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Sistema tributário como instrumento de afirmação e aferição do Estado de direito democrático

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A contribuição do particular para o incremento das receitas públicas faz com que ele seja inserido no âmbito do intrincado mecanismo de funcionamento do Estado, sendo necessário que tal inserção ocorra tão somente no sentido do alcance de uma sociedade justa e solidária.

O presente artigo tem o objetivo de discorrer sobre a utilidade da tributação como elemento de afirmação e aferição da natureza efetivamente democrática do Estado de Direito, apresentando as especificidades do Sistema Tributário nacional que fazem o Brasil ser o que é.


1. INTRODUÇÃO

Os processos de racionalização dos quais resultaram as conjunturas social e econômica modernas levaram ao surgimento daquilo que hoje se entende como Estado: comunidade humana estabelecida em um determinado território, submetida externa e internamente ao uso da força pública estatal, legítima e autorizada.

José Afonso da Silva (2017, pp. 114-124) leciona que a democracia, concebida para a efetivação de determinados valores de convivência harmônica (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana), significa algo mais amplo do que o Estado de Direito, que surgiu como expressão própria do liberalismo.

A evolução demonstrou a insuficiência dos ideais de Estado minimalista e revelou a sua falta de sintonia com as necessidades dos cidadãos, do que surgiu o Estado Social de Direito, não necessariamente democrático.

O Estado Democrático de Direito foi acolhido pela Constituição Brasileira de 1988 no art. 1o. Na República Portuguesa, nomeou-se o Estado como de Direito Democrático (art. 2o da Constituição), modo de dizer que preferimos, pois há estados de direito que não são democráticos, enquanto todos os Estados Democráticos são de Direito.

De acordo com o citado doutrinador, não se trata de uma reunião formal entre o Estado Democrático e o Estado de Direito, mas da irradiação de todos os valores da democracia sobre os elementos constitutivos do Estado e sobre a ordem jurídica: constitucionalismo, representação, participação, pluralismo, direitos fundamentais, justiça social, igualdade, legalidade, distribuição de poderes e segurança jurídica.

Nesse contexto, os tributos surgem como instrumentos essenciais para a efetivação da democracia, caso efetivamente utilizados com vistas à redistribuição transformativa, tendente a elevar para níveis razoáveis a qualidade de vida das camadas da população historicamente desfavorecidas.

Tem-se, para tanto, três funções ou espécies de arrecadação: a) fiscal, quando possui o fim de prover o Estado dos valores necessários para o desenvolvimento das suas atividades típicas; b) extrafiscal, hipótese em que é usada com o objetivo de interferir no domínio econômico para regular determinados setores e c) parafiscal, situação na qual a pessoa política de direito público interno detentora da competência plena, mediante lei, delega a terceiros a capacidade ativa, de maneira que possam arrecadar e fiscalizar.

O presente artigo tem o objetivo de discorrer sobre a utilidade da tributação enquanto elemento de afirmação e de aferição da natureza realmente democrática de um Estado de Direito, apresentando as especificidades do Sistema Tributário nacional que fazem o Brasil ser o que é.

As escolhas dos mecanismos, formas e bases de tributação configuram uma das ferramentas de maior importância no planejamento e na efetivação das metodologias de recolhimento e distribuição dos recursos de um país. É de notória essencialidade na formatação da vida em comunidade, sob os aspectos econômico, social (sociedade igual ou desigual), cultural, jurídico, tecnológico etc. Diríamos que os tributos são o sangue que circula pelo corpo estatal e faz com que os seus mecanismos ou órgãos funcionem.

O nível de progressividade do Sistema Tributário define a qualidade do Estado de Direito Democrático, se eficaz ou meramente semântico. Por isso, a Constituição de 1988 estatuiu uma série de princípios fundamentados na justiça fiscal e social, a exemplo da tributação direta, isonômica, de caráter pessoal e de acordo com a capacidade contributiva.


2.  TRIBUTAÇÃO ENQUANTO ELEMENTO DE JUSTIÇA REDISTRIBUTIVA

Nancy Fraser (2001, pp. 285-293) ressalta que a sociedade democrática moderna, tal como se apresenta em boa parte das nações, requer a adoção de medidas simultâneas de reconhecimento e redistribuição, de modo que se sustentem umas às outras, ao invés de se aniquilarem, pois a privação econômica e o empobrecimento cultural se entrelaçam de forma coordenada.

As primeiras para as denominadas minorias (reconhecimento), de maneira que as fronteiras que as segregam dos demais grupos sejam aos poucos apagadas, e as segundas para os pobres e desfavorecidos (redistribuição), de modo que alcancem um patamar de desenvolvimento humano idêntico aos que entre eles não se encontram.

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Ao contrário das práticas assistencialistas (de redistribuição meramente afirmativa), que deixam intactas as estruturas causadoras das desigualdades, as políticas de efetiva inserção social e econômica garantem a todos o acesso ao bem estar e dissolvem as injustiças.

Trata-se dos denominados remédios transformativos, entre os quais se inclui a tributação equitativa e isonômica, consoante o que passaremos ao expor.


3. O TRIBUTO NA HISTÓRIA

Paulo Caliendo (2017, pp. 21-23) leciona que a palavra tributo tem origem etimológica nos primórdios da civilização. Significa a repartição ou a divisão dos bens entre a tribo vencedora e a tribo vencida, após a batalha.

Em Roma, ocorreu uma razoável evolução no sentido da sistematização do instituto em enfoque, época e local em que havia duas espécies de gravames, aqueles incidentes sobre a terra (tributum soli) e sobre as pessoas (tributum capiti). O segundo é o antecedente remoto do atual imposto sobre a renda.

Na idade média, a tributação tinha como finalidade precípua a ampliação da riqueza do soberano. O absolutismo veio a consagrar razões tributárias dissociadas de vínculos com os interesses dos súditos, independentes e suficientes em si mesmas.

Com o advento do Estado de Direito, a fiscalidade é submetida a limites. O patrimônio privado deixa de estar à mercê do livre arbítrio do monarca e de suas intenções secretas. Passa a ser fruto da representação popular e a se submeter aos direitos e garantias do contribuinte.

Paulo Caliendo ainda leciona que:

"Com o surgimento do Estado Democrático de Direito, consolida-se a ideia de que a defesa dos direitos individuais deve e pode ser realizada por meio de políticas ativas do Estado e não apenas de limitações à ação estatal. Cabe ao Estado, inclusive mediante a utilização de políticas fiscais, induzir a concretização de direitos fundamentais e tarefas públicas. Desse modo, tem se pensado no uso de tributos como forma de proteção do meio ambiente, de estímulo à família, incentivo à cultura, entre outros. Uma das tarefas da política é a consagração da justiça material, ou seja, de uma repartição igualitária de bens e utilidades públicas. Podemos afirmar, portanto, que a história da tributação se constitui em um movimento que se dirige da vassalagem à cidadania. Este movimento possui uma orientação racional pelo aperfeiçoamento das formas de tributação, mas também de luta contra a opressão".

Os países democráticos que lograram consolidar os seus mercados e alcançar índices de desenvolvimento humano razoáveis adotaram sistemas tributários segundo os quais a incidência principal e predominante é direta, sobre o patrimônio e a renda. O contribuinte de direito, a quem a lei atribui a obrigação de pagar, corresponde ao contribuinte de fato, aquele que suporta e realiza o pagamento.

Na tributação indireta, como, por exemplo, naquilo que é referente à produção ou à circulação de bens e mercadorias, predominante no Brasil, o contribuinte de direito, encarregado do recolhimento, repassa o ônus para o contribuinte de fato, ou consumidor, fazendo com que este último, que, em regra, se encontra nos estratos sociais de baixa renda, fique na posição de principal financiador do Estado.


4. SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

Em 2017, o Senado da República criou Grupo de Trabalho da Comissão de Assuntos Econômicos com a finalidade de avaliar a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional.

O Grupo editou o relatório resultante das análises sobre o assunto em outubro daquele mesmo ano, da lavra do senador Ricardo Ferraço.

Concluíram os componentes que o Sistema era dual, pois, apesar de se ter dedicado atenção aos impostos, 45% da arrecadação do país correspondia às contribuições (no caso da União, dois terços do arrecadado eram contribuições e um terço impostos).

Quanto às sociedades empresárias, havia um pequeno grupo que realmente apurava impostos, cerca de 3% do total, correspondente a mais de 80% da arrecadação. Os demais 97% de pessoas jurídicas de direito privado brasileiras arbitravam os impostos a pagar ou apuravam de acordo com regimes diferenciados.

Apesar dos muitos tributos que compunham o Sistema Tributário, a arrecadação era concentrada. Os recolhimentos sobre bens e serviços prevaleciam no cenário da receita tributária, resultando em bons números enquanto a economia crescia, mas revelando-se preocupante quando ela desacelerava.

Concebido em meados da década de 60 do século passado, o Sistema perdura até hoje, fazendo uso das premissas de uma realidade econômica de mais de 50 anos atrás, decorrente de industrialização tardia e fechada.

Trata-se de uma época na qual a indústria de transformação era cerca de um terço do PIB brasileiro, enquanto hoje ela corresponde a menos de 12%.

E assim continua o Relatório:

“Se em 1965 o Sistema elaborado era um Sistema moderno e ousado para a época (vale lembrar que o Brasil foi o primeiro do mundo a criar em escala nacional um imposto sobre valor adicionado), muitos erros vieram ofuscar essa vanguarda. Não foi criado apenas um, mas vários impostos dessa natureza, colocando a cobrança do principal deles (o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços - ICMS) em nível subnacional e tornando-o obsoleto em termos de arrecadação. Se aquele Sistema fazia-se lógico e consistente para 1965, hoje, o mesmo não passa de um idoso e debilitado Sistema.

A complexidade de tal Sistema, com o passar desse mais de meio século, trouxe para a carga tributária injustiças variadas. Cálculos mostram que esta complexidade penaliza em enorme grau as empresas, isto porque o Brasil segue sendo campeão mundial em custos de compliance, ou seja, aqueles incorridos para fazer frente às exigências da legislação tributária.

Em termos de regressividade tributária, os números mostram a proporção do que já é amplamente sabido: quanto maior a renda, menor a carga de tributos indiretos. Embora os tributos diretos no Brasil sejam progressivos, não o são tanto quanto nos demais países. Tal fato, aliado à pesada tributação do consumo de bens e serviços, reforça a regressividade imposta à população pelo Sistema. O cálculo de Silveira (2012), por exemplo, mostra a renda distribuída pela população por faixa de renda, assim como quanto é pago em impostos por cada faixa: aqueles mais pobres pagam duas vezes mais do que contribuem para a renda, enquanto os mais ricos pagam menos do que contribuem. Não surpreende, dessa forma, que os números se apresentem sempre contínuos: quanto maior a renda, menor a carga tributária”.

A CF/88 recepcionou grande parcela dessa complexa e ultrapassada legislação e permitiu que os entes da federação também pudessem legislar sobre seus tributos, o que gerou uma infinidade de leis diferentes, além de obrigações acessórias e administrativas.

Dessa forma, fica claro o motivo pelo qual o relatório aponta o Brasil como a campeão mundial em custos de compliance.

Será o departamento de compliance tributário dos contribuintes que verificará a correta aplicação da legislação, com a redução de multas e autuações e, consequentemente, diminuição dos gastos com defesas administrativas, prevenção de erros internos, entre outras tarefas necessárias para lidar com o emaranhado de normas tributárias.

Assim, no Brasil, a implantação de departamento de compliance tributário é elemento necessário para a sobrevivência dos empreendedores particulares, apesar de a realidade demonstrar que nem todos podem arcar com tal despesa.

As informações prestadas pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) dão conta de que a tributação sobre a propriedade correspondeu a 6% do total arrecadado no Brasil em 2012. Metade do percentual dos Estados Unidos e Reino Unido (12%), e 50% menor do que os da Argentina e França (9%).

Sobre o consumo, no Brasil, o percentual se eleva ao patamar de 44%, o dobro do existente nos Estados Unidos (22%) e significativamente maior do que os presentes na França e no Reino Unido, respectivamente, 25% e 30%.

A alta tributação sobre o consumo também é encontrada na Argentina (52%) e no México (54,5%).


5. PERCALÇOS DA TRIBUTAÇÃO SOBRE A PRODUÇÃO E O CONSUMO

Apesar dos princípios redistributivos adotados na Constituição de 1988, a legislação infraconstitucional não cuidou de sistematizar uma realidade tributária direta, progressiva e isonômica.

Ao contrário, a incidência sobre o consumo e a produção superou significativamente a que recai sobre o patrimônio e a renda, o que tem contribuído para a concentração das riquezas e obstado políticas de efetiva redistribuição transformativa.

A tributação sobre a produção e o consumo fomenta a desigualdade social e dificulta a justiça social.

Quando qualquer contribuinte paga nominalmente a mesma quantia a título de imposto, aqueles de baixa renda, comparativamente com os de alta renda, comprometem percentuais maiores dos seus orçamentos, o que viola os princípios da capacidade contributiva, pessoalidade e isonomia, previstos na CF/88.

Uma vez que no Brasil os desníveis pessoais e regionais de renda são significativamente elevados, pode-se concluir, com segurança, que os mais pobres destinam frações muito maiores dos seus ganhos para pagar impostos e financiar o Estado do que os mais ricos.

Nos Estados Unidos, incentiva-se o consumo com políticas fiscais que priorizam a tributação sobre a renda, o que, curiosamente, resulta em um contexto duplamente benéfico para os poucos brasileiros que conseguem adquirir bens naquele País: baixa tributação, tanto do lucro auferido no Brasil quanto do valor alhures consumido.

É mais fácil fiscalizar o cumprimento das obrigações quando a incidência é sobre o consumo e a produção do que quando é sobre a renda e a propriedade.

Além disso, o valor incidente sobre cada negócio jurídico se reveste de um manto de obscuridade, pois os consumidores dificilmente conseguem notar o quanto de seus ganhos é comprometido com o pagamento de tributos indiretos, tampouco perceber com exatidão o montante de tributos inserido nos preços.

Entre os principais impostos indiretos estão, por exemplo, o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e o ICMS (Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre prestações de Serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação).

Este último é o que mais arrecada no País.

Portanto, tomando-se o Sistema Tributário do Brasil como instrumento de medida do nível de maturidade política e da efetividade/ eficácia do Estado de Direito aqui existente, percebe-se que o termo “Democrático” não se aplica a todas as suas estruturas fundamentais.

Sobre os autores
Paulo Danilo Reis Lopes

Mestrando em direito pelo Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP/SP). Especialista em auditoria fiscal e contábil pela UNIFACS - Universidade Salvador. Auditor fiscal do Estado da Bahia. Membro do Consef/BA - Conselho Estadual de Fazenda do Estado da Bahia (colegiado responsável pelo julgamento administrativo das lides tributárias).

José Leite Guimarães Junior

Mestrando em direito pelo Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP/SP) e advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Paulo Danilo Reis; GUIMARÃES JUNIOR, José Leite. Sistema tributário como instrumento de afirmação e aferição do Estado de direito democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6153, 6 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80792. Acesso em: 22 dez. 2024.

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