6. O Ministério Público como assistente simples: a necessidade de uma nova leitura do instituto da assistência
Certamente, a proposta veiculada neste trabalho causará perplexidade, caso o instituto da assistência seja pensado em seus moldes clássicos, limitado ao direito individual e, normalmente, patrimonial.
Fredie Didier Júnior, com razão, assinala que toda a construção dogmática acerca dos institutos da intervenção de terceiros pauta-se por idéias criadas na época em que o processo tinha uma concepção puramente individualista, servindo como mecanismo de solução de conflitos individuais, destacando que o fenômeno interventivo diz respeito, sobretudo, ao problema da legitimidade, que sofre inúmeras derrogações com o aprimoramento da tutela coletiva. [68]
Nesse sentido, entendemos que deve ser conferido um novo enfoque ao ingresso do terceiro no processo, a partir da concepção constitucional do amplo acesso à justiça e da necessidade de um debate democrático em processos que na realidade transcendem os direitos das partes envolvidas, de modo que se confira à assistência o máximo de eficácia que a nova realidade jurídica autoriza. [69]
Estamos vivendo uma época em que não só o direito processual, mas também o direito material vem se modificando e o Ministério Público assume particular posição nessa mudança do direito, especialmente em razão de seu novo perfil constitucional, que possibilitou sua presença do denominado "processo civil de interesse público". [70]
No processo civil, estamos sendo convidados a reler princípios e a renunciar a dogmas [71] e é o que procuramos fazer neste trabalho. Temos uma nova realidade no Direito Material, especialmente no Direito Público, e no Direito Processual, tanto assim que se fala em um novo ramo – o Direito Processual Coletivo [72] -, com amplo destaque ao papel do Ministério Público.
Estamos, portanto, diante de uma nova situação, que não pode ser resolvida pela simples aplicação de raciocínios estabelecidos em outra realidade, em uma espécie de interpretação retrospectiva, para nos valermos de mais uma expressão de Barbosa Moreira.
Um exemplo de como não se deve resolver a questão debatida neste trabalho foi fornecido por uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que analisou a questão como se tratasse de hipótese de intervenção como custos legis e ainda exigiu que houvesse lei autorizando expressamente eventual intervenção do Ministério Público como assistente, como se não houvesse o Código de Processo Civil e a Constituição. [73]
O Direito não pode ser interpretado sem que haja uma leitura sistemática [74], sob pena de chegarmos a conclusões juridicamente insustentáveis como esta antes mencionada.
Além de o próprio sistema já autorizar a intervenção do Ministério Público como assistente, na medida em que é reconhecida a existência de interesse institucional, é importante lembrar que vem ocorrendo uma abertura legislativa do instituto da assistência, já que o legislador pode dispensar a existência de efetivo interesse jurídico para o ingresso de terceiro no processo. [75] O artigo 5o da lei nº 9469/97 dispensa a demonstração da existência de interesse jurídico por parte das pessoas que enumera e o artigo 49, parágrafo único, da Lei 8906/94, autoriza a OAB ser assistente de um de seus membros em caso de violação de direitos da classe. [76] Essa tendência de abertura, embora realmente sejam discutíveis os critérios adotados, deve ser levada em consideração na moderna interpretação da assistência.
Na realidade, o critério utilizado pelo legislador, ao estabelecer os requisitos para o ingresso de um terceiro em processo pendente, responde a "motivos de política judiciária", como bem identificou Donaldo Armelin, que prossegue afirmando que, "a rigor, a regra que deveria presidir a outorga aos terceiros de legitimidade para intervir em processo alheio seria a que estabelecesse um justo equilíbrio entre a lesividade do prejuízo emergente de tal processo para o terceiro e as conseqüências negativas para as partes da intervenção desse terceiro no processo". [77]
No caso da intervenção do Ministério Público, a nova realidade jurídica recomenda sua atuação como assistente nas hipóteses que delimitamos, sendo inegável que há um justo equilíbrio entre a extrema lesividade que pode emergir do processo e as conseqüências de sua intervenção, recomendando-se, pois, a admissibilidade desta intervenção.
7. Observações finais:
Todo processo possui uma dimensão de interesse público, não cabendo mais a antiga idéia de que seja mera "coisa das partes", como se pertencesse somente aos litigantes. [78] Certamente essa dimensão de interesse público comporta gradação, mas sem dúvida um processo "individual" em que se discutam questões institucionais possui carga de interesse público suficiente para autorizar o ingresso de um terceiro, no caso o próprio Ministério Público, que tenha seu interesse institucional em risco.
A maior visibilidade [79] alcançada pelo Ministério Público, especialmente por meio de atuações firmes contra interesses que até então não eram "importunados", veio acompanhada de uma forte reação, que encontrou um de seus instrumentos de intimidação nas ações ajuizadas diretamente contra seus membros. Possibilitar a participação da Instituição nesses processos é homenagear o próprio interesse público e o próprio Estado Democrático de Direito, já que o que menos se precisa neste país é de um Ministério Público fraco e omisso. O Ministério Público tem que se preservar e a intervenção como assistente é um dos diversos meios legítimos de que dispõe.
Em tempos em que ser processado pelo Ministério Público constitui-se praticamente em ofensa pessoal e a improcedência de um pedido formulado por um Promotor ou Procurador é sinônimo de atuação leviana, como se apenas ao Ministério Público estivesse reservada a teoria concreta da ação, é necessário que a Instituição também cuide de sua própria preservação, especialmente se estiver em risco a fundamental independência funcional.
Possibilitar a intervenção do Ministério Público como assistente simples em processo contra seus membros, em razão de legítima atuação funcional, a partir da noção de interesse institucional, é fazer com que o processo sirva às partes, mas também, e sobretudo, à sociedade [80], que é a quem, afinal, serve uma Instituição atuante e independente.
8- Tese:
Com base no que foi exposto, é proposta a seguinte tese: vislumbrando a existência de interesse institucional, poderá o Ministério Público, por meio do Procurador Geral, intervir como assistente simples em processo que potencialmente possa acarretar prejuízo sua situação jurídica. [81]
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