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O consentimento do menor no estupro de vulnerável

Agenda 03/12/2019 às 11:29

O consentimento do menor no estupro de vulnerável sempre foi algo que causou polêmica, portanto, necessário se faz esclarecer o posicionamento atual da doutrina e jurisprudência, bem como qual solução seria mais ponderada para a realização da justiça.

Introdução

Com a finalidade de tentar pacificar o entendimento e evitar decisões discrepantes, sobre o consentimento do menor no caso do estupro de vulnerável, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 593, de maneira a consagrar a vulnerabilidade de maneira absoluta. Entretanto, mesmo como tal norte, o problema não foi sanado, pois ainda continua a haver decisões em descompasso com a referida súmula, e, algumas, na sintonia da súmula, mas que não condiz o tipo penal.


I O início da vida sexual tem uma idade certa?

A UNESCO, em 2004, realizou uma pesquisa a qual era intitulada “Juventude e Sexualidade”, nessa pesquisa foram ouvidos inúmeros jovens brasileiros de diversas regiões do país, principalmente das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Porto Alegre, Vitória, Distrito Federal, Maceió, Belém, Recife, Florianópolis, Goiânia e Cuiabá.

A pesquisa teve como de seus principais enfoques o tema da primeira relação sexual. Como ficou constatado, houve uma clara diminuição da idade para o início da vida sexual, sendo que o início dela para os homens é menor do que a da mulher. Os homens costumam iniciar as atividades sexuais entre 10 (dez) e 14 (quatorze) anos, principalmente nas cidades de Manaus (70%), Salvador (68%) e Belém (66%). Nesta faixa etária, o sexo feminino tem a primeira relação nas cidades de Porto Alegre (39%), Manaus (36%) e São Paulo (34%). No Distrito Federal,  61,6% dos homens iniciam na atividade sexual com menos de 14 (quatorze) anos, sendo que 21,9% das mulheres iniciam nesta faixa etária.

Constata-se que quase da metade da população (43,1%) assumiu ter praticado relação sexual com menos de 14 (quatorze) anos. Tal atividade sexual mais jovem é consequência de várias circunstâncias, como por exemplo uma maior liberdade conferida aso jovens, insinuação sexual muito constante na cultura brasileira, por meio de filmes, novelas e músicas, fácil acesso à internet e a falta de uma orientação sexual nas escolas e na família.

Outro ponto interessante descrito no estudo é a existência de uma pressão social para que os homens iniciem sua vida sexual mais cedo, motiva pela ideia de masculinidade. Lado outro, as mulheres sofrem uma pressão oposta, isto é, evitar o início da vida sexual mais cedo.

Outra pesquisa divulgada em 2012, pelo Instituto de Geografia e Estatísticas (IBGE), informa que:

O número de adolescentes brasileiros que iniciam a vida sexual entre 13 e 15 anos representa 28,7% deste grupo, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) 2012, divulgada no dia 19 de junho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Em relação a 2009, houve uma queda de quase dois pontos percentuais na quantidade de estudantes do ensino fundamental entre 13 e 15 anos que já tiveram a primeira experiência sexual. Naquele ano, o índice era de 30,5%. (NOGUEIRA, 2013.)

O psiquiatra e sexólogo Jairo Bouer leciona sobre os principais fatores que influenciam a atividade sexual mais precoce:

A cultura brasileira é um dos principais fatores que influenciam o início da vida sexual mais cedo. “A cultura do Brasil, a exposição do corpo e os veículos de comunicação estimulam a precocidade sexual. A grande quantidade de informação a que eles têm acesso, principalmente pela internet, também contribui para um início mais cedo da vida sexual”, disse o psiquiatra. (NOGUEIRA, 2013)

O Delegado Wisllei Gustavo Mendes Salomão da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), em uma entrevista realizada no ano de 2015, afirma que não é possível assegurar com exatidão os casos que são realmente abusos praticados por menor e quantos são apenas afirmações falsas. Além disso, muitos dos casos que acontecem não chegam a ser denunciados, pois as vítimas ficam muito abaladas e com medo de terem sua imagem ligada a um fato tão negativo como esse.

Há casos interessante como por exemplo um jovem de 18 anos que mantém um relacionamento amoroso com menina menor de 14 (quatorze) anos, muitos não consideram estupro pois os dois tem uma mentalidade mais parecida e, praticamente, a mesma faixa etária, situação que leva ao arquivamento do processo.

Lado outro, quando há uma diferença de idade considerável, onde percebe-se uma situação no mínimo duvidosa, e realizada uma análise mais detalhada da situação que pode desaguar em um procedimento penal.


II As alterações sociais e o direito penal

Na elaboração de uma lei seu criador deve observar atentamente o momento sociocultural vivido, e, na mesma medida e cuidado, o Juiz deve observar essas circunstâncias no momento de aplicar a lei.

Essas circunstâncias ganham mais destaque no direito penal, uma vez que se relaciona com o bem da liberdade e uma pena grave. Assim, a norma deve acompanhar os anseios e a evolução social, de maneira que ela pode ser alterada ou excluída a depender do contexto social que ela está inserida.

Sobre o tema, ensina Carvalho:

Assim é que o legislador, para realizar a tipificação, tem que fazer criteriosa seleção dos comportamentos de inegável relevância social, não se esquecendo, também, de destipificar determinadas condutas, que, com o correr dos tempos, com o avanço cultural, científico-tecnológico, mutações de conceitos morais, de injusto, implementação de costumes, enfim, mudanças sociais em geral, passaram a ser aceitas e adequadas ao meio social, deixando, por esse motivo, de ser penalmente relevantes. (CAVALHO, 2005, p. 88).

Destaca-se, por exemplo, a diminuição da presunção de violência de 16 (dezesseis) para 14 (quatorze) anos, no Código Penal de 1980:

C om a redução do limite da idade, o projeto atende à evidência de um fato social contemporâneo, qual seja, a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consilli do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade ao negar-se que uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se se presta à lascívia de outrem. (BRASIL, 1980).

Diante disso, podemos extrair que à presunção de violência dos menores de 14 (quatorze) anos pode ser ajustado ao quadro social da atualidade. Entretanto, o legislador impõe uma rigidez até maior no caso de estupro de vulnerável, conforme se vê na Lei nº 12.015 de 2009, pois neste caso a própria vítima é um elemento típico da conduta.

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A lição de Plínio Gentil não deixa dúvidas:

Não há como negar que o legislador, pretendendo o que pretendia, foi cuidadoso. Esmerou-se, para evitar a discussão sobre a eventual relatividade da presunção de violência, em definir a simples conjunção carnal ou o ato libidinoso com menor de catorze anos como crime, inclusive com o requinte de lhe dedicar uma redação diferente daquela adotada para a definição do crime de estupro simples (GENTIL, 2012, p.67)

Vale ressaltar que a necessidade de a norma penal ser compatível com a realidade, para que o direito não se esvazia em regras objetivas como cálculos matemáticos, pois o caso concreto abrange muitas possibilidades.


III O direito ao consentimento do menor nas relações sexuais?

É mais do que correto a punição para aqueles que violarem os dispositivos legais, principalmente em relação a crimes que são verdadeiras barbáries. Como já foi demonstrado, a história dos crimes sexuais demonstra um objetivo claro de proteger a moralidade, de maneira a marginalizar a sexualidade infantil.

Na atualidade, a maioria das crianças ou adolescentes tem rápido acesso as informações devido à internet e rede sociais. Com isso, muitos sabe distinguir o que é um abuso sexual e o que não é. Portanto, dependendo do caso, em que o jovem possua consciência moral e sexual sobre sua vida, deveria ter seu direito a exercer a sexualidade. Assim, o legislador ou o aplicador do direito deve analisar cada caso com muito cuidado para não impedir o direito constitucional a liberdade. Deste modo, se o jovem não se enquadrar em situação de abuso, violência e exploração sexual, não necessariamente deve ser aplicado as normas previstas no artigo 227, §4º, da Constituição Federal, os artigos 4º e 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois nem sempre que o menor de 14 (quatorze) anos que exerce sua sexualidade está em situação que precise de proteção do Estado

Constituição Federal:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[...] § 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. (BRASIL, 1988).

ECA:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. (BRASIL, 1990).

Assim, a sexualidade do jovem não precisa ser incriminada toda vez, principalmente quando este tem mecanismos e condições sociais e morais de discernir entre o certo e o errado. Diante disso, a norma não pode ter a finalidade de impedir o livre desenvolvimento da sexualidade de uma pessoa, mas, sim, punir com seriedade os autores de abusos e violências sexuais.


IV Presunção de violência absoluta ou relativa e a súmula do STJ

Apesar do debate não ser atual sobre a presunção de violência ser absoluta ou relativa, muito difícil chegar à mudança na realidade social, a qual sempre está em constante alteração. Diante da problemática, e com a finalidade de resolver o problema, a relativização da presunção de violência foi eliminada, sendo adicionada a vulnerabilidade, a qual tornou mais punitiva o delito em estudo.

Segundo os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci

A simples modificação na terminologia, por si só, não foi suficiente para atribuir a objetividade penal constante no art. 217-A do CP, pois segundo o referido autor: “o nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. (NUCCI, 2012, p. 37)

Portanto, a idade da vítima no dispositivo penal (art. 217-A do CP) é um critério objetivo e absoluto, para que o tipo penal seja devidamente analisado e enquadrado no fato, o qual visa proteger a liberdade sexual da vítima, de maneira que se a vítima consentir para o ato, esse fato não impede o enquadramento do autor no crime de estupro de vulnerável.

O professor Luiz Regis Prado afirma que o critério de idade para a caracterização da vulnerabilidade foi criado através de uma ficção jurídica, de maneira que em muitos casos não se encontra o amparo em casos concretos, especialmente quando olhado sob a luz do crescente acesso a informações, meios de comunicação e redes sociais (PRADO, 2010).

Concluindo, Prado descreve que

Configura o delito em análise a conduta de ter conjunção carnal ou praticar qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 (catorze) anos, ainda que a vítima tenha consentido no ato, pois a lei ao adotar o critério cronológico acaba por presumir iuris et de iuris, pela razão biológica da idade, que o menor carece de capacidade e discernimento para compreender o significado do ato sexual. Daí negar-se existência válida a seu consentimento, não tendo ele qualquer relevância jurídica para fins de tipificação do delito. (PRADO, 2010, p. 624).

Sobre o tema, Marco Aurélio de Mello, Ministro do Supremo Tribunal Federal, já se posicionou sobre a revogada presunção esculpida no artigo 224 do Código Penal, salientando que a modificação dos hábitos e costumes, o acesso fácil a informação nos últimos anos é absolutamente visível e a visão sobre a sexualidade também foi alterada.

A presunção de violência prevista no art. 224 do Código penal (atualmente revogado pela Lei 12.015/2009) cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral, e, particularmente, a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionadas sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pela dessemelhança. Assim é que, sendo irrestrito o acesso à mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural. (NUCCI, 2012).

Pretendendo acabar com as divergências sobre o tema, no dia 06 de novembro de 2017, o Superior Tribunal de Justiça lançou a súmula 593, sedimentando que o consentimento da vítima seria irrelevante para a caracterização do delito, veja-se:

Súmula 593: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente (SJT, 2017).

Reforçando a ideia da súmula, o doutrinador Rogério Greco ensinar que o objetivo da Lei 12.015/2009 foi demonstrar a situação de vulnerabilidade que a vítima se encontra e, com isso, devidamente descrito da lei, os Tribunais não terão tanta liberdade para entender de maneira diferente quando a vítima do ato sexual tiver menos que 14 (quatorze) anos, isto é, torna-se irrelevante o consentimento da vítima. (GRECO, 2014).


V Caso polêmico ocorrido no Rio Grande do Sul

O Ministério Público do Rio Grande do Sul relata que entre os dias 25 e 27 de novembro de 2015, em horário incerto, a garota foi deixada bem perto da escola em que frequenta por seu avô. Contudo, esta não foi para a escola e dirigiu-se para a residência de seu professor de música, que também era seu namorado.

Em ato contínuo, não sabendo o paradeiro da menina, a família e amigos começaram a procurar ela pela cidade, mas não a encontraram. Posteriormente, soube que ambos haviam se refugiado em um matagal, perto da cidade de Bom Jesus, onde houve a prática dos atos sexuais.

O professor de música e namorado da vítima foi denunciado pelo crime de estupro de vulnerável, esculpido no artigo 217-A, caput, do Estatuto Material Repressivo: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos, com pena mínima de oito e máxima de 14 anos de reclusão. (BRASIL, 1940).

No juízo de primeiro grau, o réu foi absolvido, com fulcro no artigo 386, incisos III e VI do Código de Processo Penal. Em outras palavras, o juiz entendeu que o fato descrito no processo não contituia infração penal, uma vez que as circunstancias presentes excluíam o crime e isentavam o réu da pena.

Não satisfeito, o Ministério Público apelou da sentença. O relator do caso foi o desembargador José Conrado Kurtz de Souza, da 7ª Camara Criminal, que saliento que o dispositivo penal em questão em relação a vulnerabilidade deve ser relativizado em algumas situações, como a presente no processo. No mais, o desembargador afirmou que a relação sexual foi consentida devido o relacionamento amoroso entre a vítima e o acusado, conforme ficou demonstrado no relacionamento

Além disto, conforme bem pontuado pela Magistrada a quo, a prova oral colhida em juízo evidenciou que desde o fato narrado na denúncia o réu e a vítima relacionam-se maritalmente, inclusive residindo juntos, observando-se ainda o vínculo afetivo que une as famílias do réu e da ofendida (KURTZ, 2015).

Todavia, o desembargador relator ficou vencido, pois ficou prevalente o voto do juiz Sandro Luz Portal, o qual atuou como revisor no julgamento. Segundo ele, o aplicador desta norma não possui a discricionariedade de flexibilizá-la, uma vez que mitigar a vulnerabilidade vai de encontro a doutrina da proteção integral, amplamente exposta no ordenamento jurídico.

Ainda, ressaltou a importância da presunção absoluta de vulnerabilidade, a qual deve ser tarifada e indiscutível, não se admitindo prove em sentido contrário. Explicou que o caráter absoluto previsto na presunção de inocência não está ligado a culpabilidade do agente, como condição para a responsabilidade penal objetiva, mas impõe uma condição negativa de se abster da prática de conjunção carnal e de outro ato libidinoso com menor de 14 anos de idade. Com isso, a norma penal está em sintonia com a doutrina da proteção integral a qual tutela a vítima e não o agressor.

“Irrelevante discutir, portanto, se a ofendida, à época com 13 anos de idade, consentiu ou não quando manteve relações sexuais com o acusado, que contava com 33 anos de idade ao tempo dos fatos e era seu professor de música, na medida em que a concordância do menor de 14 anos nos delitos de estupro de vulnerável não afasta a incidência da figura criminosa, conforme orientação pacificada do Superior Tribunal de Justiça, através do Recurso Especial Representativo de Controvérsia nº 1.480.881’’, (PORTAL, 2017).

O desembargador revisor ainda destacou a Lei 13.718/2018, que acrescento o parágrafo 5º ao artigo 217-A do Código Penal: ‘‘As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime’’. (BRASIL, 2018).


VI Vulnerabilidade Absoluta e a defesa no ordenamento jurídico

A vulnerabilidade absoluta descrita no artigo 217-A do Código Penal, pode ocasionar uma diminuição de vários princípios penais. Como exemplo, convém destacar o princípio do contraditório e da ampla defesa, ambos delineados na atual Carta Constitucional, especificamente no artigo, 5º, inciso LV, o qual pode ser cerceado na tentativa de defender o réu, uma vez que a realidade pode ser bem diferente da presumida pelo autor.

Nessa linha de pensamento, convém destacar que o princípio da presunção de inocência limita o Estado de punir sem o devido processo legal, além de coadunar com o princípio da intervenção mínima do Estado, o qual o tem o dever de guiar a atuação Estatal, especialmente na proteção dos bens íntimos como o caso da autodeterminação sexual

Parece-nos, inclusive, estar em jogo até a não culpabilidade antecipada, prevista no art. 5°, LVII, da Constituição Federal, que disserta não poder ser considerado culpado ninguém até que transite em julgado a sentença penal condenatório. Considerar a vulnerabilidade absoluta em todos os casos, sem exceção, é gerar espécie de culpabilidade antecipada do acusado e, cercear deste qualquer possibilidade de demonstrar inocência quando atingido o critério objetivo da idade da vítima. Demonstrado fica, então, que, s ob esta perspectiva, os meios de defesa são atingidos. Não haverá, pois, meios e nem será ampla a defesa, uma vez que provada a autoria e excluindo-se os casos de erro de tipo (desconhecimento da idade real da v ítima), estar-se-ia diante de uma culpabilidade antecipada comprovada. Fato que sem dúvida coloca em risco o justo andamento que deve imperar em todo e qualquer processo, principalmente na seara penal. Cabe ressaltar que tais princípios são imprescindíveis a todo o ordenamento jurídico, baseando não apenas o Direito Penal, mas todo o sistema jurídico brasileiro, a fim de preservar o Estado Democrático de Direito. Presumir a vulnerabilidade como absoluta opõe-se aos princípios já mencionados, o que, sem dúvida, é inaceitável. (SILVA, 2010).

 O contexto atual da sociedade não permite confirmar com absoluta precisão que um jovem com idade menor que 14 (quatorze) anos seja totalmente vulnerável ou que não possua o entendimento do que seja uma relação sexual sadia ou abusiva.

Não há dúvidas que de que o legislador buscou punir severamente o ato da conjunção carnal praticado em face dos menores de 14 (quatorze) anos, uma vez que todo dia é noticiado casos graves de pedofilia. Entretanto, é necessário discernir o limite da norma penal para que não haja graves injustiças.

Sobre o tema, Guimarães traz o seguinte entendimento:

C ontudo, atribuir caráter absoluto a vulnerabilidade, trás conseqüência graves para o bom funcionamento do nosso ordenamento jurídico, principalmente quando esse caráter absoluto se torna incompatível com a própria base principiológica que baseia a responsabilidade penal no Direito Brasileiro. O ordenamento jurídico brasileiro adota a responsabilidade penal subjetiva, ou seja, a culpa e dolo devem ser provados, pois não é admissível a presunção de culpabilidade. É com apoio na responsabilidade subjetiva que não devemos considerar a vulnerabilidade absoluta, isso porque a vulnerabilidade absoluta ignora qualquer discussão quanto a culpa e o dolo do agente, considerando desde o primeiro momento culpado o agente que mantiver praticas sexuais com menores de 14 anos. [...] no Direito Penal brasileiro a responsabilidade é subjetiva, assim, para não estipularmos o temível instituto da imputação por responsabilidade penal objetiva, para que o agente seja considerado culpado, deve se analisar caso a caso a vulnerabilidade da vítima. Isso porque se consideramos a vulnerabilidade no seu caráter absoluto, não será possível a produção de provas em contrário, ou seja, qualquer pessoa que mantiver relações sexuais com menor de 14 anos será o sujeito ativo do crime de estupro de vulnerável (GUIMARÃES, 2011, p. 52).

Portanto, é bom senso considerar como relativa a presunção de vulnerabilidade do presente delito, pois se assim não o for, muitos outros direitos são violados, havendo claro cerceamento da defesa.  Ainda, relativizar tal crime afastaria a responsabilidade penal objetiva que é vedada em nosso ordenamento jurídico.

Cumpre esclarecer que essa relativização seria uma exceção a regra, de maneira que o crime previsto de estupro de vulnerável não desapareceria e nem teria prejudicada sua finalidade, que é a proteção da criança e adolescente dos indivíduos aproveitadores e pedófilos existentes na sociedade.


VII O Princípio da intervenção mínima e bom senso para a solução do conflito

Conforme já elucidado, a presunção aferida de maneira absoluta abre espaços para injustiças que podem ser irreparáveis. Com por exemplo retirar a liberdade de uma pessoa absolutamente inocente.

Júlio Fabbrini Mirabete explana que:

Não se caracteriza o crime, quando a menor de 14 anos se mostra experiente em matéria sexual; já havia mantido relações sexuais com outros indivíduos; é despudorada e sem moral; é corrompida; apresenta péssimo comportamento. Por outro lado, persiste o crime ainda quando menor não é mais virgem, é leviana, é fácil e namoradeira ou apresenta liberdade de costumes (MIRABETE, 2008, p. 478).

Perceba-se, portanto, uma grande interferência do Estado na vida intima das pessoas e, o pior, de maneira desproporcional com as necessidades e a realidade social, conforme baliza do princípio da intervenção mínimo. No momento em que o jovem deseja buscar e consente com a prática do ato sexual, não deve puni-lo, lembrando que punir seus parceiros também é puni-lo, pois de vítima, em alguns casos, não tem nada.

Não é proporcional punir um indivíduo quando não resta comprovada a prática da pedofilia, exploração sexual ou vítima vulnerável, pois se assim o fizer, a intervenção estatal mostra-se demasiada. Um país de dimensão continental como o Brasil, como vários problemas sociais e de criminalidade, não deveria colaborar ainda mais para as injustiças.


CONCLUSÃO

O Direito Penal, portanto, deve interferir o mínimo possível na intimidade da pessoa, sendo absolutamente necessário para manter a paz social e criminalizar condutas que estão em descompasso a vida social em harmonia. Havendo a possibilidade de se aplicar um recurso mais leve e eficaz, não faz sentido aplicar um mais pesado e traumático, sob pena de se tornar abusivo e desproporcional, ferindo dentre vários princípios o princípio da dignidade da pessoa humana.

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