convenção foi ratificada pelo Brasil em 1984. Trata-se do instrumento internacional de direitos humanos que mais recebeu reservas pelos Estados. O Estado brasileiro formulou 15 reservas que só foram eliminadas em 1994, quando a convenção foi integralmente ratificada.

            A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significou mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Estado para a concretização da democracia.

            ANTONIO LUÑO [10] entende que:

            los derechos fundamentales aparecem, por tanto, como la fase más avanzada del proceso de positivación de los derechos naturales en los textos constitucionales del Estado de Derecho, proceso que tendría su punto intermedio de conexión en los derechos humanos.

            O Estado brasileiro também ratificou relevantes tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, sendo exemplos: a Convenção Americana de Direitos Humanos "Pacto de San José da Costa Rica", em 25 de janeiro de 1992 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher "Convenção de Belém do Pará",em 27 de novembro de 1995 que endossam o dever de assegurar a igualdade e proibir a discriminação, a fim de que se alcance o pleno exercício dos direitos humanos.

            Modernamente, a doutrina apresenta a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos.

            Manoel Gonçalves Ferreira Filho conclui que "a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, completaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade". [11]

            Assim, os direitos humanos fundamentais podem entendidos como o conjunto de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.

            1.2 A proteção aos direitos humanos segundo a Constituição de 1988.

            Rompendo com a ordem jurídica anterior, marcada pelo autoritarismo advindo do regime militar, que perdurou no Brasil de 1964 a 1985, a Constituição brasileira de 1988, no propósito de instaurar a democracia no país e de institucionalizar os direitos humanos, fez uma verdadeira revolução na ordem jurídica nacional, passando a ser o marco fundamental da abertura do Estado brasileiro ao regime democrático e da normatividade internacional de proteção aos direitos humanos.

            Para Dino Pasini [12]:

            "La concepción de los derechos del hombre es uma concepción histórica, dinámica que implica el progresivo reconocimiento, el respecto y la tutela jurídica del hombre considerado en su integridad como individuo y persona irrepetible, como ciudadano y como trabajador y, por tanto, no sólo de los derechos personales... de los derechos civiles y políticos... sino también de los derechos económicos-sociales y culturales.

            A Carta de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental (art. 1.º, III), instituindo, com esse princípio, um novo valor que confere suporte axiológico a todo o sistema jurídico e que deve ser sempre levado em conta, quando se trata de interpretar qualquer das normas constantes do ordenamento jurídico nacional.

            No que concerne às declarações adotadas pelo Brasil, citam-se como exemplos: Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20/11/1959; a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de abuso de poder; a Declaração de Pequim, adotada pela quarta Conferência Mundial sobre Mulheres: ação sobre igualdade, desenvolvimento e paz, de 1995, entre outras.

            Apesar de existirem leis, declarações e tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, sabe-se que constantemente são violados. Quando um ser humano, seja criança, adolescente ou mulher é vítima de violência doméstica os pilares de sustentação da justiça são fortemente abalados.

            Norberto Bobbio, [13] corroborando esse entendimento, diz que:

            El problema que se nos apresente, em efecto, no es filosófico, sino jurídico y, em sentido más amplio, político. No se trata tanto de saber cuáles y cuántos son estos derechos, cuál es su naturaleza y su fundamento, si son derechos naturales o históricos, absolutos o relativos, sino cual es el modo más seguro para garantizarlos, para impedir que, a pesar de las declaraciones solemnes, sean continuamente violados.

            O Constituinte de 1988 seguindo tendência mundial demonstrou preocupação de indenizar a vítima de crime pelo dano sofrido, quando no artigo 245 disse que "A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito". Foi o primeiro passo para a instituição de políticas públicas voltadas para o atendimento às vítimas no Brasil.

            2.3. Evolução histórica da vitimologia

            Foram três fases da historia da vitimologia. A primeira, a fase da vingança privada e da justiça privada, do protagonismo da vítima ou sua idade do ouro; a segunda, fase em que a vítima, marginalizada, ficou em segundo plano, ou fase de neutralização e finalmente a fase atual, do seu redescobrimento.

            O período da vingança privada certamente marcou a civilização. A vingança, como resposta à agressão, consistia geralmente na imposição ao algoz de males físicos, da tomada de seus bens materiais ou até à morte.

            Com o surgimento das organizações sociais, percebeu-se que não interessava mais a vingança sem limites. Surge, então o Direito Penal como matéria de ordem pública, a partir do Estado Moderno. Deste ponto em diante, o Estado chama para si a responsabilidade da administração da justiça, passando a ser o detentor exclusivo do Direito de Punir. Nesse segundo momento na história da Vitimologia, tem-se a fase da neutralização, em que é notório o enfraquecimento da vítima.

            A denominada fase do redescobrimento teve início após a Segunda Guerra Mundial. O termo Vitimologia foi primeiramente utilizado pelo advogado israelense Benjamim Mendelson, [14] um dos sobreviventes do holocausto, em conferência no Hospital do Estado, em Bucareste, quando afirmou: um horizonte novo na ciência biopsicossocial: a vitimologia.

            Posteriormente Hans Von Henting começou a escrever sobre a relação criminoso-vítima, demonstrando uma imagem nova do agredido, muito mais realista e dinâmica, como sujeito ativo e não como mero objeto.

            Daí em diante inúmeras obras sobre a vítima foram publicadas, muitas das quais no Brasil. É o momento de redescobrimento do papel da vítima na justiça criminal.

            Em 1979 foi criada a Sociedade Mundial de Vitimologia e em 1984, fundada no Rio de Janeiro a Sociedade Brasileira de Vitimologia. Finalmente, em 1985, na Assembléia Geral da ONU, foi aprovada a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delito e de Abuso de Poder, mesmo ano em que a Sociedade Mundial de Vitimologia foi credenciada como órgão consultivo.

            Muito já foi feito em prol da Vitimologia, mas em época de redescobrimento há que arregaçar as mangas e lutar por dias ainda melhores, em que efetivamente estejam resguardados a cidadania das vítimas e seus direitos fundamentais.

            2.4. A vitimologia e os direitos humanos caminham juntos

            A Vitimologia é um campo multidisciplinar e oferece muito mais do que apenas uma coleção de estudos sobre vítimas. Inicialmente as pesquisas e abordagens vitimológicas eram ligadas à criminologia, mas agora existem muitas outras possibilidades, conforme se verá.

            Vítimas constituem um poderoso clamor para a consciência atual e debate público e levam à análise da medida do nosso próprio sofrimento e do sofrimento dos outros. É também um escopo para o Movimento de Direitos Humanos.

            Enquanto vítimas de crime freqüentemente têm preocupação com à sua participação no processo, na lei, nas conseqüências e efetividade, as vítimas da opressão e do abuso de poder necessitam e querem proteção e assistência antes de mais nada.

            A vitimologia abrange vários níveis de atuação em diferentes contextos. Pode-se dizer que repousa em um tripé: estudo e pesquisa; mudança da legislação e assistência e proteção à vitima. Cada um desses segmentos é de importância fundamental para uma nova visão do crime e de todo o sistema penal.

            A visão que durante séculos prevaleceu, da importância primordial que deveria ser dada ao crime e ao criminoso, sendo a vítima a grande esquecida no drama criminal, está sendo modificada com abordagem vitimológica da relevância da vítima e da necessidade da sua inclusão no processo de assistência.

            Todo o arcabouço do sistema penal, a começar com a polícia, passando pelo Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e finalmente a execução da pena é calcado quase que exclusivamente na perseguição ao criminoso (nem sempre bem sucedida) e na sua punição (quase sempre falha), deixando fora das preocupações do Estado a vítima, o lesado, o agredido, aquele que sofreu a ofensa e que deve requerer mais atenção.

            A visão vitimológica tem contribuído para modificar este contexto, inclusive apontando medidas extrajudiciais quando cabíveis, que geram diminuição da hostilidade e melhor resolução de conflitos. Muitos países de várias partes do mundo, inclusive do continente americano, já estão adiantados na prática da aplicação conceitual, na modificação das leis e principalmente na criação de centros de proteção e atendimentos às vítimas.

            A atenção à vítima engloba, portanto, o estudo e a pesquisa, para dimensionar e conhecer melhor o objetivo, a adaptação da legislação a uma nova abordagem.

            Algumas dessas ações, já implantadas com sucesso no Brasil, incluem o programa de intervenção em crises, a compensação, a restituição, o ressarcimento do dano, a assistência médica, psicológica e jurídica que prevê o acompanhamento tanto na mediação, como no processo criminal ou cível quando instaurado.

            As Nações Unidas têm se preocupado com a questão das vítimas, tendo aprovado, com o voto do Brasil, a Declaração dos Direitos das Vítimas de Crimes e Abuso de Poder, em Assembléia Geral no Congresso de Prevenção de Crime e Tratamento de Delinqüente em Milão, na Itália em 1985, ratificado em 1986.

            O campo dos direitos humanos, pode oferecer uma concepção mais ampla de vitimização e direito das vítimas. Pode também ajudar a melhor conceituar a vitimização definida como criminal, comparativamente às não consideradas criminais, apesar de seus efeitos danosos.

            O enfoque nos direitos humanos pode ajudar a examinar as fontes de vitimização e a relação entre causas do crime e causas da opressão. A opressão produz as condições primordiais para os crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Uma análise do ponto de vista dos direitos humanos é detectar as condições adversas, políticas, sociais e econômicas provocadas da vitimização.

            A vitimologia é ciência que estuda vítimas – não somente vítimas de crime, mas vítimas em geral; os direitos humanos darão uma visão de vítimas antes ignorada. Para a vitimologia atual, promover direitos das vítimas depende de promover direitos humanos em geral. Por essa perspectiva, os direitos humanos internacionais oferecem um novo alento para as vítimas e a vitimologia.

            Em contrapartida a vitimologia oferece instrumental para o estudo científico de direitos humanos, que abrange mais direitos qualitativamente e quantitativamente, sendo que a vitimologia tem mais profundidade e produziu uma série de teorias e metodologias que podem fundamentar a compreensão da opressão, seus aspectos, causas, impactos e soluções.

            Também é sabido que as vitimas de crime enquanto vitimizadas fazem parte do leque de necessitados do país e acrescentam às estatísticas negativas da desigualdade social. Logo, a preocupação com a assistência às vítimas é necessária à diminuição às grandes desigualdades sociais existentes no país. Uma boa assistência fará com que a pessoa vitimizada deixe rapidamente essa condição e volte a contribuir para o crescimento do país.

            2.5. A vítima no sistema penal brasileiro

            O sistema penal brasileiro disseminou o discurso da ressocialização do agente, encampando a idéia de que o tratamento da vítima não é problema seu. As vítimas reivindicam, na verdade, o que realmente querem, é ajuda e proteção eficazes. Quando constatam a ineficácia do sistema penal em lhes prestar a assistência de que necessitam, muitas vezes procuram em outras fontes.

            Entretanto, como o apelo do sistema penal é ainda extremamente sedutor, essa lacuna muitas vezes tende a desaguar em demandas por mais criminalização, na medida em que o sistema penal cria e reproduz a idéia – aliás, totalmente fantasiosa, de que pode dar às vítimas a ajuda e a proteção que elas, com razão, reclamam.

            A partir desse tipo de consciência é que, na esfera do direito comparado e internacional, existe uma preocupação real com a valorização da vítima, de forma especial em relação à vítima mulher, no tocante à violência de gênero.

            Ainda hoje a vítima ocupa, no sistema penal, uma posição de desvantagem. Seus interesses são relegados a um plano absolutamente secundário. Seu papel é, basicamente, o de testemunha, ou seja, uma ferramenta utilizada para que se alcance resultado que o sistema almeja.

            A Carta Política de 1988 assegurou proteção específica à vítima, ao contrário do que ocorreu com a figura do criminoso. Exceção é o art. 245 que prevê a obrigação de o erário reparar os danos causados às vítimas. Todavia, tal previsão depende da criação de lei específica, que até o momento não foi editada.

            No Brasil ainda prevalece o preconceito e o desrespeito por parte da sociedade com relação à vítima. A vítima é considerada, na maioria das vezes e pela maioria das pessoas, a causadora do crime.

            Aos poucos, o Estado brasileiro vem se conscientizando do seu papel de proteção e amparo às vítimas de crimes. As Leis 9.099/95 e 9.714/98 são exemplos da preocupação dos legisladores penais com a vítima de crime. Infelizmente, essas leis não são suficientes para protegê-las do jugo da violência e do preconceito da sociedade.

            2.6. Vitimização e sobrevitimização

            Enquadrada a vítima no contexto do sistema penal vigente, cumpre abordar o que se denominou sobrevitimização no processo penal – vitimização secundária, ou seja, o dano adicional à vítima que advém do funcionamento do sistema.

            A vítima não sofre apenas o fato punível em si mesmo. Sofre também danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos, gerados pela reações formais e informais decorrentes do fato. O que a vítima mais espera é por justiça e muitas vezes a justiça tarda e falha.

            Na opinião do autor Louk Hulsman [15] após sua experiência em alguns serviços de atendimento às vítimas, principalmente no Tribunal de Paris, a maioria delas não menciona que espécie de repressão ou retribuição deseja, nem muito menos se quer reparação. Não demonstram também desejo de vingança, mas tão somente querem ser ouvidas, querem falar do seu prejuízo na esperança de, ao fazê-lo, cessar o que lhe incomoda, reencontrando a paz.

            No curso do processo penal sente-se desprestigiada, mero instrumento a serviço de um sistema que não a considera. Quase sempre não compreende o procedimento legal, que habitualmente não lhe é esclarecido. Sente-se vexada por se ver obrigada a narrar os fatos por mais de uma vez (na polícia e em juízo, no mínimo). É constrangida, nas audiências de instrução e julgamento, a deparar-se com o agente. Sente-se freqüentemente como a verdadeira acusada, e constata, inúmeras vezes, que o dano sofrido ficou sem reparação.

            A maioria das pessoas que se sentem vitimizadas ou ameaçadas no contexto de uma situação criminalizável está sempre mais preocupada com a possibilidade de ver-se ressarcida, ajudada ou protegida – ou as três coisas – que com a punição do autor do fato que a atingiu. Por isso é importantíssimo situar a vítima e seus anseios no sistema penal brasileiro e a atuação do Estado na implementação de políticas compensatórias é imprescindível.

            No tocante à violência doméstica e contra a mulher se observa que há por parte das vítimas a busca de apoio moral, psicológico e material. Geralmente em face das relações afetivas que envolvem os conflitos domésticos, não há a intenção de a vítima punir o agressor.

            A realidade de sobrevitimização não restou alterada com o advento da Lei n. 9.099/95, que instalou os Juizados Especiais Criminais no Brasil. Ostentando um discurso de reinserção da vítima no contexto do sistema criminal, ante a possibilidade de composição civil dos danos e a ampliação dos casos de representação criminal, incluindo-se nesse rol as lesões leves, a lei não oferece opções de enfrentamento produtivo do conflito doméstico.

Sobre a autora
Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti

promotora de Justiça em Maceió (AL), mestra em direito público pela Ufal, autora do livro "Violência Doméstica contra a mulher: análise da lei Maria da Penha"

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares Farias. A violência doméstica como violação dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 901, 21 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7753. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!