1 INTRODUÇÃO
Com a Constituição da República de 1988 foi inaugurada um novo ciclo na democracia brasileira, observando-se que nunca antes foi dada tanta importância e atenção aos direitos fundamentais como no atual modelo constitucional. Nesse contexto, ganhou destaque o caráter multifuncional dos direitos fundamentais, uma vez que eles devem ser analisados sob dois aspectos: como direitos de defeso e como imperativos de tutela.
Os direitos fundamentais figuram essencialmente como posições jurídicas subjetivas, funcionando em oposição exclusivamente ao Estado. Em outras palavras, eles objetivam proteger o indivíduo contra os abusos estatais. Trata-se de uma eficácia vertical, de baixo para cima e que se baseia na falsa hipótese de que o poder público é o único agressor dos direitos fundamentais. É nesse ponto de vista que falamos em direito de defesa, já que estes exigem uma abstenção do Estado, impedindo intervenções desnecessárias na vida do indivíduo.
Todavia, com o passar do tempo ficou evidente que os direitos fundamentais não são atacados apenas pelas ações do Estado, mas também por pessoas privadas (atentados contra a vida, a propriedade, a honra etc.). Diante desta comprovação, surgiu a necessidade de expansão da sua força garantista, exigindo-se, para tanto, uma atuação mais vigorosa por parte do Estado na intenção de combater tais ameaças.
Nesse contexto, o Estado passou a ter uma dupla missão: deve de não apenas respeitar os direitos fundamentais, mas também protegê-los contra ameaças e ataques de terceiros. Agora, portanto, os direitos fundamentais admitiram um caráter multifuncional, servindo como direito de defesa, mas, sobretudo, como imperativos de tutela.
A finalidade deste trabalho é evidenciar essas características ao tratar de dois diretos fundamentais extremamente importantes para o indivíduo e para a sociedade: direito de liberdade de locomoção e o direito de segurança (ambos previstos no artigo 5º, da Constituição da República).
Ambos os direitos convivem em choque, especialmente no que se refere à prisão preventiva, que é uma medida cautelar (diga-se: a mais grave de todas elas) e, como tal, é estabelecida antes do trânsito em julgado da sentença. Ao longo desse estudo procuraremos expressar a importância da adoção desta medida para o correto exercício do ius puniendi estatal, que deve ser compreendido como o direito de punir do Estado. Mais do que isso, é importante a avaliação para deixar claro que a garantia da ordem pública constitui, sim, um fundamento cautelar, servindo ao processo e à Justiça.
A primeira fundamentação para a decretação da prisão preventiva constante no artigo 312 do Código de Processo Penal é a garantia da ordem pública. Isto, pois, para nós, é o fundamento chave para a escolha desta medida cautelar, sendo cabível na maior parte dos casos.
Trata-se de um conceito jurídico indeterminado, mas que, fundamentalmente, significa que há indícios de que o culpado voltará a cometer delitos se permanecer em liberdade.
2 Conceito de Ordem Pública
A jurisprudência, atualmente, não possui um conceito definido e preciso do que seria ordem pública, utilizando o fundamento de garantia da ordem pública, ora em razão do risco que seja momentoso da repetição da ação delituosa objeto do processo, acompanhado do exame em relação da gravidade do fato e de sua repercussão, ora em razão unicamente da gravidade do crime praticado (Oliveira, 2015)
Não existe uma concepção esclarecedora do que seria a ordem pública. Não há uma concordância na doutrina no tocante a essa questão, bem como não há uma previsão concreta no Direito Processual Penal, estabelecendo o que seria ordem pública, e o que seria necessário para garanti-la.
Partindo dessa hipótese, a doutrina e a jurisprudência, em virtude dessa ausência de previsão que não externa o que seria ordem pública, encontra-se uma série de dificuldades para saber quais situações práticas deveriam motivar uma prisão no intuito de garantir a ordem pública.
O fato de não existir um conceito concreto sobre ordem pública, acaba gerando certa inconstância e variabilidade, pois não se sabe quais são as situações concretas que colocam em risco a ordem pública, dificultando assim, o seu zelo.
Nucci (2013) acredita que a ausência de uma definição precisa ou detalhamento do que seria garantir a ordem pública, tem por finalidade evitar que haja qualquer intervenção externa no uso da prisão cautelar por parte dos magistrados, fazendo com possam utilizá-la com ampla liberdade.
Nessa mesma linha de raciocínio, percebe-se que esse afastamento de detalhes legais, do que seria a ordem pública, dá abertura para que os magistrados atuem com ampla liberdade, decretando, assim, por vezes, prisões arbitrárias com o motivo de garantir a ordem pública.
Diante do que fora citado acima, essa ampla liberdade concedida aos magistrados, ocasiona favoravelmente à decretação de prisões arbitrárias, fundamentadas em um conceito inexato e vago, que não estabelece, de forma expressa, quais são as condutas que põem em risco à ordem pública.
A garantia da ordem pública envolve a própria segurança pública, não sendo necessário envolver toda uma cidade, bastando um bairro, uma região ou uma comunidade. Requer quesitos básicos como gravidade real do crime, repercussão social, maneira destacada de execução, condições pessoais negativas do autor e envolvimento com quadrilha, bando ou organização criminosa.
Deve-se entender por ordem pública, o sossego e a tranquilidade social, que devem existir em meio à comunidade, com todas as pessoas convivendo em harmonia, sem que haja qualquer comportamento separado do modo de conviver em sociedade. Assim, se o indiciado ou o acusado em liberdade continuar a praticar ilícitos penais, haverá perturbação da ordem pública, e a medida extrema far-se-á necessária se estiverem presentes os demais requisitos legais.
Nota-se que não há consenso em relação a quais fatores não dão consistência à ordem pública, como também não há em relação ao conceito de ordem pública propriamente dito. A ordem pública é divulgada como segurança da sociedade, assim como também como paz social, não possuindo assim, um conceito que traga concordância.
Em consequência dessa instabilidade, não se sabe o que se quer garantir com a decretação da prisão preventiva sob tal fundamento. Além do mais, esse conceito amplo de ordem pública, dá margem para que a prisão preventiva seja decretada em razão das mais diversas e incontroláveis circunstâncias.
Percebe-se, assim, que o conceito de ordem pública é bastante ausente e sem precisão, podendo ser interligado a diferentes circunstâncias, o que traz a possibilidade de um juiz decretar a segregação preventiva do acusado, utilizando-se das mais diversas argumentações, em virtude da vasta amplitude conceitual que é inerente ao conceito (ou falta de conceito) do que é ordem pública.
É assegurado que a prisão para garantir a ordem pública por ser um conceito vago, inexato, incerto e despido de qualquer referência da interpretação das sentenças, faz com que os juízes tenham uma autorização ampla e aberta para prender quem quer que seja, lembrando, assim, o nazifacismo da Alemanha do século 30 (Lopes, 2013).
A prisão como uma precaução da ordem pública rompe com o princípio da legalidade, uma afronta, pelo seu conceito indefinido, subjetivo, vago e extenso. É exatamente nesse conceito de conteúdo ideológico que se analisa a capacidade do exercício arbitrário das prisões, em desrespeito aos direitos fundamentais, tornando legítimas decisões injustas e ilegais (Kato, 2005).
Nessa linha de raciocínio, percebe-se que, o que se tem por prisão preventiva para assegurar a ordem pública é algo muito subjetivo; imperceptível, o que é totalmente sem incompatibilidade com o processo penal democrático, pois essa subjetividade intrínseca ao conceito de ordem pública dá margem e uma ocasião favorável para decretações de prisões injustas, violando-se, dessa forma, direitos fundamentais, e, sobretudo, o princípio da legalidade.
A máxima “não há crime ou pena sem lei prévia, escrita, estrita e certa”, proíbe incertezas e ausência de claridade nas leis que limitam o âmbito individual do cidadão. Assim, na medida em que a descrição de garantia da ordem pública não é certa, o princípio da legalidade estará sendo violado.
Sabe-se ainda que a prisão preventiva é uma medida de caráter excepcional, e que só devendo ser empregada quando não tiver cabimento de outra medida menos restritiva, pois limitar a liberdade de alguém, que é hipoteticamente inocente, por meio da prisão, deve ocorrer apenas nos casos em que a utilização de outras medidas menos restritivas, se mostrem ineficazes.
Desse modo, a decretação da prisão preventiva por meio de um fundamento superficial e devoluto, viola o princípio da legalidade, pois todas as suposições que restringem a liberdade do indivíduo devem estar demonstradas, apresentadas na lei, de forma exata, não havendo, portanto, campo para subjetividade.
É válido evidenciar ainda que, a legalidade é princípio divulgador de todo o Processo Penal, e a prisão preventiva, como medida restritiva de liberdade que é, deve se obedecer à intensidade da legalidade, evitando, assim, que os magistrados interpretem à sua vontade própria o significado do termo garantia da ordem pública.
A prisão preventiva, além do mais, como garantia da ordem pública, em última pesquisa, viola o contraditório e a ampla defesa, já que deixa impossibilitado o exercício pleno da defesa, uma vez que a amplitude e a subjetividade do termo dificultam e atrapalham a realização da contraprova.
A prisão para a garantia da ordem pública não se outorga a proteger o oposto, à proteção da própria comunidade, em companhia de comum acordo, na suposição de que ela seria arduamente atingida pela não detenção de autores de crimes que causassem desassossego social. De outro modo, há autores que associam a prisão para garantia da ordem pública ao impacto social do crime e até à credibilidade da Justiça.
Para a ordem pública se associam todas aquelas finalidades da prisão provisória que não se englobam nos requisitos e condições de caráter cautelar propriamente ditas, mas estabelecem formas de privação da liberdade amparadas como medidas de defesa social; discute-se, então, em ‘exemplaridade’, no sentido de imediata atuação ao delito, que teria como efeito cumprir o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, a prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes (GomeS, 1991).
Fernando Capez (2016) segue na mesma linha de pensamento quando adverte que:
“a brutalidade do delito provoca comoção no meio social, gerando sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação jurisdicional, de tal forma que, havendo fumus boni iuris, não convém aguardar-se até o trânsito em julgado para só então prender o indivíduo”.
Se estiver positivado no entendimento da doutrina que a liberdade de alguém promove perigo para a ordem pública, a prisão preventiva acaba sendo o meio lícito para a sua proteção. Existe uma conclusão baseada em indícios legais de que o recolhimento da pessoa acusada garanta distanciar o perigo para a ordem pública, mantendo-a afastada do convívio social. Basta a ocorrência de um perigo para a garantia da ordem pública se apresentar.
Perigo para a ordem pública pode caracterizar-se na perspectiva subjetiva (acusado) ou, como ainda admite a jurisprudência apesar das críticas, na perspectiva objetiva (sociedade). Podemos, então, falar em garantia da ordem pública na perspectiva subjetiva ou individual, ou na perspectiva objetiva ou social (Feitoza, 2009).
Fazendo uma consonância aos entendimentos supracitados, a prisão preventiva decretada com o fundamento de prometer a ordem pública seria ilegal. Esta fundamentação não é cautelar, pois não defende o processo, sendo, portanto, flagrantemente inconstitucional, até, porque, nessa matéria, é necessária, básica e vital a rigorosa observância ao princípio da legalidade e da taxatividade. Cogitando a natureza dos direitos limitados (liberdade e presunção de inocência), é absolutamente inaceitável uma interpretação extensiva que estenda o conceito de cautelar até o ponto de modificá-la em medida de segurança pública.
A prisão cautelar deve servir de instrumento ao processo, asseverando o normal funcionamento da justiça, mas não pode servir para “fazer justiça”. Assim, há uma rejeição na utilização da prisão preventiva respaldada na garantia da ordem pública, já que, nesse caso, a prisão seria usada como uma forma de compensação ao mal causado, atuando como uma penalização antecipada (função preventiva geral e especial).
Importante lembrar que, de tudo isso que foi dito, entendemos que a prisão preventiva decretada com fundamento na garantia da ordem pública, funciona como uma parte necessária a favor da Justiça para reprimir a repetição de atuações delituosas, sempre que restar comprovada a periculosidade de um agente.
Com a reforma legislativa provocada pela Lei 12.403/2011, hoje podemos dizer que a definição de ordem pública é extraída do artigo 282, inciso I, do CPP. Garantir a ordem pública significa impedir a prática de infrações penais. O referido dispositivo estabelece que as medidas cautelares deverão ser adotadas atentando-se para o fato de ser necessária a aplicação da lei penal, para investigação ou instrução criminal e, por conseguinte, para evitar a prática de infrações penais.
Atentem que esses bens jurídicos são semelhantes aos fundamentos da prisão preventiva, encontrados no artigo 312. Todavia, no artigo 282, inciso I, do CPP, o legislador, ao invés de fazer uma referência à garantia da ordem pública, escolheu pela expressão evitar a prática de infrações penais. Assim, podemos chegar a uma conclusão de que seja esse o seu significado (Jusbrasil, 2019).
A condenação de uma pessoa, baseada no princípio da presunção de não-culpabilidade, necessita de uma sentença penal condenatória, proferida ao final de um processo. Nesse caso, é feito um juízo de censura ou de reprovação sobre o ato praticado pelo acusado/indiciado, tendo que ser observada, para tanto, todas as regras do devido processo legal (juízo de cognição exauriente).
Em contrapartida, para a determinação de uma medida cautelar, como a prisão preventiva, é feito apenas um juízo de periculosidade sobre o acusado, moldando o seu estado de inocência em benefício do direito à segurança que faz parte do domínio de a toda sociedade (juízo de cognição sumária).
Aqui podemos encontrar um confronto entre direitos fundamentais. De um lado, o princípio da presunção de inocência e o direito de liberdade de ir e vir do acusado; e do outro, o direito à segurança que é garantido a todos.
Compreendemos que, com base na premissa postulada da proporcionalidade, deve ser conservado o direito de todos à segurança, sacrificando-se, dessa maneira, o estado de inocência do indiciado e o seu direito de liberdade. Além disso, evidenciamos que o fundamento em estudo serve, sim, ao processo, uma vez que objetiva a proteção da sociedade e seus bens jurídicos mais importantes.
É a partir do processo que o Estado cumpre o seu direito de punir, sendo que um de seus objetivos é, justamente, a restituição da paz social, transtornada temporariamente com o acometimento de um crime. À vista disso, se um dos deveres do processo é a proteção da sociedade, podemos concluir que a prisão preventiva decretada com embasamento na garantia da ordem pública é um instrumento obrigatório para solidificar este fim, sendo de fácil compreensão, portanto, a sua natureza cautelar.
É possível acreditar, entretanto, que a decretação dessa medida precisa se pautar por fatos concretos, que indiquem o perigo real que a liberdade do agente a quem está sendo imputado o crime, representa à paz social. Não basta uma simples presunção ou deduções, o juiz deve evidenciar de maneira que não se possa admitir erros, enganos (por meio de provas ou elementos de informação) a periculosidade do imputado e a probabilidade de repetição de condutas criminosas. Apenas assim e sempre de maneira factual e realista que ele poderá decretar a prisão.
Sem esse parâmetro legal, perderíamos uma grande ferramenta de controle social e processual, uma vez que a falta de punição de criminosos enfraquece demasiadamente a estrutura de uma sociedade. Tanto isso é verdade que esta espécie prisional é apoiada em praticamente todo o mundo.
Salientamos uma última observação: de maneira independente da ideia que se queira adotar, atestada a periculosidade do agente baseada em dados existentes, reais, ou na ocorrência de um aparecimento de outra possibilidade que conceda a prisão preventiva (garantia da ordem econômica, assevere da realização da lei penal ou conveniência da instrução criminal), circunstâncias pessoais favoráveis como bons antecedentes, primariedade, profissão definida e residência fixa não proíbe a decretação de sua prisão preventiva (Brasileiro, 2011).
2.1 Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública e os Direitos Fundamentais
Diante de tudo o que foi apresentado até agora, podemos dizer, em um pequeno resumo, que a prisão preventiva para a garantia da ordem pública tem o objetivo, primordialmente, de evitar a prática de novas infrações penais, sempre que evidenciar caracterizada a periculosidade do agente.
Com base em situações concretas, é possível perceber se determinado indivíduo demonstra tendência à prática de novos delitos. Muitos são os criminosos que já esgotaram suas chances definitivamente com a ordem jurídica, demonstrando, assim, que não pretendem se comportar de acordo com o Direito. Tais indivíduos colocam em risco toda a coletividade e ameaçam a paz social ansiada pelo Estado. Em outras palavras, criminosos que já têm tendências, inclinações aos delitos ofendem o direito fundamental à segurança garantida a todos e prevista explicitamente na Constituição da República.
Sendo assim, é dever do Estado, com base no caráter multifuncional dos direitos fundamentais, intervir em benefício da sociedade, ameaçada por indivíduos cuja periculosidade é manifesta. Conforme estudado no início deste trabalho, a missão do Estado é não apenas respeitar os direitos fundamentais, mas também protegê-los contra ameaças e ataques de terceiros.
Essa interpretação coloca à disposição uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da clássica posição de opositor para uma função de guardião desses direitos. Nessa questão, faz-se necessária dar a importância precisa na questão da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, já que é por meio dela que a segurança da coletividade é precavida, preservando, igualmente, um dos fins do processo, qual seja: a paz social.
Não podemos deixar de lembrar que os direitos fundamentais traduzem uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este compete uma obrigação permanente de proteção e concretização (eficácia dirigente dos direitos fundamentais).
Na função de imperativos de tutela, os direitos fundamentais têm sua eficácia intensificada a partir da obrigação, imposta ao Estado, de manter uma postura ativa na sua efetivação; o objetivo central da função de imperativo de tutela é o de proteger os bens jurídicos fundamentais diante de invenções fáticas por parte de outros sujeitos de direito privado, assegurando, assim, sua efetiva capacidade funcional. Levando em consideração que essa função protetiva do Estado haveria de se desempenhar de maneira no mínimo eficaz (uma proteção ineficaz não faria sentido), a proporcionalidade aparece aqui em seu limite inferior, ou seja, como proibição de proteção deficiente.
Baseado em todas essas alegações, levando em conta que o direito à segurança, é primordial para o desenvolvimento de uma sociedade, defender que a prisão preventiva para a garantia da ordem pública se identifica como um dos principais instrumentos para a obtenção desse fim. É por meio deste fundamento que o Estado justifica o afastamento cautelar de uma pessoa com capacidade e inclinação a prática de novos crimes.
Para concluir e com a finalidade de esclarecer esse confronto entre o direito de liberdade e o direito de segurança, está a confirmação de que os direitos fundamentais devem ter sua eficácia considerada não só sob um ângulo individualista, isto é, embasado no enfoque da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade em seu todo, já que se discorrem de valores e fins que esta deve respeitar e materializar.
Com base nesta alegação, a doutrina alienígena chegou à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui função dos valores morais vinculados, revelando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está ligado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser desagregado, podendo falar-se, neste contexto, de uma responsabilidade comunitária dos indivíduos.
É neste sentido que se justifica a afirmação de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comunitário predominante, mas também e de certa forma, que contribui para a limitação do conteúdo e da conquista dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar conservado o núcleo fundamental destes e desde que estejamos atentos ao fato de que com isto não se está a legitimar uma funcionalização dos direitos fundamentais em prol dos interesses da coletividade, aspecto que, por sua vez, protege conexão com a discussão em torno da existência de um princípio da supremacia do interesse público.
É neste parâmetro que alguns autores têm estudado o problema dos deveres fundamentais, na medida em que este estaria vinculado, por conexo, com a concepção objetiva dos direitos fundamentais na sua separação valorativa.
Faz-se necessário asseveremos que a proporção objetiva dos direitos fundamentais determina que o direito individual de liberdade seja realizado de maneira cabível e em conformidade com toda a coletividade. O uso inadequado de um direito configura um abuso e deve ser reprimido pelo Estado.
Desse modo, se ficar evidenciado que a liberdade de um indivíduo coloca em risco toda a coletividade, tal direito poderá ser censurado em benefício da maioria, o que é respaldado, até mesmo, pelo princípio da supremacia do interesse público. Todas essas afirmações encontram apoio na função objetiva dos direitos fundamentais, que exige uma intervenção por parte do Estado em benefício da coletividade.
O Supremo Tribunal Federal negou provimento ao HC 126.292, passando a consentir a execução da pena privativa de liberdade após decisão condenatória de segunda instância. Os críticos da decisão reconhecem que a Constituição proíbe, sem exclusão, o início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado. Os defensores do acórdão expõem que autorizar a prisão do culpado apenas depois da interposição de inacabável número de recursos, até mesmo aqueles simplesmente impertinentes, que atrapalham o andamento da justiça, significaria um estímulo à impunidade. Os dois lados têm sua parcela de razão (STF, 2016).
Ocorre que o grande problema a ser enfrentado não é a prisão após a decisão condenatória em segunda instância, mas sim a prisão antes mesmo da sentença de primeira instância: a prisão preventiva. Nas penitenciárias, já temos 622.202 presos, dos quais 40% (cerca de 235.241) são presos provisórios (Infopen, 2017). Ou seja, presos que não têm culpa estabelecida – podem ser absolvidos ou condenados a penas de intensidade inferior, as restritivas da liberdade.
O Código de Processo Penal brasileiro, influenciado pelo Código Rocco italiano, foi decretado em plena ditadura do Estado Novo. Naquele momento histórico, os direitos e garantias fundamentais eram ignorados de maneira formal e, ainda, alvo de humilhações, e o sistema de justiça penal era apenas mais um dispositivo para a repressão estatal contra o cidadão (Jusbrasil, 2016).
Uma das heranças mais claras da era da ditadura é a condição da determinação da prisão preventiva para “a garantia da ordem pública” (CPP, art. 312). Expressão vazia e indefinida, admitindo uma infinidade de definições. Próximo da ordem econômica é o mesmo que uma conjectura de restrição da liberdade que nada tem a ver com o processo; não tem caráter cautelar nem instrumental. Com origem na Alemanha dos anos 30, sua única finalidade é conceder uma autorização geral e irrestrita para prender (Franco, Stoco, 2005).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que fora exposto, compreende-se que o vago conceito de ordem pública é bastante nocivo e lesivo em termos práticos, já que dá a permissão para o juiz fundamentar o decreto preventivo, sob a alegação de garantir a ordem pública, em virtude dos mais inúmeros contextos.
Infringem o princípio da legalidade a subjetividade e a vagueza, específicos ao termo ordem pública, dando poder para que o julgador profira suas decisões acerca da imposição ou não da custódia cautelar, em virtude de qualquer motivo que eventualmente, afronte a ordem púbica, o que é imensamente perigoso, em se tratando de segurança jurídica.
“Impor a um homem uma grave pena, como é a privação da liberdade, uma mancha em sua honra, como é a de se haver estado na prisão, e isso sem que fosse provado que ele é culpado e com probabilidade de que seja inocente, é algo que está muito distante de justiça.” (ZAFARONI, 2006).
O Código atua como mecanismo da política de segurança pública do Estado e não como cautela das regras do devido processo legal. Se ainda existem dúvidas sobre a condição autoritária do decreto, a leitura de sua exibição de motivos a deixa muito clara.
Apesar disso, lidamos e nos relacionamos com esse código espontaneamente, mesmo depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, que relacionou inúmeros direitos processuais penais a serem analisados pela legislação de regência. O Brasil ainda é um dos poucos países da América do Sul que não editou um novo Código de Processo Penal após sua reimplantação.
Não é competência do Poder Judiciário assegurar a ordem pública, trata-se de trabalho essencial do Poder Executivo, através de seus órgãos de segurança pública, relacionados no art. 144 da Constituição Federal. Diz-se de uma séria imoralidade modificar uma medida processual em atividade exclusivamente de polícia, empregando-a impropriamente como medida de segurança pública. É a influência do Estado penal em desvantagem do Estado de direito, em nome de uma hipotética guerra contra “os inimigos da sociedade”.
No sistema penal cautelar da América Latina:
“operam como pautas a seriedade da suspeita de cometimento de um delito (…) e considerações de periculosidade e dano, provenientes do positivismo do século XIX, ou seja, da individualização ôntica do inimigo”. Afora isso, “aparecem as teses processualistas, que defendem a natureza não penal do confinamento cautelar, fundamentando-o de maneira às vezes bastante engenhosa, mas não conseguindo ocultar sua essência punitiva” (Zafaroni, 2006).
Em um método constitucional apreensivo com os direitos humanos, em que a liberdade é a regra quase perfeita, independentemente de alguns ainda defenderem veementemente o contrário, não há mais lugar para prisões preventivas para a garantia da ordem pública, que “possuem um defeito genérico: não são cautelares. Portanto, substancialmente inconstitucionais” (Lopes, 2005).
Entretanto, a Lei n. 12.403/2011, trouxe ao ordenamento jurídico vários parâmetros cautelares diversos da prisão, determinando métodos para sua correta aplicação. O art. 282 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela lei supracitada, passou a decretar que as medidas cautelares, dentre elas a prisão preventiva (art. 282, § 6º), devem ser executadas observando-se a:
”necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais” (inciso I) e a “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado” (inciso II).
Diante disso, o legislador criou meios diretos, específicos e claros que devem ser analisados pelo juiz ao requerer a prisão preventiva, medida cautelar que ainda é subjetiva. Caso haja, por exemplo, confirmação de repetição criminosa, de que o indiciado faz do crime seu meio de vida ou de que faça parte organização criminosa, e estiverem evidentes os demais requisitos dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal, poderá ser justificada, então, a necessidade da medida drástica.
“Uma interpretação conforme a Constituição pode e deve ser feita em relação à prisão para a garantia da ordem pública, de tal maneira que: I – somente se admita a prisão quando se tratar de crimes de natureza grave, sem prejuízo dos limites impostos no art. 313, I, CPP. A gravidade, em princípio, seria deduzida da pena cominada; II – a natureza do crime deve apontar ou indiciar a possibilidade concreta de reiteração criminosa, segundo seja a experiência do conhecimento humano de cada época” (Pacelli, Fischer, 2014).
Evidente que de nada vai adiantar o juiz respaldar a prisão nos termos legais sem apresentar dados concretos que a justifiquem. Desse modo, tudo irá prosseguir como está, ou seja, uma imensidão de prisões preventivas mal fundamentadas. De nada valerá o avanço legislativo se a liberdade do cidadão continuar sendo limitada pela gravidade especulativa do crime, por alegações de apelo pretencioso e por juízos meramente superficiais.
Faz-se necessário analisar as palavras de Zafaroni (2007):
“O Estado de Polícia que o Estado de direito carrega em seu interior nunca cessa de pulsar, procurando furar e romper os muros que o Estado de direito lhe coloca. A introdução do inimigo no direito ordinário (não propriamente bélico ou de guerra) de um Estado de direito o destrói, porque obscurece os limites do direito penal invocando a guerra, e os do direito humanitário invocando a criminalidade”.
Está hora de admitirmos que a missão maior do Poder Judiciário, como também do Ministério Público, é garantir os direitos fundamentais do cidadão, e não combater a criminalidade. E uma boa forma de fazê-lo é abandonar de vez esses entulhos autoritários, incabíveis num Estado de Direito (Sales, 2014).
Já passa da hora de assumirmos que o dever maior do Poder Judiciário (e também do Ministério Público) é assegurar os direitos fundamentais do cidadão, e não combater a criminalidade. Uma boa maneira de fazê-lo é desprezar de uma vez essa sujeira autoritária, inadmissíveis num Estado de Direito.
Todo o processo exige um tempo coerente e lógico, além do mais quando falamos da vida, quando o assunto se refere a processo criminal, onde estamos operando com o bem maior, de maneira que o entendimento da maioria dos nossos tribunais não se concilia com os princípios e regras previstos em nosso ordenamento jurídico, enfatizando que fere diretamente a integridade psicológica do acusado e não somente a tramitação do processo.
Progressivamente as prisões preventivas são decretadas sem qualquer justificativa, tratando como base somente a garantia da ordem pública, convergência da instrução criminal e quando houver indícios de autoria, motivando uma vulgarização de sentenças de prisões preventivas.
Confinar um indivíduo, restringindo a sua liberdade, colocando-o num presídio, sujeitando-o ao desprazer e ao infortúnio das prisões brasileiras que estão em superlotação, não dispõem programas de ressocialização do preso, e são conhecidas como verdadeiras jaulas humanas.
O Brasil foi considerado a terceira maior população carcerária do mundo, só perdendo para os Estados Unidos e China, sendo seguido na quarta colocação pela Rússia. Os dados são do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen, 2017).
Nada obstante, compreendemos a triste realidade do crescimento da quantidade de aplicações improcedentes em todo o país, infringindo e contrariando o que estabelece nossa Constituição em seus princípios basilares que protegem e garantem ao indivíduo sua presunção de inocência, não respeitando ainda a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, onde o Brasil é signatário, da qual estipula que o cidadão indiciado em um processo criminal tem o direito de ser julgado dentro do prazo razoável.
O intuito foi expor no presente artigo a essencialidade da prisão preventiva com prazo legal, ou seja, com um limite máximo para cumprimento, a fim de fixar a aplicação dos Princípios Constitucionais da presunção da inocência, da dignidade da pessoa humana, da coerente duração do processo, do contrário deve ser declarada a sua inconstitucionalidade.
REFERÊNCIAS
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