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Abortamento de feto anencefálico e a inexigibilidade de conduta diversa.

A influência das circunstâncias concomitantes no comportamento humano

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Agenda 01/02/2006 às 00:00

            Antes de adentrarmos no cerne da questão, agradecemos a colaboração de Cibele Olegário Vianna (USP – COREN n. 04327/04 – Enfermeira de pesquisa clínica do Hospital do Câncer de Barretos – SP) e Aldo Benjamim Rodrigues Barbosa (FMTM – CRM n. 106771 – Radiologista - pós-graduado em Radiologia pelo Hospital Albert Einsten), que nos ajudaram a entender a anencefalia sob a angulação médica.


1. INTRODUÇÃO.

            A questão do abortamento de feto com anencefalia vem gerando controvérsia em diversos setores da sociedade, precipuamente ante o fato de estar na iminência de ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54.

            Diante de tantos embates em torno do tema, o autor, incentivado por diversos colegas, que também são amantes do Direito Penal, vem, por meio deste modesto trabalho, apontar soluções e esclarecer dúvidas a respeito do abortamento em caso de anencefalia.

            Procuraremos, divergindo de grandes e respeitados estudiosos do Direito Penal, argumentar no sentido de que a saída para o abortamento em casos de anencefalia não está na tipicidade (para alguns na tipicidade material), ante a ausência de risco proibido. Não se pode justificar o abortamento por ser o produto da concepção um condenado à morte (o que realmente é). O risco criado, indubitavelmente, é proibido. A vida está presente, apesar de ser inviável.

            Na verdade, nobre leitor, é na culpabilidade que encontraremos uma saída satisfatória para os casos de interrupção da gestação em casos de anencefalia, como se verá adiante.


2. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

            Tal tópico se faz necessário ante a grande confusão criada, principalmente no meio jurídico, entre os conceitos de anencefalia, encéfalo e morte encefálica.

            Anatomicamente falando, encéfalo é a parte do sistema nervoso central, contida dentro do crânio central, e que abrange o cérebro (telencéfalo e diencéfalo), o cerebelo, a protuberância e o bulbo raquiano.

            A respeito do que seja encéfalo vale conferir os ensinamentos do professor Angelo Machado (in Neuroanatomia Funcional. Livraria Atheneu. 1987. Pág. 11):

            "Encéfalo é a parte do sistema nervoso central situada dentro do crânio neural. (...). No encéfalo, temos cérebro, cerebelo e tronco encefálico".

            Através de uma singela interpretação dos conceitos expostos pode-se concluir que o cérebro é apenas uma parte integrante do encéfalo.

            Outro conceito de suma importância para o presente trabalho é o de anencefalia.

            O termo anencefalia pode ser definido como "un defecto em el desarrollo del cerebro que se caracteriza por la ausencia de hemisférios cerebrales y de lãs cavidades superyacentes del craneo". (National Information Clearinghouse for the infans with Disabilities and life-threatning conditions, 1996 apud Problemas Derivados de la exigencia de morte encefalia en la donación y transplante de órganos referencia a la situacion de anencefalia del donante, UVRS, v. 32, n. 84, 1999, p. 48).

            "A anencefalia é uma patologia congênita que afeta a configuração encefálica e dos ossos do crânio que rodeiam a cabeça. A conseqüência deste problema é um desenvolvimento mínimo do encéfalo, o qual com freqüência apresenta uma ausência parcial ou total do cérebro (região do encéfalo responsável pelo pensamento, a vista, o ouvido, o tato e os movimentos). A parte posterior do crânio aparece sem fechar e é possível, ademais, que faltem ossos nas regiões laterais e anterior da cabeça". (Retirado do site www.mmhs.com/clinical/peds/spanish/neuro/anenceph, do Martin Memorial).

            Para Maria Helena Diniz (O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva. 2001. Pág. 281), o anencéfalo "pode ser um embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). Como os centros de respiração e circulação sangüínea situam-se no bulbo raquidiano, mantém suas funções vitais, logo o anencéfalo poderá nascer com vida, vindo a falecer horas, dias ou semanas depois".

            Como bem ensinam os doutores Carlos Gherardi e Isabel Kurlat (1) "la anencefalia es una de las alteraciones en la formación del cérebro resultante de la falla en etapas precoces del desarrollo embrionario del mecanismo de cierre del tubo neural llamado de inducción dorsal. La más grave de lãs patologias producidas por esta falla, la Cranioraquisquisis, resulta invariablemente em la muerte fetal precoz. Lê sigue em gravedad la anencefalia que se caracteriza por la falta de los huesos craneanos (frontal, occipital y parietal), hemisférios y la corteza cerebral. El tronco cerebral, y la medula espinal estan corservados aunque em muchos casos la anencefalia se acompanã de defectos em el cierre de la columna vertebral (mielomeningocele). (...). Em la anencefalia la inexistencia de las estructuras cerebrales (hemisférios y corteza) com la sola presencia del tronco cerebral provoca la ausencia de todas las funciones superiores del sistema nervioso central que tienen que com la existência de la conciencia y que implican la cognición, la vida de relación, comunicación, afectividad, emotividad, com la sola preservación, lãs funciones vasomotoras y lãs dependientes de la medula espinal. (...). La anencefalia es el equivalente del EVP en los niños y en ambos casos nunca se cumplen las condiciones de muerte encefálica por ausencia de lésion en el sistema reticular activador del tronco cerebral". (Dres. Carlos Gherardi e Isabel Kurlat. Anencefalia e interrupción del embarazo, análisis médico y bioético de los fallos judiciales a propósito de un caso reciente).

            Embora a condição acima descrita "seja freqüentemente chamada de anencefalia (grego an, sem, mais enkephalos, encéfalo), em geral há a presença de um tronco encefálico rudimentar (medula oblonga, ponte, e mesencéfalo). Por essa razão, meroanencefalia (grego meros, parte), constitui um nome melhor para esta malformação". (Keith L. Moore (in Embriologia Clínica. Editora Guanabara. 1988. Págs. 304/305).

            Depois de conceituarmos anencefalia de acordo com a literatura médica passemos a análise do conceito de morte dentro do âmbito jurídico.

            A Lei 9.434/95 instituiu, em seu artigo 3º (2), o conceito legal de morte como sendo a ausência de atividade encefálica, e não a ausência de atividade cerebral (encéfalo, como bem observado anteriormente, é muito mais que cérebro).

            Há que se observar que a lei de doação de órgãos apesar de conceituar morte como sendo ausência de atividade encefálica, não trouxe os critérios definidores a partir dos quais seria possível constatar a ocorrência de morte encefálica.

            Tais critérios só vieram ser definidos na Portaria 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, que assim dispôs:

            Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias.

            Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia.

            Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca:

            a) ausência de atividade elétrica cerebral ou,

            b) ausência de atividade metabólica cerebral ou,

            c) ausência de perfusão sanguínea cerebral".

            Diante de tudo isso, constata-se que para que haja morte encefálica, necessário se faz a combinação de uma série de circunstâncias que, indubitavelmente, nos casos de anencefalia não se preenche. O feto anencefálico possui atividade motora supra-espinal, uma vez que, apesar de não possuir o cérebro, possui tronco cerebral, de maneira que há a preservação das funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as dependentes da medula espinhal.

            A manutenção da vida extra-uterina de bebês nascidos com anencefalia (meroanencefalia), como bem ensina Keith L. Moore (in Embriologia Clínica. Editora Guanabara. 1988. Pág. 305), é impossível.

            Apesar da vida extra-uterina ser improvável (inviável), há vida, de maneira que tal é tutelada por nossa Constituição. A Constituição Federal em nenhum momento amparou apenas a vida viável. Não cabe argumentar que os artigos do nosso Código Penal apenas tutelaram o bem jurídico vida viável. Mesmo que isso tivesse acontecido tais normas não teriam sido recepcionadas por nossa Constituição Federal.

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3. ANENCEFALIA. FATO TÍPICO OU ATÍPICO. ANÁLISE SOB O PONTO DE VISTA DA MODERNA TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA (CLAUS ROXIN E GÜNTHER JACKOBS) E DO SISTEMA(3) FINALISTA (HANS WELZEL).

            A origem da imputação objetiva repousa nos trabalhos de Karl Larenz (primeiramente introduziu a imputação objetiva no Direito Civil) e Richard Honig (posteriormente introduziu a imputação objetiva no Direito Penal), em 1930. Já a moderna teoria da imputação objetiva é resultado de ampla discussão, sobretudo na Alemanha e na Espanha. Dentre seus expoentes destacam-se: Claus Roxin e Günther Jakobs.

            A regra de ouro da imputação objetiva é a criação ou a incrementação de um risco relevante e proibido (ou seja, risco juridicamente desaprovado – cf. Luís Greco. Um panorama da Teoria da Imputação objetiva. RJ: Lúmen Júris. 2005. Págs. 19 e ss.).

            No dizer do Professor Luiz Flávio Gomes: "A teoria da imputação objetiva consiste basicamente no seguinte: só pode ser responsabilizado penalmente por um fato (leia-se: a um sujeito só pode ser imputado o fato), se ele criou ou incrementou um risco proibido relevante e, ademais, se o resultado jurídico decorreu desse risco". (in Direito Penal – Parte Geral v. II – Teoria do Delito (inédito). Apud Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Responsabilidade Civil. 2ª edição. Volume III. Editora Saraiva. 2004. Pág. 109).

            A Teoria da Imputação Objetiva, bem como a Teoria Constitucionalista do Delito, explica grande parte dos acontecimentos que até então eram inexplicáveis. Porém, no presente caso, não se pode admitir que ela leve a conduta que envolve o abortamento do anencéfalo à atipicidade (ausência de fato materialmente típico).

            De acordo com os defensores da ausência de tipicidade (para alguns material) (4) nos casos de anencefalia, "o risco criado (contra o bem jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente. (...). Aquilo que se causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não é juridicamente imputável ao agente. No aborto anencefálico, não existe uma morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida, aliás,está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito para a tutela de outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade etc.). não se trata, então, de uma morte arbitrária. Por isso que o fato é atípico ". (Luiz Flávio Gomes. Aborto Anencefalia e Imputação Objetiva: Exclusão da Tipicidade (II). Revista Síntese de Direito Penal e Processo Penal n. 33. Pág. 6)

            Ora, nobre leitor, se há vida, mesmo que inviável extrauterinamente, não há como admitir que uma conduta que visa destruí-la seja permitida. A vida, mesmo que inviável, é protegida juridicamente.

            "A Constituição garante a todos os serem humanos, bem ou malformados, sadios ou doentes, o direito à vida desde a concepção, sendo a morte apenas a decorrência natural de sua condição e não a decorrência antecipada de convicções ideológicas". (Ives Gandra da Silva Martins. O Supremo e o homicídio uterino. Artigo publicado no Jornal do Brasil de 15.07.2004).

            Outra parte da doutrina penal (doutrina finalista) procura explicar a questão do abortamento de feto com anencefalia sob o ponto de vista da ausência de tipicidade (entendida como o quarto requisito do fato típico – sistema finalista). Para os defensores desta posição, o feto anencefálico estaria morto (5), nos termos da lei 9.434/95.

            Estando morto, excluída estaria a adequação típica, e conseqüentemente a tipicidade, pois, de acordo com o artigo 17 do Código Penal, não há crime quando o objeto material for absolutamente impróprio.

            Esqueceram-se, os defensores do entendimento supramencionado, de atentar para o artigo 3º da mencionada Lei de Doação de Órgãos que não utilizou o termo morte cerebral, mas sim morte encefálica. Indubitavelmente, o feto com anencefalia não preenche os requisitos necessários á constatação da morte encefálica. Não se pode confundir morte encefálica com morte cerebral.

            Em síntese, não se pode admitir que o abortamento de feto portador de anencefalia seja considerado fato atípico por conta da ausência de risco proibido. A corrente que entende ser o risco criado permitido nos parece inadmissível. Se há vida o risco é proibido. A nossa Constituição Federal, bem como o nosso Código Penal, não amparam somente o bem jurídico vida viável. Também não se pode admitir a atipicidade da conduta tendo em vista estar o produto da concepção morto. O feto com anencefalia possui atividade encefálica, não estando, nos termos dos artigos 1º, 4º e 6º da portaria 1480/1997, morto.


4. ANENCEFALIA E A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA.

            Reinhard Frank, um dos precursores do sistema Neoclássico ou NeoKantista, em 1907, em sua obra Estrutura do conceito de culpabilidade, afirmou que a culpabilidade deveria ser composta por um novo elemento: a exigibilidade de conduta diversa. Esse autor vinculou a culpabilidade à idéia de reprovabilidade, defendendo que em face de um fato criminoso devemos observar as circunstâncias que o acompanham, que denominou "concomitantes" (daí a Teoria da Normalidade das circunstâncias concomitantes). Como poderíamos condenar alguém que agiu exatamente igual qualquer outra pessoa reagiria na mesma situação?

            "Não age culpavelmente – nem deve ser portanto penalmente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso" (Francisco de Assis Toledo. Princípios Básicos de Direito Penal. 3ª edição. Págs. 315/316).

            Como bem ensina o professor Damásio "não há culpabilidade todas as vezes que, tendo em vista as circunstâncias do caso concreto, não se possa exigir do sujeito um conduta diversa daquela por ele cometida. Assim, a exigibilidade de comportamento diverso constitui um dos elementos da culpabilidade, enquanto a não-exigibilidade constitui a razão de algumas causas de exclusão da culpabilidade" (Damásio E. de Jesus. Direito Penal. Parte Geral. Editora Saraiva. 23ª edição. 1999. Pág. 481).

            Para o professor Flávio Augusto Monteiro de Barros "o elemento do juízo de reprovação em análise se justifica por motivos óbvios, haja vista que, por uma questão humanitária e lógica é fácil perceber que, em circunstâncias anormais, o comportamento contrário ao direito não é reprovável quando o agente não podia proceder de outra maneira". (in Direito Penal. Volume 1. São Paulo: Saraiva. 2001).

            Com a introdução deste novo elemento na culpabilidade, Frank deu origem a uma nova teoria, a psicológico-normativa da culpabilidade, uma das bases do sistema neoclássico ou neokantista. A culpabilidade, com isso, passou a ser composta pelos seguintes elementos: imputabilidade, dolo ou culpa(6) e a exigibilidade de conduta diversa.

            A sentença mais famosa e que, pela primeira vez, reconheceu a não-exigibilidade de conduta diversa, foi a que ocorreu na Alemanha declarada pelo Tribunal do Império no caso do cavalo denominado Leinenfanger (cavalo indócil que não obedece às rédeas):

            "O proprietário de um cavalo indócil ordenou ao cocheiro que o montasse e saísse a serviço. O cocheiro, prevendo a possibilidade de um acidente, se o animal disparasse, quis resistir à ordem. O dono o ameaçou de dispensa caso não cumprisse o mandado. O cocheiro, então, obedeceu e, uma vez na rua, o animal tomou-lhe as rédeas e causou lesões em um transeunte. O tribunal alemão absolveu o cocheiro sob o fundamento de que, se houve previsibilidade do evento, não seria justo, todavia, exigir-se outro proceder do agente. Sua recusa em sair com o animal importaria a perda do emprego, logo a pratica da ação perigosa não foi culposa, mercê da inexigibilidade de outro comportamento". (Odin Americano. Da culpabilidade Normativa. Estudos de direito e processo penal em homenagem a Nelson Hungria. RJ-SP: Forense. 1962. Págs. 348/349).

            Vale ressaltar, caro leitor, que por mais previdente que seja o legislador, é absolutamente impossível legislar, expressamente, sobre todas as causas de inexigibilidade de conduta diversa, que devem ser admitidas em direito, pois tais causas são o que de mais próximo há entre o sistema normativo e as constantes evoluções sociais, políticas, culturais e cientificas.

            Assim, é possível a existência de um fato, não previsto pelo legislador como causa de exclusão da culpabilidade, que apresente todos os requisitos da inexigibilidade de outra conduta. Quando, na situação concreta, era inexigível comportamento distinto, não há que se falar em culpabilidade (em reprovabilidade), mesmo que não tenha o legislador previsto expressamente como causa exculpante.

            Nesse sentido ensina o mestre Frederico Marques (Manual de Direito Penal. V. II. Editora Saraiva. Pág. 227):

            "A inexigibilidade de outra conduta pode ser invocada, apesar de não haver texto expresso em lei, como forma genérica de exclusão da culpabilidade, visto que se trata de princípio imanente no sistema penal. Nem se diga que, com isto, haverá uma espécie de amolecimento na repressão e na aplicação das normas punitivas. Quando a conduta não é culpável, a punição é iníqua, pois a ninguém se pune na ausencia de culpa; e afirmar que existe culpa diante da anormalidade do ato volitivo, é verdadeira heresia".

            Esse também é o entendimento de Aníbal Bruno:

            "a não-exigibilidade vale por um princípio geral de exclusão da culpabilidade, que vai além das hipóteses tipificadas no Código e pode funcionar também com este caráter nos casos dolosos em que de fato não seja humanamente exigível, comportamento conforme o Direito". (in A culpabilidade. Revista Pernambucana de Direito Penal e Criminologia. 1954. Pág. 163).

            Para o mestre Francisco de Assis Toledo "a inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui um verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito. (...). Pressuposto desse princípio, segundo J. Godschmidt, é a ‘motivação normal’. O que se quer dizer como isso é que a culpabilidade, para configurar-se, exige uma certa ‘normalidade das circunstâncias’ que cercaram e poderiam ter influído sobre o desenvolvimento do ato volitivo do agente. Na medida em que essas circunstâncias apresentem-se significativamente anormais deve-se suspeitar da presença de anormalidade, também, no ato volitivo". (Ob. cit., págs. 315/317)

            Continua o autor com seus brilhantes ensinamentos: "Segundo raciocínio de Bettiol, ‘... quando se parte do pressuposto de que um comportamento só é culpável na medida em que um sujeito capaz haja previsto e querido o fato lesivo, deve-se necessariamente admitir que tal comportamento já não possa considerar-se culpável todas as vezes em que, por causa de uma circunstância fática, o processo psíquico de representação e de motivação se tenha formado de modo anormal". (Ob. cit., págs. 315/317).

            Também defendem a inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal: Giuseppe Bettiol (Diritto Penale – Parte Generale. Busto Arsizio, G. Priulla Editore. 1945. Págs. 308-311); Goldschmidt (Concepción Normativa de la Culpabilidad. Buenos Aires. Depalma. 1943. Pág. 21, apud Carlos Fontán Balestra. Derecho Penal – Introdución y Parte General. 4ª edição. Buenos Aires. Abeledo-Perrot. 1961. Pág. 338); Edmond Mezger (Diritto Penale – Strafrecht – Padova. Cedam. 1935. Págs. 390-391); Hermínio Alberto Marques Porto (Júri – Procedimento e Aspectos do julgamento – Questionários. 8ª edição. São Paulo. Malheiros Editores. Pág. 332); Damásio E. de Jesus (Direito Penal. Parte Geral. Editora Saraiva. 23ª edição. 1999. Pág. 482); Luiz Flávio Gomes (Direito Penal – Parte Geral e Direito Processo Penal. Apostila do Curso Preparatório para Carreiras Jurídicas. IELF. 2004. Pág. 126); Fernanda Capez (Curso de Direito Penal parte especial. Volume 2. 5ª edição. Editora Saraiva. 2005); Luiz Regis Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte especial – arts. 121 a 183. Volume 2. 4ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 2005. Págs. 122/123); Cezar Roberto Bitencourt (Código Penal Comentado. Editora Saraiva. 3ª edição. 2005. Pág. 438); Guilherme de Souza Nucci. Código Penal Comentado. 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 2002. Pág. 396) e Francisco de Assis do Rego Monteiro Rocha (Caderno de Direito. Curitiba. 1997. Faculdade de Direito de Curitiba. Vol. 3. Págs. 37-38)

            Os nossos Tribunais também tem admitido a inexigibilidade de outra conduta como causa supralegal: TRF 3ª Região (Ap. 96.03.006121-2. 1ª T. vu. DJU 16.9.97. Relator Des. Fed. Sinval Antunes; Ap. 1999..03.99.089529-9-SP. 2ª T. Relatora Desembargadora Federal Sylvia Steiner. J. 5.12.00);TRF 2ª Região (Ap. 1.612-ES. Relator Des. Fed. Paulo Freitas Barata. Vu. DJU 15.09.98); TRF 4ª Região (Ap. 98.04.03996-6-PR. Relator Des. Fed. Fábio Bittencourt da Rosa. Vu. DJU 31.3.99; Ap. 96.04.47654-8/RS. 1ª T. Relator Dês. Fed. José Finocchiaro Sarti. DJ 03.05.2000); TRF 1ª Região (Ap. 1998.38.00.007957-5/MG. Relator Des. Fed. Cândido Ribeiro. 3ª T. DJ de 18.03.2005; ACR 1998.01.00.083147-0/MG. Relatora Desa. Fed. Eliana Calmon. 4ª T. DJ 11.02.00; ACR 2002.01.00.016036-0/MT. Relator Des. Fed. Plauto Ribeiro. 3ª T. DJ 19.12.03); TJSC (Ap. Cr. N. 98.012886-2. Relator Desembargador Álvaro Wandelli; Ap. Cr. 2003.020853-4. Desembargador Sérgio Paladino; Ap. Cr. 00.008169-8. Desembargador Maurílio Moreira Leite); TJRS (AP. Cr. n. 70003528098. Relator Desembargador José Antônio Hirt Preiss; Ap. Cr. 70012399549. Relator Desembargador José Antônio Hirt Preiss; Ap. Cr. 7000893891. Relator Desembargador Silvestre Jasson Ayres Torres); TJMG (Ap. Cr. 1.0702.96.021445-1/001. Relator Desembargador Tiggay Salles; Ap. Cr. 1.0145.01.001631-2/001(1). Relator Desembargador Erony da Silva); TJAP (Ap. Cr. 1.225/00. Relator Desembargador Mário Gurtyev; Ap. Cr. 2075/05. Relator Desembargador Gilberto Pinheiro); TJES (Ap. Cr. 035049003052. Relator Desembargador Sérgio Luiz Teixeira Gama).

            A nossa mais alta corte em matéria infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça, nesse sentido também decidiu quando do julgamento dos Recursos Especiais 2.492/RS (Relator Ministro Assis Toledo. Quinta Turma) e 141.573-GO (Relator Ministro José Arnaldo Fonseca. Quinta Turma).

            O abortamento nos casos de anencefalia amolda-se totalmente nos requisitos necessários à exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta. Não se pode exigir da gestante, assim como do médico, conduta diversa.

            É inquestionável, nos casos de anencefalia, que a saúde psíquica da gestante passa por graves transtornos. O diagnóstico da inviabilidade da vida do feto cria na gestante uma grave perturbação emocional, idônea a contagiar a si própria e a seu núcleo familiar. "São evidentes as seqüelas de depressão, de frustração, de tristeza e de angústia suportadas pela mulher gestante que se vê obrigada à torturante espera do parto de um feto condenado à morte" (Alberto da Silva Franco. Anencefalia. Breves considerações medicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. Revista dos Tribunais n. 833. Março de 2005). Diante de tantas circunstâncias anormais não se pode exigir da gestante conduta diversa do abortamento.

            Não se pode exigir que a gestante carregue um ser que, logo ao nascer, perecerá

.

            No que tange ao médico que realiza o abortamento, também não se pode exigir outra conduta. Tal profissional da saúde não pode ser compelido a prolongar o sofrimento psíquico da gestante.

            Nessa mesma esteira ensina o professor Fernando Capez (in Curso de Direito Penal parte especial. Volume 2. 5ª edição. Editora Saraiva. 2005):

            "Tecnicamente considerado, o aborto eugenésico dirá com a exclusão de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa, tanto por parte da gestante, considerando o dano psicológico a ela causado, em razão de uma gravidez cujo feto sabidamente não sobreviverá, como por parte do medico, que não pode ser compelido a prolongar o sofrimento da mulher".

            Esse não deixa de ser o entendimento de Guilherme de Souza Nucci (in Código Penal Comentado. 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 2002. Pág. 396):

            "algumas decisões de juizes têm autorizado abortos de fetos que tenham graves anomalias, inviabilizando, segundo a medicina atual, a sua vida futura. Seriam crianças que fatalmente morreriam logo ao nascer ou pouco tempo depois. Assim, baseando-se no fato de que algumas mães, descobrindo tal fato, não se conformam com a gestação de um ser completamente inviável, abrevia-se o sofrimento e autoriza-se o aborto. O juiz invoca, por vezes, a tese da inexigibilidade de conduta diversa, por vezes a própria interpretação da norma penal que protege a ‘vida humana’ e não a falsa existência, pois o feto só está ‘vivo’ por conta do organismo materno que o sustenta. A tese da inexigibilidade, nesse caso, teria dois enfoques: o da mãe, não suportando gerar e carregar no ventre uma criança de vida inviável; o do medico, julgando salvar a genitora do forte abalo psicológico que vem sofrendo. A medicina, por ter meios atualmente de detectar tais anomalias gravíssimas, propicia uma avaliação judicial antes impossível. Até este ponto, cremos ser razoável a invocação da tese de ser inexigível a mulher carregar por meses um ser que, logo ao nascer, perecerá".

            Esse também é o entendimento de Luiz Regis Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte especial – arts. 121 a 183. Volume 2. 4ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 2005. Págs. 122/123) e Cezar Roberto Bitencourt (Código Penal Comentado. 3ª edição. Editora Saraiva. 2005. Pág. 438).

            Em síntese, as condições que envolvem o abortamento de feto com anencefalia são totalmente anormais, de maneira que anormal também é o ato volitivo. Não se pode exigir do(s) agente(s) (gestante e médico) uma conduta determinada quando o meio pressiona em sentido contrário. Se, em razão de determinada situação fática, há um vício de vontade, não pode o autor de uma infração penal ser considerado culpado, pois não agiu com vontade livre e desimpedida. Todas as vezes que o processo psíquico de motivação estiver viciado pelas condições anormais do meio, deixa de haver vontade livre, e o agente não será considerado culpado por sua conduta.

            Como bem ensina o professor Fernando Capez, "a inevitabilidade não tem a força de excluir a vontade, que subsiste como força propulsora da conduta, mas certamente a vicia, de modo a tornar incabível qualquer censura ao agente". (apud Victor Eduardo Rios Gonçalves. Direito Penal Parte Geral. Sinopses Jurídicas. Volume 7. Editora Saraiva. 6ª edição. 2002. Pág. 92).

            4.1. Abortamento em casos de anencefalia. Inexigibilidade de conduta diversa. Inexistência de crime ou isenção de pena?

            A solução da questão suscitada depende da adoção ou da teoria bipartida (dicotômica) ou da tripartida (tricotômica).

            Os partidários da teoria bipartida (7) vêem o crime como sendo fato típico e antijurídico. No que tange à culpabilidade, haverá crime, ainda que um de seus elementos não se verifique. Quando uma pessoa comete um fato típico e antijurídico, mas age sem culpabilidade, nosso Código Penal, em vez de dizer que "não há crime" declara que o agente é "isento de pena" (arts. 21, 22, 26 e 28 do CP).

            É cabível lembrar os ensinamentos do professor Damásio, que afirma vir a receptação corroborar a idéia de que o nosso Código Penal veio a adotar a teoria bipartida:

            "A receptação pressupõe receber, adquirir ou ocultar coisa produto de crime. Suponha-se que o agente haja receptado coisa furtada por sujeito inimputável, nos termos do artigo 26, caput. Ele responde por receptação (artigo 180, § 4º). Ora, o agente inimputável, nos termos do artigo 26, caput, não é culpável: o fato típico e ilícito não apresenta a culpabilidade do agente. Então, a coisa não seria produto do crime se a culpabilidade fosse requisito ou elemento do delito. Mas o artigo 180, § 4º, diz que ‘a receptação é punível, ainda que... isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa’. Assim, o pressuposto da receptação é um fato em que não se exige a culpabilidade do agente. Em suma: para o legislador brasileiro existe crime sem culpabilidade".

            Já os adeptos da teoria tripartida (8) (minoria no Brasil. É predominante mundialmente falando) entendem que o crime seria fato típico, antijurídico e culpável. A culpabilidade, portanto, integraria o conceito de crime.

            Afirmam que o crime, como conduta tipicamente antijurídica é causa da resposta penal (efeito penal). A sanção penal será imposta somente quando for positivo o juízo de reprovação.

            Aduzem que a tipicidade e a antijuridicidade são também pressupostos da pena. Na medida em que a sanção penal é conseqüência do crime, este é pressuposto daquela. Dessa forma, não somente a culpabilidade, mas também o fato típico e antijurídico são pressupostos da pena. "Crime é, assim, o conjunto de todos os requisitos gerais indispensáveis para que possa ser aplicável a sanção penal. A análise revela que tais requisitos são a conduta típica, antijurídica e culpável...". (Heleno Cláudio Fragoso. Lições de direito penal. RJ: Forense. 1995. Pág. 198).

            De acordo com Ney Moura Teles, "ao falar da expressão utilizada na norma do art. 22 – que trata da exclusão de culpabilidade pela coação moral irresistível ou obediência – ‘só é punível o autor da coação ou da ordem’, Damásio E. de Jesus explica que, a contrário senso, está a lei dizendo ‘não é punível o autor do fato’. Então, a lei usa a expressão ‘não é punível’, para se referir à exclusão da culpabilidade. Ora, o mesmo Código Penal, no art. 128, quando trata da exclusão da ilicitude do aborto necessário e do aborto ético, usa a expressão ‘não se pune’ o aborto praticado por médico". (in Direito Penal: parte geral. 2ª edição. Volume 1. São Paulo: Atlas, 1998. Pág. 290).

            Apesar da imprecisão técnica cometida pelo legislador na redação do artigo 128 do CP, que deveria ter utilizado a expressão ‘‘não há crime", ao invés de "não se pune", há de se convir que a argumentação utilizada pelo professor Damásio de Jesus, ao comentar o artigo 180, § 4º, é bastante convincente. Apesar de concordarmos com os adeptos da teoria tripartida, não há como deixar de admitir que o nosso Código Penal adotou a teoria bipartida.

            Tendo em vista todo o exposto, concluímos que nos casos de abortamento de feto com anencefalia, onde está presente a causa de exclusão da culpabilidade denominada inexigibilidade de conduta diversa, o(s) agente(s) está(ão) isentos de pena. Há crime, porém o autor é isento de pena ante a ausência de reprovabilidade da conduta.

Sobre o autor
Eduardo Gomes de Queiroz

advogado criminalista, pós-graduado pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus, pós-graduando em Direito Criminal pelo Instituto de Ensino Luiz Flávio Gomes (IELF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Eduardo Gomes. Abortamento de feto anencefálico e a inexigibilidade de conduta diversa.: A influência das circunstâncias concomitantes no comportamento humano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 943, 1 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7770. Acesso em: 23 dez. 2024.

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