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A Lei 13979/2020 e a violação do direito de autodeterminação frente a intervenção médica

Agenda 29/03/2020 às 21:23

Palavras-chave: Isolamento; quarentena; restrições a direitos fundamentais; constitucionalidade; lei 13979/20

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais a população mundial vem sofrendo com a propagação do virus Covid-19, que tem como características a rápida propagação e a fácil forma de transmissão, rapidamente o vírus, que provavelmente teve origem na China, alcançou o restante do mundo fazendo com que a Organização Mundial da Saúde, classificasse a enfermidade, amplamente disseminada como pandemia. 

A rápida propagação da doença fez com que milhares de pessoas procurassem o sistema de saúde dos seus respectivos países ao mesmo tempo, o que gerou uma crise no sistema de saúde de diversos Estados, os quais não tinham capacidade de receber tantos pacientes de uma só vez, o que causou milhares de mortes ao redor do mundo.

A doença, então chegou ao Brasil e as autoridades, visando evitar que as pessoas se infectassem de forma uniforme e assim congestionassem o sistema de saúde tomaram algumas medidas restritivas, as quais vão de encontro a alguns direitos individuais, considerados fundamentais para a nossa Carta Magna.

LEI 13979/20

Em 6 de fevereiro de 2020, o presidente da República promulgou a lei de número 13979/2020, trata-se de uma lei excepcional, a qual “Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.

Seu bojo, a lei, trouxe uma série de medidas, a qual o Estado poderá adotar, dentre as quais algumas medidas extremamente invasivas, interferindo diretamente sobre o indivíduo, dentre elas trataremos, as previstas no art. 3º, inciso III.

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas

II - determinação de realização compulsória de:

a) exames médicos;

b) testes laboratoriais;

c) coleta de amostras clínicas;

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

e) tratamentos médicos específicos;

Nesse dispositivo o Estado poderá fazer uso da força para que o indivíduo se submeta a uma série de intervenções medicas, deixando de lado sua anuência, o Estado usando de seu poder imperativo, justificando seu comportamento como medida de emergência para o combate ao coronavírus.

DIREITO A SAÚDE  

O direito a saúde é um direito social, considerado um direito fundamental de segunda geração/dimensão, previsto no art. 6º e 196 a 200 da CF/88, Pedro Lenza, define direito a saúde:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.” (pag.1153)

A doutrina aponta a dupla vertente dos direitos sociais, especialmente no tocante a saúde: a) natureza negativa: O Estado ou terceiros devem abster-se de praticar atos que prejudiquem terceiros; b) natureza positiva: fomenta-se um Estado prestacionista para implementar o direito social.

         O Estado tem o dever de enfrentar questões de saúde pública, não podendo se abster, garantindo o direito fundamental a saúde de todos. Portanto, com essa atual crise, trazida pela pandemia do coronavírus é dever do Estado apresentar políticas públicas que visem o enfretamento da disseminação do vírus e tentar ao máximo abrandar os efeitos do Covid-19 no Estado brasileiro.

Antes mesmo de ter sido notificado o primeiro caso da doença em território nacional, o Brasil, de olho no que ocorria no resto do mundo, já havia editado a lei 13.979/20, que trouxe medidas que poderia ser tomadas para combater o coronavírus no Brasil.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

A CF/88 em seu artigo 5º traz um rol exemplificativo, já que temos em toda a constituição exemplos de Direitos e garantias fundamentais, que garante ao indivíduo o exercício da Dignidade da Pessoa Humana frente ao Estado.

Desde os tempos mais remotos o Estado sempre teve autonomia sobre os indivíduos, usando sempre de sua força e autoridade para fazer com que os indivíduos se submetessem às suas regras, que eram impostas, não tinham nenhum cunho humanista, tinham como objetivo apenas demonstrar a força do Estado perante os indivíduos, sendo comparado ao Leviatã por Thomas Hobbes.

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Com o passar dos tempos as perspectivas humanistas foram tomando corpo, dando início ao processo de constitucionalismo, com a Carta Magna de 1215, que trouxe a proteção a direitos individuais importantes.

E a ideia de direitos do cidadão frente ao Estado foi crescendo na sociedade, gerando diversas revoluções que buscavam tornar o estado cada vez menos absolutista, eclodiram na América e na Europa, que tinham como objetivo tornar o indivíduo mais livre, surgindo a ideia dos Direitos humanos de primeira dimensão (direitos civis e políticos), uma ideia liberal de estado.

Com o passar dos tempos foi necessário que se barrassem o liberalismo desenfreado, surgindo na constituição mexicana de 1917 e na constituição de Weimar de 1919, a positivação na constituição dos direitos sociais, considerada o marco da 2ª dimensão dos direitos humanos.

Por fim, ao final da II Guerra Mundial, o mundo perplexo com as barbáries cometidas por ambos os lados e com medo que aquilo voltasse a se repetir, através da criação da ONU, passaram a emitir tratados e convenções que garantissem a proteção aos Direitos Humanos, dentre eles a proteção de direitos difusos e coletivos, presando pela solidariedade dos povos, assim chegamos aos chamados de direitos de terceira dimensão.

DIREITOS DE LIBERDADE, AUTODETERMINAÇÃO

O direito à liberdade, depois do direito à vida, é o mais importante para que o indivíduo exerça sua condição de pessoa humana. Tal direito nos remete a uma série de liberdades, como de locomoção, de crença, de expressão etc. aqui vamos nos atentar ao direito a liberdade de autodeterminação garantindo ao indivíduo não ser submetido a nenhuma intervenção médica por parte do Estado sem sua autorização.

A Autonomia significa autogoverno, autodeterminação da pessoa em tomar decisões relacionadas a sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psiquíca e suas relações sociais. Pressupõe existência de opções, liberdade de escolha e requer que o indivíduo seja capaz de agir de acordo com as deliberações feitas. O respeito à autodeterminação fundamenta-se no princípio da dignidade da natureza humana, acatando-se o imperativo categórico kantiano que afirma que o ser humano é um fim em si mesmo.

Algumas variáveis contribuem para que um indivíduo torne-se autônomo, tais como condições biológicas, psíquicas e sociais. Podem existir situações transitórias ou permanentes que uma pessoa pode ter uma autonomia diminuída, cabendo a terceiros o papel de decidir. A autonomia não deve ser confundida com individualismo, seus limites são estabelecidos com o respeito ao outro e ao coletivo.

            Conforme artigo publicado no CRM/PB:

“Manifestação da essência do princípio da autonomia é o consentimento esclarecido. Todo indivíduo tem direito de consentir ou recusar propostas de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico que tenham potencial de afetar sua integridade físico-psíquica ou social. O consentimento deve ser dado livremente, após completo esclarecimento sobre o procedimento, dentro de um nível intelectual do paciente; renovável e revogável. Para Hewlett, o consentimento apenas é aceito quando possui informação, competência, entendimento e voluntariedade.”

Quando o Estado tem total poder sobre o indivíduo estamos dando margem para que abusos sejam cometidos, para que atrocidades sejam cometidas, justificando suas condutas abusivas no interesse da coletividade. Essa questão foi trazida pelo Código de Nuremberg, no final da II Guerra Mundial, onde médicos e cientistas nazistas foram julgados por fazerem experimentos, de forma coercitiva, em prisioneiros de guerra.

O Código de Nuremberg trouxe requisitos para que serem respeitados, quando dos experimentos realizados em humanos, mas o que mais nos interessa aqui é a obrigatoriedade de um consentimento válido, como essencial, valorando a autodeterminação do indivíduo:

  1. “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente”.

Claro que estamos diante de um cenário completamente distinto, não estamos em um cenário de guerra e nem estamos tratando de experimentos com humanos, porém como podemos observar é que quando o Estado está autorizado a intervir no indivíduo de forma coercitiva, não levando em conta sua autodeterminação, estamos dando ao Estado um poder do qual pode se tornar muito perigoso, caso não exista um freio

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devido ao cenário atual o Governo brasileiro editou leis que violam a autodeterminação do indivíduo, prevendo que o Estado possa de maneira coercitiva obrigar o cidadão a se submeter a diversos procedimentos médicos, sem que haja qualquer tipo de consentimento por parte do indivíduo. Tal medida nos parece extremamente arbitrária, já que ao nosso ver o indivíduo poderia se submeter ao tratamento que achar mais adequado, respeitando a política preventiva, a qual o Estado exige, seja ela isolamento ou quarentena, sendo assim, não teria nenhuma necessidade o uso da força por parte do Estado para que o indivíduo se submeta a um tratamento médico forçado.

Tal medida tem como fundamento a necessidade de implantação por parte do Estado de medidas que visem combater a pandemia do coronavírus, tais medidas não estão previstas em nosso texto constitucional, são medidas copiadas de outros países, os quais as adotaram no momento de crise.

Em que pese essa discussão partir muito para o sopesamento entre a direito coletivo frente ao direito individual, tal argumento não pode ser a todo tempo invocado para legitimar abusos do Estado perante ao indivíduo. Nossa posição é de que apesar de que seja dever do Estado adotar medidas de proteção à saúde, não podemos deixar de lado os princípios constitucionais, que foram construídos com muita luta e sangue.

Medidas excepcionais, que restringem direitos e garantias fundamentais são previstas em nossa Constituição, porém em situações excepcionais, que podem ser decretadas pelo Presidente da República, porém essa situação atual não se encaixa nessas medidas.

Por fim, entendemos que não seria possível através da via legal o Estado obrigar os indivíduos se submeterem a procedimentos médicos de forma compulsória, deixando de lado a autodeterminação do indivíduo, a qual é garantida pela Constituição e ao nosso ver somente a constituição poderia prever institutos que autorizassem tais medidas, como em nosso texto constitucional não há essa previsão, essa lei estaria em desconformidade com nosso ordenamento jurídico, sendo o art. 3º da lei 13979/20 inaplicável por grave afronta aos direitos e garantias fundamentais

   http://www.crmpb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21917:bioetica-o-principio-da-autonomia-e-o-termo-de-consentimento-livre-e-esclarecido&catid=46:artigos&Itemid=483

Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17ed. rev. – São Paulo, Saraiva, 2013

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