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Esterilização voluntária

A esterilização voluntária faz parte do planejamento familiar, direito que deve ser exercido livremente por todo cidadão. Entretanto, a Lei 9.263/96 estabelece uma série de requisitos para a sua realização.

Entende-se por planejamento familiar o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. A Constituição Federal garante que tal planejamento é de livre decisão do casal, devendo o Estado garantir recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (art. 226, §7°).

A Lei n. 9.263/96, que trata do planejamento familiar, elenca alguns requisitos para a realização da esterilização voluntária:

- Homens e mulheres devem ter capacidade civil plena e serem maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce ou existência de risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos;

- Consentimento expresso de ambos os cônjuges, na vigência de sociedade conjugal;

- Registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes[1].

- Autorização judicial para esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes.

Há, ainda, a vedação de realização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto. As exceções, previstas na Lei e na Portaria 48/99 do Ministério da Saúde, são:

- Casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores;

- Quando a mulher for portadora de doença de base e a exposição a segundo ato cirúrgico ou anestésico representar maior risco para sua saúde. Neste caso, a indicação deverá ser testemunhada em relatório escrito e assinado por dois médicos.

Importante ressaltar que a Lei tipifica como crime a realização de esterilização sem observação dos seus requisitos.

Entende-se que o espírito da Lei n. 9.263/96 foi evitar arrependimentos posteriores às esterilizações, bem como, no caso da proibição da realização no momento do parto, desincentivar a indicação de cesariana tão somente para a prática de laqueadura tubária.

Porém, na prática, está se tirando um direito de escolha da mulher e do médico, o qual, mesmo quando acredita que a laqueadura requerida pela paciente tem indicação de ser realizada no momento do parto, por exemplo, não pode realizá-la.

Sobre o tema, segue trecho do Parecer n° 08/2004 do CREMEC:

“Devemos ter a clareza de que se a laqueadura não for efetuada no momento do parto (durante uma operação cesariana ou laqueadura peri-umbilical nos casos de parto transpélvico), implicará em ocorrências possíveis e previsíveis: a mulher deverá internar-se algum tempo depois do parto, redundando numa nova internação; deverá passar por novo processo anestésico e cirúrgico; as atribulações do dia-a-dia, com os seus afazeres domésticos e/ou profissionais, a impedirão de nova internação; e, o pior, muitas vezes procurará o serviço tempos depois com uma nova gravidez.

(...)

Apesar dos nossos questionamentos e discordâncias, os Conselhos de Medicina são órgãos públicos e, como tal, deverão emitir seus pareceres e resolução em consonância com a legislação pátria. Possíveis incongruências legais devem nos motivar no sentido de lutar para modificação das leis e não para infringi-las. Devemos lutar também para que os gestores implementem pelo menos o que é legalmente estabelecido e para que os direitos da população sejam assegurados.”

Nesse espírito de luta, existem duas ações tramitando no STF que questionam os requisitos colocados em Lei (Adin n. 5.911 e 5.097). As ações encontram-se com o Relator, Ministro Celso de Mello, e não têm data para o veredicto. Ambas questionam a exigência de consenso do cônjuge para a realização da esterilização, havendo também questionamento acerca da exigência de idade mínima de 25 anos para a tomada da decisão, bem como sobre a impossibilidade de realizar o procedimento durante os períodos de parto ou aborto.

Ainda, no mesmo sentido, está tramitando no Congresso Nacional o Projeto de Lei 406/2018, de autoria da Senadora Ione Guimarães, que busca desburocratizar o acesso à esterilização voluntária. A proposta retira a idade mínima e número mínimo de filhos como requisitos para a realização de cirurgia de esterilização, bem como não proíbe a realização da esterilização no momento do parto. Sobre o tema, são justificativas da Senadora:

“Isso obriga a paciente a passar por duas internações, uma para o parto e outra para a esterilização, o que aumenta sua exposição ao ambiente hospitalar e às infecções hospitalares, força a lactante a abandonar o acompanhamento do bebê e acarreta maiores custos para os serviços de saúde.”[2]

De fato, quando pensamos nos inúmeros requisitos legais, aparentemente existe interferência demasiada do Estado na autonomia de vontade do ser humano, que tem sua dignidade assegurada na Constituição, a qual também prevê a liberdade no planejamento familiar, razão pela qual se impõe, com certa urgência, a análise do STF das ações mencionadas e a atuação célere do Congresso Nacional.

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Enquanto não há decisão da Corte Superior ou alteração legal, muitas mulheres buscam na Justiça o direito de poder escolher o momento de realizar a esterilização voluntária, independente dos requisitos legais. Analisamos decisões de todo o Brasil e, muitas vezes, é concedida autorização judicial para a realização do procedimento[3]. Há decisões, inclusive, que obrigam o plano de saúde a arcar com os custos[4].

Tendo em conta os pontos de vista trazidos, as legislações vigentes e os recentes posicionamentos do Judiciário, vem a pergunta: o que o médico deve fazer para realizar o procedimento de esterilização voluntária de forma segura? Eis as nossas sugestões:

- nos casos sem risco de vida ou à saúde, observar o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, encaminhando a(o) paciente à serviço de regulação da fecundidade, o qual inclui aconselhamento por equipe multidisciplinar;

- fazer constar no prontuário médico o registro de expressa manifestação da vontade do(a) paciente em documento escrito e firmado apenas após a informação dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldade de reversão e opções de contracepção reversíveis existentes;

- executar a esterilização cirúrgica somente por laqueadura tubária, vasectomia ou outro método cientificamente aceito, sendo vedada por meio de histerectomia e ooforectomia;

- em caso de risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, a realização de relatório médico escrito e assinado por dois médicos antes da cirurgia;

- não realizar a esterilização cirúrgica em mulher durante períodos de parto, aborto ou até o 42º dia do pós-parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores, ou quando a mulher for portadora de doença de base e a exposição a segundo ato cirúrgico ou anestésico representar maior risco para sua saúde. Nesses casos, igualmente se faz necessária a elaboração de relatório médico escrito e assinado por dois médicos antes da realização do procedimento;

- se certificar de que à esterilização cirúrgica realizada será objeto de notificação compulsória à direção do SUS, visto que essa também é uma exigência legal.

Por fim, conforme recomendações da Associação de Obstetrícia de Ginecologia do Estado de São Paulo[5]:

“Caso a paciente tenha uma decisão (ou alvará) judicial garantindo-lhe o direito de realizar a cirurgia de esterilização sem cumprir as regras legais, o médico pode realizar o procedimento sem qualquer receio de ser processado pela Justiça ou pelo Conselho de Medicina, devendo ainda assim obter o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A decisão judicial garante à paciente o direito de realizar a laqueadura fora das regras legais. Caso o médico tenha alguma objeção de consciência, tem o direito de não realizar o procedimento, devendo encaminhar a paciente a outro profissional.”

Mais uma vez, reforçamos a importância da informação dada ao paciente, que deve ser bem instruído sobre os requisitos legais e, quando for o caso, sobre a impossibilidade de realizar o procedimento. Isso garante que a relação médico-paciente seja construída com transparência e segurança.  


Notas

[1] Não será considerada a manifestação de vontade expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.

[2] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7874796&ts=1567534220207&disposition=inline 

[3] “(...) Com efeito, a pretensão da agravante de se submeter ao procedimento de laqueadura por ocasião do parto, seja ele normal, seja ele cesárea, está fundada na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF), e no direito ao planejamento familiar, o qual, no caso, é de livre decisão da recorrente, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (artigo 226, § 7º, da CF). (...) Em outras palavras, a recorrida é solteira, está na sua décima gestação e tem sete filhos vivos (fls. 15/22).

De outro lado, assim procedendo, é possível minimizar riscos e desdobramentos inerentes à segunda intervenção.

Outrossim, não há que se falar em prescrição médica para esterilização em apreço, pois se trata de submissão voluntária.(...)”

(TJSP;  Agravo de Instrumento 2208858-75.2018.8.26.0000; Relator (a): Osvaldo de Oliveira; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Foro de Santa Cruz das Palmeiras - Vara Única; Data do Julgamento: 25/02/2019; Data de Registro: 25/02/2019) 

“(...) 4.13. Contudo, afigura-se desproporcional a leitura demasiadamente formal da exigência constante da lei quanto à existência de “cesarianas sucessivas”, ou de “efetivo risco a vida”, para que a esterilização seja efetivada no mesmo ato do segundo parto. 4.17. Assim, independentemente da preexistência de uma doença, ou efetivo risco à vida da paciente, deve ser garantido à autora o acesso ao conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole, sendo inválida a cláusula do contrato que desrespeita o comando legal de que os planos de saúde atendam às necessidades correspondentes à materialização do planejamento familiar, expressão certa da dignidade da pessoa humana. 4.18.Não obstante, no presente caso, a “comprovada necessidade” da laqueadura tubária pode ser extraída da própria indicação médica, no sentido da sua realização logo após o parto cesáreo, como forma de evitar a realização de nova cirurgia, preservando a saúde e a vida da paciente, a qual, aliás, já havia realizado “cesárea” anterior.(...)”

(TJPR - 9ª C.Cível - 0021579-97.2017.8.16.0030 - Foz do Iguaçu -  Rel.: Desembargador Arquelau Araujo Ribas -  J. 21.10.2019) 

[4] “(...) A par do preenchimento dos outros requisitos legais (faixa etária, capacidade civil plena, emissão de termo de consentimento com prazo mínimo à realização da cirurgia de parto, quantidade mínima de dois filhos vivos e acompanhamento de equipe médica e psicológica), à autora faltaria um requisito principalmente para que a cirurgia se realizasse no próprio ato do parto, a demonstração de efetiva necessidade por conta de cesarianas sucessivas anteriores (parágrafo segundo do artigo 10), visto que seus partos anteriores foram normais. Em paralelo, para a ré, faltaria também à autora preencher a questão da cobertura contratual, visto que a esterilização voluntária, sem risco à vida, não estaria contemplada no rol de cobertura, já que não previsto no rol obrigatório da ANS. Muito embora relevantes os argumentos, apresentados por ocasião da resposta de negativa de cobertura enviada à paciente (fls. 13) e aqui renovados na apelação, não vinga o inconformismo da requerida Central Nacional Unimed. Há de prevalecer o direito da autora a ações de regulação da fecundidade que lhe permitam dispor sobre a sua prole, sendo inválida a cláusula do contrato que desrespeita o comando legal de que os planos de saúde atendam às necessidades correspondentes à materialização do planejamento familiar, expressão certa da dignidade da pessoa humana. Ainda que discorde a ré-apelante, a demonstração da efetiva necessidade à laqueadura tubária está devidamente caracterizada nos autos, à vista das declarações prestadas pela médica obstetra que atestaram a adequada emissão de consentimento e manifestação de vontade da parte autora em realizar a esterilização com vistas ao planejamento familiar, com a indicação de conhecimento da advertência sobre os riscos associados ao procedimento, especialmente efeitos colaterais, dificuldade de reversão e opções de contracepção reversíveis existentes (fls. 12 e 14/15). A legislação é clara e deferente à observância da deliberação dos médicos, profissionais capacitados para verificar os riscos à saúde dos pacientes, em questões que envolvem a realização de laqueadura em mulheres. Não obstante esse fator, é realmente desproporcional a leitura demasiado formal de exigência constante da lei quanto à existência de cesarianas sucessivas, ou de efetivo risco a vida, para que a esterilização seja efetivada no mesmo ato do segundo parto. (...)

(TJSP; Apelação Cível 1000457-79.2018.8.26.0100; Relator (a): Piva Rodrigues; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 24ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/02/2019; Data de Registro: 07/02/2019) 

“(...) 4. Após compulsar detidamente os autos, é possível observar que a Agencia Reguladora de Saúde possui cartilha com registro de requisitos necessários para que as operadoras de saúde fiscalizem antes de autorizar o procedimento cirúrgico de laqueadura. 5. Ademais, em tais requisitos há previsão de que é vedada a realização de laqueadura tubária durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores. 6. Ocorre que, os direitos fundamentais à vida e à saúde e ao planejamento familiar, indissociáveis entre si, gozam de proteção constitucional, cujo texto magno reserva especial abrigo à dignidade da pessoa humana, condutor interpretativo de toda e qualquer legislação vigente em nosso País. (...) 12. Com efeito, já que as provas dos autos demonstraram que a parte autora cumpriu os requisitos necessários para a realização do procedimento de laqueadura tubária, incluindo a apresentação de formulário preenchido juntamente com o seu marido, divirjo, data vênia, do entendimento da Magistrada prolatora. 11. A petição da parte autora foi instruída com documentos suficientes para comprovar que o requerimento do procedimento cirúrgico objeto da lide decorreu de exercício regular de direito ao planejamento familiar, conforme estabelece o art. 226, §7º da CF/88 c/c ART. 3º da lei 9.263/96. 12. Neste sentido, o tipo de restrição que a empresa busca prevalecer, mostra-se incompatível com os princípios da boa-fé e da equidade, expressando, ainda, conforme ressaltado, manifesta contradição em relação à própria finalidade e natureza do contrato de saúde.”

(TJBA. Classe: Recurso Inominado, Número do Processo: 0008244-45.2017.8.05.0150, Relator(a): MARIA VIRGINIA ANDRADE DE FREITAS CRUZ, Publicado em: 04/11/2018) 

[5] https://www.sogesp.com.br/noticias/laqueadura-informacoes/

Sobre as autoras
Ana Beatriz Nieto Martins

Advogada (OAB/SP 356.287), sócia no escritório Dantas & Martins Advogadas Associadas, voltado o atendimento de profissionais da saúde, realizando diagnóstico de riscos jurídicos e elaborando condutas preventivas que permitam uma atuação segura e tranquila.

Erika Evangelista Dantas

Advogada (OAB/SP 434.502), sócia do escritório de advocacia Dantas & Martins Advogadas Associadas, especializado em direito da saúde.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Ana Beatriz Nieto; DANTAS, Erika Evangelista. Esterilização voluntária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6102, 16 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80127. Acesso em: 22 dez. 2024.

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