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Yulin Meat Festival, imposição cultural ou necessidade de reinterpretação jurídica?

Agenda 27/02/2020 às 20:00

A diversidade cultural não deve ignorar seu próprio dinamismo, tampouco deve se sobrepor à dignidade humana. Mas quais seus limites? Reflete-se sobre o polêmico "Festival da Carne de Yulin", realizado anualmente na China.

Ao longo do tempo, o Direito passou por diversas modificações e alterações, tanto estruturais e formais de seu aparato, quanto em relação à prática interpretativa e o papel dos juízes. Essas mudanças são conseqüências naturais da modificação das perspectivas das sociedades e os acontecimentos históricos que alteraram suas dinâmicas sociais. As alterações dos paradigmas e o aumento da complexidade das sociedades tornaram as articulações e a definição dos deveres e direitos, tal como a importância e definição dos princípios jurídicos mais complexos, resultando em uma constante necessidade de adaptação do mesmo.

O Direito surge, assim, definido como um conjunto de normas e regras que teriam o papel e a função de regular as relações e resolver os conflitos sociais, garantindo a segurança, tanto jurídica quanto física e promovendo regras de atuação que garantam a preservação dos direitos individuais e coletivos das comunidades e pessoas.

No que tange ao papel do Direito como solucionador de conflitos, destaca-se aqueles que são frutos de divergências ideológicas, espelhadas pela elevada pluralidade cultural e a inexistência de um “ordenamento único”. A diversidade cultural e as individualidades históricas de cada país, comunidade ou sociedade, por vezes, estiveram relacionadas a conflitos sociais, sobretudo, a partir do crescimento da globalização e advento da Revolução Industrial. A pluralidade Cultural estaria, portanto, relacionada ao respeito e garantia ao conhecimento e à valorização de características étnicas e culturais, tal como os costumes, tradições e crenças, dos diferentes grupos sociais de uma ou demais sociedades com base na proteção contra possíveis práticas discriminatórias e excludentes que inferiorizem uma característica majoritária ou minoritária.

Desta forma, o desenvolvimento de manifestações contrárias a determinados costumes sociais e tradições específicas de algumas sociedades passa a levantar questionamento quanto à existência de uma moralidade universal, tal como seu embate frente à questão do preconceito, imposição político-cultural sobre sociedades minoritárias e um possível limite imposto à liberdade de expressão.

Dentre os conflitos fortalecidos, principalmente, no final do século 20 e início do século 21, cabe citar o crescente número de protestos e manifestações contra um conhecido festival da cultural chinesa, o “Yulin Meat Festival”, ou “Festival da carne de Yulin”. Fortalecidos pelo apoio de centenas de ONGs e Projetos que atuam em prol dos direitos dos animais e crescimento da cultura vegana mundial, uma grande onda de protestos e manifestações, espalhados por todo mundo, buscaram reivindicar o fim e a proibição desse festival dentro da cultura chinesa. Dentre suas principais pautas, os manifestantes denunciavam os casos de maus tratos aos animais comercializados durante a festa e a proibição do consumo da carne de cachorro a partir de uma definição desse costume como uma “tradição moralmente inaceitável”.

O Festival de Yulin é uma celebração chinesa, iniciada no ano de 2009, que tem por objetivo a comemoração do solstício de inverno. O evento acontece anualmente e é uma das principais fontes de renda da cidade de Yulin, localizada ao sul da china. Com duração de 9 dias, o festival é responsável pela atração de cerca de trinta mil pessoas para a cidade, desta forma, na última década, a festa passou a ser fonte de renda não só para os comerciantes, que vendem a carne de cachorro, mas também para as diversas famílias da região, que lutam contra uma grave crise econômica e social.

 Estima-se que no ano de 2018, cerca de 20 mil cachorros tenham sido mortos e comercializados durante os 9 dias de festival, esse número apesar de assustarem parte da população mundial, é visto com naturalidade pela maioria dos chineses. A tradição do consumo de carne de cachorro começou há mais de 4000 anos na China. Os praticantes da tradicional medicina chinesa acreditam que a carne de cachorro ajuda a afastar o calor sentido durante os meses de verão. Esse costume e pensamento estariam relacionados à uma tradição histórica e cultural secular chinesa de consumo de carne de cachorros, muitas vezes, incentivados pelo próprio governo e rejeitada por grande parte das outras culturas, sobretudo países ocidentais.

Dentre os argumentos daqueles que defendem a realização do festival de Yulin, destaca-se a invocação do direito à liberdade de manifestação cultural e preservação da história cultural chinesa. Definem a tentativa de proibição de realização do festival como uma “imposição cultural” pautada no preconceito sobre as comunidades chinesas e suas tradições. Destacam também, a importância econômica do festival para a cidade. Segundo eles, o festival e a venda das carnes de cachorros são a principal fonte de renda de um elevado número famílias da região e, a proibição da realização da comercialização da carne canina no país colocaria em risco a saúde, segurança e liberdade dessas comunidades e iria de encontro com o papel do Estado e do Direito de garantir a seguridade social e os direitos individuais.

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  Outro argumento utilizado por esses comerciantes para legitimação da prática da comercialização da carne canina em território chinês parte de uma comparação desse costume com outro ocidental mundialmente disseminado e moralmente aceito, a criação e comercialização da carne bovina ocidental. Os cachorros comercializados de nada se difeririam do gado comercializado, uma vez que também eram criados em fazendas com o objetivo final de serem abatidos e comercializados. Portanto, segundo os mesmos, as manifestações contrárias ao festival não estariam pautadas numa questão de defesa dos direitos animais, mas sim, no preconceito e numa afronta quanto à cultura chinesa que entende o consumo de carne canina como uma prática normal.

 Apesar das diversas manifestações e iniciativas populares ao redor do mundo, a exemplo a resolução bipartidária, em 2016, formulada pela deputada estadunidense Alcee Hastings, que condena o festival e pede ao governo chinês que proíba o comércio de carne de cachorro, assim como as manifestações acontecidas em maio e junho, no Brasil, que recolheram mais de duas milhões de assinaturas em um abaixo assinado entregue à embaixada chinesa no Brasil, até então, nenhum documento relacionado á existência de “fazendas de criação de cachorrros” foi disponibilizado pelo governo Chinês.

Isso torna o argumento dos comerciantes de Yulin praticamente ignorado pelas comunidades internacionais, dando força para novos questionamentos por parte dos manifestantes, frente à real origem desses animais comercializados, as questões sanitárias, os casos de rapto de animais domésticos, além dos maus tratos sofridos por esses animais... Tornando, ainda mais complexo, o embate e a tomada de decisão, nesse caso. "A maioria destes animais são animais de estimação roubados, e a maioria dos caminhões que os transportam violam as leis muito explícitas da China sobre os animais destinados ao consumo humano” (Adam Parascandola)

A complexidade do caso, tanto por conta da dificuldade de determinação de uma constitucionalização de uma tradição, tal como a necessidade de análise, a partir de uma visão consequencialista, que buscaria diminuir os danos causados às comunidades atingidas pela possível proibição da lei colocam em cheque a atuação do Direito frente a esses “hard cases”, ou “casos difíceis”. O embate entre a as “tradições locais” e as “praticas moralmente aceitas” tornam-se, desta forma, cada vez mais comuns conforme o Direito se modifica e as sociedades estabelecem novos paradigmas e relações mais complexas.

Essas alterações reanimam os debates frentes ao papel que deve ser estabelecido pelo Direito nesses casos, assim como a visão de autores famosos sobre as condutas do aparato jurídico, dos juízes e da conceituação da “Justiça”.

Direito e Justiça são conceitos que se entrelaçam, a tal ponto de serem considerados uma só coisa pela consciência social. Fala-se no Direito com o sentido de Justiça e vice-versa. Sabemos todos, entretanto, que nem sempre eles andam juntos. Nem tudo que é direito é justo e nem tudo que é justo é direito. (CAVALIERI FILHO, 2002)

O caso do festival de Yulin assemelha-se a outros por estarem caracterizados pela divergência de duas ou mais tradições culturais. A exemplo desse, temos o caso, já julgado, do infanticídio indígena em terras brasileiras. Esses casos conduzem o Direito a uma construção e estruturação mais completa e abrangente das relações sociais. O compartilhamento de experiências culturais de diferentes sociedades, países e comunidades é comum e necessário para que seus membros pensem em sua organização, preceitos, ideologias e possam garantir uma convivência harmônica, essa necessidade está diretamente relacionada ao relativismo ético.

Entretanto, a importância da diversidade cultural não deve ignorar seu dinamismo, uma vez que alterações são necessárias e acontecem. Essas considerações, todavia, não devem significar uma tolerância à violação da dignidade humana e de outros princípios resguardados pelo Direito, uma vez que o impedimento de diálogo entre diferentes culturas dificulta a identificação de características e condições humanas comuns.

Por fim, torna-se evidente que o conflito referente ao Festival de Yulin, assim como os demais casos que envolvem a oposição de ideologias históricas e questões culturais, influencia o Direito de forma a tornar o papel dos juízes e dos legisladores ainda mais complexos. Esses embates são naturais, a partir das modificações das concepções das sociedades e mudanças de paradigmas, e devem ser vistos como vias de modificação do próprio direito, uma vez que esse deve acompanhar a modificação dos conceitos sociais e interesses das comunidades e pessoas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A grande matança chinesa de cachorros para serem comidos na festa de Yulin – 2018 . Disponível em:< https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/21/internacional/1529561996_ 120987.html>.Acesso em: 20 jun. 2019.

ATIENZA, Manuel. Filosofia Del derecho y transformación social. Madrid: Trotta, 2017, PP-15-46 (Capítulo 1. Una Idea del derecho).

Ativistas protestam contra festival de carne canina na China – 2015 – Disponível em: < https://exame.abril.com.br/mundo/ativistas-protestam-contra-festival-de-carne-canina -na-china/>. Acesso em: 21 jun. 2019.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Direito, Justiça e Sociedade.  Revista da EMERJ, v.5, n.18, 2002.

FREITAS, Denise - A pluralidade e a diversidade cultural – Disponível em: <https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/direito/a-pluralidade-e-a-divers idade-cultural/67628>. Acesso em: 20 jun. 2019.

Infanticídio Indígena–2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/61370/infantic ídio-indigena>.Acesso em: 20 jun. 2019.

2,3 milhões de pessoas apoiam fim de festival de carne de cachorro - 2019 - <https://catracalivre.com.br/cidadania/23-milhoes-de-pessoas-apoiam-fim-de-festival-de-carne-de-cachorro/> Acesso em: 20 jun. 2019.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Lucas Moreira. Yulin Meat Festival, imposição cultural ou necessidade de reinterpretação jurídica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6084, 27 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79739. Acesso em: 5 nov. 2024.

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